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Ockham e seus opositores, na questão do poder pontifício, conheceram o texto da Donatio Constantini (Doação de Constantino) também chamado de

Constitutum Constantini, que desde o século XV já se duvidava de sua autenticidade

(GARCIA-VILLOSLADA, 1988, v. 2, p. 60). Ockham (1988, p. 183-194) apontou a possibilidade da falsificação do texto da Doação de Constantino, ele usou a expressão “apócrifo” para este texto, embora não afirme diretamente o que seja. Hoje, não resta nenhuma dúvida quanto à falsidade deste texto. Estudos recentes mostram divergências sobre o ano de composição do texto da Doação de Constantino e o local.

Baronio defendeu que a Doação de Constantino foi composta em Bizâncio entre os anos de 750-850. J. Friedrich defendeu que foi composto entre os anos de 638-754 sem mencionar local de composição. Ignácio Doellinger, L. Duchesne, W. Levison, R. Holtmann e A. Schoenegger defendem que foi escrito em Roma. H. Grauert e P. Kirsch defenderam a origem francesa da Doação Constantino, sendo o texto composto na abadia de Saint-Denis entre os anos de 840 a 850. Max Buchner defendeu que a origem do texto está em Reims na França (GARCIA-VILLOSLADA,

1988, v. 2, p. 59-60). Parece mais plausível a teoria que defende sua origem nos meios romanos durante o século VIII porque há, no texto, uma preocupação constante em mostrar que Roma teria sido doada ao papa.

Julgamos que era importante para Ockham tratar estes argumentos da Doação de Constantino, por isso ele citou quase literalmente o texto por duas vezes, uma, na obra Oito questões sobre o poder do papal e outra, no Brevilóquio sobre o principado tirânico (OCKHAM, 1988, 2002). A leitura do texto da Doação de Constantino mostra o imperador Constantino Magno submetendo-se à Igreja cristã, prestando juramento de fidelidade ao papa Silvestre, fazendo doações de terras ao papa e aparecem também referências indiretas ao império que estava instalado em Bizâncio. Consta, no texto da edição crítica da Doação de Contantino feita por Fuhrmann (1968), o primado do papa sobre as sés de Jerusalém, Alexandria, Antioquia, Constantinopla e todas as outras igrejas como sendo concedido pelo imperador Constantino. O franciscano, após apresentar o texto da Doação de Constantino, fez um resumo sobre seu conteúdo:

Deste texto deduz-se que, ao menos após a doação de Constantino, o império é reconhecido como vindo do papa, porque sendo Roma a cabeça do império, se a partir de então o papa teve a dignidade imperial de Roma, segue-se que teve o principado e o poder sobre o império romano. Por isso, ao menos a partir de então, qualquer imperador devia reconhecer o império como vindo do papa. (OCKHAM, 1988, p.192).

A definição das motivações que levaram à composição do texto da Doação de Constantino é assunto controverso. Bertelloni (1995, p. 113-131) preferiu, nas suas pesquisas sobre as motivações da composição falsária do texto, apontar três pontos comuns entre os historiadores: 1) confirmar o primado do papa; 2) assegurar a soberania do papado no Império Ocidental; 3) submeter ao papado à rebeldia política e religiosa do Império Oriental. Bertelloni defendeu também que com o texto da Doação de Constantino acrescentava-se um suposto “fato histórico” às discussões sobre a legitimidade da coroação de Carlos Magno (768-814) como imperador pelo papa Leão III. Havia argumentos teóricos e teológicos suficientes para defender a legitimidade, mas o compositor do texto quis acrescentar a

confirmação histórica, buscando assim coincidir a história com a doutrina. A falsificação de textos, algo presente constantemente na Idade Média, provém da idéia que a falsidade legítima de um texto viria não da realidade dos fatos, mas se o que se quer demonstrar com os textos coincide ou não com o que se julga como verdadeiro.

Ockham não comentou aspectos relacionados ao Império do Oriente que constavam na Doação de Constantino. Ele preferiu contestar os aspectos em que a Doação era usada como prova para a plenitude do poder do papa. Bartelloni (1995, p. 118) afirmou que a Doação de Constantino pode ser a primeira expressão formal do propósito do papa de tornar-se soberano absoluto. Logo, Ockham teria contestado um argumento importante dentro da doutrina da plenitude do poder, se concordarmos com Bartelloni.

O suposto gesto dos bens concedidos ao papa, a instituição do primado de Roma e a entrega de toda a cidade de Roma, a província de Roma e outros lugares da Itália que se encontram na Doação de Constantino não demonstravam, segundo Ockham, que o poder temporal se considerasse menor que o poder espiritual. Ele utilizou o mesmo texto que os partidários da plenitude do poder evocavam para provar seus argumentos e deu-lhe uma nova interpretação. Para ele, a Doação de Constantino reafirma que a função papal é, em primeiro lugar, “promover o culto divino e a solidez da fé cristã.” (OCKHAM, 2002, p.74-77).

Ockham fez uma inversão nos argumentos de seus adversários que queriam defender que o poder temporal pertencesse ao papa.

Os adversários de Ockham partiam de afirmações do papa Inocêncio IV (1243-1254) para afirmarem a plenitude do poder sobre a chamada “restituição” do poder temporal que Constantino Magno fizera ao papa Silvestre. Para Ockham não aconteceu qualquer restituição do poder, como se o poder antes fosse da Igreja, tivesse sido usurpado pelos romanos e depois devolvido (restituído) por Constantino. Ockham reconheceu que os soberanos que exerceram e que na época em que está escrevendo (1342) exercem o poder temporal fizeram-no e fazem-no de modo legítimo. Outros defendiam que existiam governos legítimos somente após o papa.

Havia, entre os defensores da plenitude do poder, a idéia de que todos os bens (terras e províncias) pertenciam ao papa já que era o “Vigário de Cristo”. Esse pensamento estava na base da Doação de Constantino. Por isso, nenhum bem de um rei ou de um imperador poderia ser dado ao papa, mas só restituído. Somente a

palavra restituição (restituere) caberia para explicar a passagem de um bem de qualquer pessoa para o papa. Essa era a idéia de Inocêncio IV quando cita a “Restituição ou Doação de Constantino.” (OCKHAM, 2002, p.175). Ockham não aceitou o termo restituição para os bens concedidos ao papa. Para ele, na Doação de Constantino, o imperador ofereceu os bens à Igreja por sua vontade e pela primeira vez, ou seja, não foi uma restituição. O gesto da Doação de Constantino não diminuiu o poder do imperador, mas confirmou o imperador como legislador em primeiro grau do poder temporal.

Ockham questionou ainda que o texto da Doação de Constantino não listava as chamadas regiões orientais. Assim o poder papal, pelo próprio texto da Doação de Constantino, foi limitado porque o papa Silvestre não recebeu todas as terras do império, mas uma parte. Se o papa fizesse a concessão da administração dos reis, só poderia fazer a concessão na Itália e nos reinos ocidