• Nenhum resultado encontrado

Obrigações da Sociedade de Engenharia

No documento Contratos internacionais "chave na mão" (páginas 97-102)

10. OBRIGAÇÕES DAS PARTES

10.2 Obrigações da Sociedade de Engenharia

Nos contratos tradicionais de engenharia, o papel do engenheiro ou da sociedade de engenharia resume-se, geralmente, na construção da obra. Nestes contratos, é comum que o dono da obra contrate diferentes empresas que irão executar trabalhos específicos, sob a coordenação de um engenheiro também contratado. Desse modo, diferentemente do que ocorre nos contratos “chave na mão”, a sociedade de engenharia contratada não assume a responsabilidade global pela concepção e pela coordenação do projeto192.

Como aludido oportunamente, os contratos “chave na mão” alocam grande parte ou mesmo toda a responsabilidade pela concepção do projeto na sociedade de engenharia. A concepção do projeto, entendida aqui como os trabalhos que envolvem o

design da instalação, podem envolver procedimentos muito avançados, o que irá exigir

da sociedade de engenharia o domínio da técnica e da tecnologia necessárias para tanto. Da mesma forma, a responsabilidade pela coordenação das obras nos contratos “chave na mão” recai sobre a sociedade de engenharia. Sendo assim, a experiência e o conhecimento técnico desta última devem ser suficientes para torná-la capaz de coordenar o processo de concepção, construção e de controle dos recursos necessários para a obra193.

Neste cenário, é possível afirmar que nos contratos “chave na mão” a sociedade de engenharia assume perante o cliente uma obrigação global de resultado: a obrigação de conceber, construir e colocar em funcionamento uma determinada instalação194. A estas, soma-se ainda a obrigação de corrigir ou solucionar qualquer defeito na obra, o dever de informação ao cliente, de formação do pessoal do cliente, de assistência técnica e de fornecimento de tecnologia ou transmissão de saber-fazer.

Não obstante, a obrigação assumida pela sociedade de engenharia em um contrato “chave na mão” configura uma obrigação complexa, ou seja, integrada por

192 Huse, op. cit., 141.

193

Id.

98 diversas prestações, dentre as quais destacaremos aquelas consideradas mais relevantes, representadas pela tríade concepção, construção e aptidão para funcionamento.

10.2.1 A concepção do projeto (Design)

A obrigação da sociedade de engenharia de conceber o projeto é marcada normalmente por sucessivas etapas. A primeira delas diz respeito aos estudos preliminares e envolverá a consideração de aspectos técnicos, jurídicos, econômicos, climáticos, culturais, ecológicos, entre outros. Em seguida, elaborar-se-á um pré-projeto ou anteprojeto e finalmente um projeto final.

A concepção do projeto deve atender, antes de mais nada, a vontade do cliente. Basicamente, nos contratos “chave na mão”, o cliente irá estabelecer critérios e especificações relacionados ao resultado final pretendido (employer requirements)195, devendo ainda prestar toda a informação e a assistência necessária para viabilizar o atendimento a tais critérios. Diante disto, caberá à sociedade de engenharia conceber o projeto de acordo com as especificações exigidas pelo cliente e dentro do prazo estipulado, em conformidade com as disposições relevantes do contrato e com a lei aplicável ao mesmo196.

Nos contratos em que a concepção e a construção são de responsabilidade da sociedade de engenharia, o parâmetro (standard) a ser atendido na concepção do projeto costuma ser mais rigoroso do que nos contratos de engenharia tradicionais, nos quais o

design é elaborado por um terceiro. Isso porque a concepção do projeto pela sociedade

de engenharia em contratos como os “chave na mão” transcende o simples dever de

competência e cautela (skill and care) para assumir a forma de uma obrigação de aptidão ao fim a que se destina, o chamado “fitness of purpose”197.

A expressão anglo-saxônica “fitness of purpose” é empregada tanto no modelo contratual da FIDIC (4.1) quanto no da CCI (14.1) e é útil para definir os parâmetros (standards) a serem perseguidos pela sociedade de engenharia desde a concepção do projeto até a sua conclusão e colocação em funcionamento, bem como para definir a amplitude da responsabilidade assumida pela mesma.

195

Conforme sub-cláusula 5.1 do Silver Book da FIDIC e artigo 32.2 do ICC Model Turney Contract for

Major Projects.

196 “The standard will be defined by the relevant provisions of the contract and the law applicable to the

contract. Cf. Huse, p. 205.

99 A obrigação de aptidão ao fim a que se destina vincula a sociedade de engenharia diretamente ao produto final, distinguindo-se da tradicional obrigação de realizar a tarefa com a competência e a cautela que se espera de um profissional da área, na qual a responsabilização dependerá da verificação da culpa (como nos casos em que um terceiro, normalmente um arquiteto ou engenheiro, é contratado para elaborar o projeto). O cumprimento da obrigação de aptidão ao fim a que se destina será avaliada com base no fato das características e do desempenho do produto final atingirem propriamente o fim pretendido pelo cliente e estipulado em contrato. Isso significa que, ainda que seja atendida a grande maioria dos critérios técnicos e especificações requisitadas formalmente pelo cliente (employer requirements), se a instalação final não estiver apta a atingir os fins para o qual foi concebida, a sociedade de engenharia será, ao menos em princípio, responsabilizada independente de verificação de culpa198.

Para além disso, o design do projeto deve necessariamente se adequar a lei do local da obra, em especial no que diz respeito a legislação vigente em matéria de normalizção técnica, construção, edificação e proteção do meio-ambiente.

Por outro lado, o fato da responsabilidade sobre a concepção do projeto recair sobre a sociedade de engenharia justifica que lhe seja concedido o direito de introduzir modificações que entenda oportunas sempre que isso não signifique o não atendimento das exigências impostas pelo cliente e dos parâmetros técnicos e funcionais previstos contratualmente199.

A elaboração de um pré-projeto pode ser muito útil neste sentido, uma vez que irá oferecer uma base mais concreta de análise para as partes, possibilitando possíveis correções de falhas e/ou de omissões antes que o projeto final seja concluído.

10.2.2 A execução da obra

A obrigação de execução da obra refere-se ao dever da sociedade de engenharia de construir materialmente a instalação pretendida dentro dos parâmetros previstos em contrato. Trata-se da prestação típica dos contratos tradicionais de engenharia.

A sub-cláusula 7.1 do Silver Book da FIDIC busca estabelecer um padrão a ser aplicado na fase de execução das obras. Para tanto, prevê que a sociedade de engenharia deve executar os trabalhos referentes à construção da obra na maneira especificada no

198 BAKER, Ellis, Bem MELLORS, Scott CHALMERS e Anthony LAVERS, Fidic Contracts: Law and

Practice. White & Case, London, 2009, p. 109.

100 contrato, de forma apropriada, cuidadosa e de acordo com as boas práticas, utilizando-se de instalações devidamente equipadas e materiais não perigosos200. O parâmetro baseado nas “boas práticas” deve ser aplicado sempre que não haja outro standard expressamente definido no contrato. De qualquer maneira, o real significado de “boas práticas” não resta de todo claro. Neste sentido, para evitar incertezas quanto a sua aplicação, as partes costumam redefinir o termo fazendo referência a padrões profissionais de atuação que proporcionem contornos mais definidos a este dever de atuação201.

Nos contratos “chave na mão”, também a responsabilidade pela contratação de pessoal e de mão de obra, seja ela nacional ou estrangeira, é da sociedade de engenharia. Caberá a esta, portanto, realizar os procedimentos necessários para sua contratação, remuneração, alojamento, alimentação, saúde e transporte202. Os salários e condições de trabalho oferecidas pela sociedade de engenharia não poderão ser menos favoráveis do que as estabelecidas no país do local da obra para atividades comerciais e industriais semelhantes, bem como deve ser respeitada a legislação trabalhista deste país203.

A sociedade de engenharia ainda possui o dever adicional de providenciar certas condições e garantias de suporte para o pessoal contratado pelo cliente. Incluem-se ai questões relativas a acomodação, alimentação, saúde, entre outros.

Uma questão que fatalmente surge neste contexto diz respeito à igualdade de condições oferecidas para os trabalhadores locais e estrangeiros. Semelhantes questionamentos surgem quando a execução da obra ocorre em país mais desenvolvido economicamente do que aquele do qual provêm um ou mais trabalhadores. Neste sentido, o contrato deve ser cuidadosamente elaborado, levando-se em consideração as exigências específicas das relações trabalhistas no país onde os trabalhos são executados, evitando-se assim o chamado dumping social204.

200 “7.1 Manner of Execution

The Contractor shall carry out the manufacture of Plant, the production and manufacture of Materials, and all other execution of the Works:

(a) In the manner (if any) specified en the Contract,

(b) In a proper workmanlike and careful manner, in accordance with recognized good practice, and (c) With properly equipped facilities and non-hazardous Materials, except as otherwise specified in

the Contract.”

201 Huse, op. cit., p. 253. 202

Cf. Sub-cláusula 6.1 do Silver Book da FIDIC e artigo 17.1 do ICC Model Turney Contract for Major

Projects.

203 Cf. Sub-cláusula 6.2 do Silver Book da FIDIC e artigo 17.2 do ICC Model Turney Contract for Major

Projects.

101 Da mesma forma, é de responsabilidade da sociedade de engenharia o fornecimento e o transporte de materiais e equipamentos necessários para a realização da obra. É comum que estes materiais e equipamentos sejam provenientes de país distinto daquele onde a obra é realizada, podendo ser o país da sociedade de engenharia ou outro qualquer. Isso faz com que a sociedade de engenharia seja obrigada a permitir a inspeção e análise de conformidade por parte do cliente ou de seu representante no que diz respeitos a estes materiais205.

O contrato “chave na mão” geralmente não contem descrições específicas a respeito dos materiais a serem utilizados na obra. Ao mesmo tempo, o cliente nestes contratos não está, muitas vezes, diretamente envolvido com o desenvolvimento diário das obras. Desta maneira, a fim de controlar a qualidade dos equipamentos e dos materiais utilizados nas obras e verificar o progresso dos trabalhos, o cliente geralmente exige e especifica testes, inspeções e resguarda para si direitos de aprovação relativos a fornecedores e subcontratados que estão fornecendo materiais e serviços essenciais. Sem a previsão contratual das salvaguardas adequadas, o uso do método de contratação “chave na mão” poderia resultar em uma redução na qualidade. Ao exigir testes e inspeções, o cliente tem mais condições de garantir um determinado nível de qualidade no produto final206.

Especificamente quanto ao transporte de tais equipamentos e materiais, é comum, na prática, que o mesmo seja regido conforme os INCOTERMS da CCI, sendo a fórmula FOB a mais utilizada para tanto207.

10.2.3 A aptidão de funcionamento

Como frisado anteriormente, a responsabilidade contratual da sociedade de engenharia nos contratos “chave na mão” não se limita à concepção e a realização de uma instalação ou de um complexo industrial, mas inclui ainda assegurar a sua aptidão funcional, colocando o projeto em efetivo funcionamento de acordo com as especificações contratuais acordadas. Neste sentido, após a conclusão dos trabalhos de contrução da obra, a aferição de aptidão de funcionamento será verificada através de uma série de testes.

205 Hernandez Rodriguez, op. cit., p. 1785. 206

Huse, op. cit., p. 251.

102 Estes testes, conhecidos pela expressão inglesa “tests on completion”, são realizados pela sociedade de engenharia depois que a mesma considera que a fase de construção da obra esteja substancialmente concluída. Os testes darão ao cliente um conjunto objetivo de elementos para medir o grau de atendimento aos parâmetros estabelecidos no contrato. O regime de testes para um contrato de construção inclui, normalmente, um requisito relativo à documentação destinada a auxiliar o empregador na operação da instalação, tais como manuais de operação e planos de funcionamento.

A realização destes testes, como veremos, terá especial significado no que concerne à recepção ou aceitação da obra por parte do cliente.

No documento Contratos internacionais "chave na mão" (páginas 97-102)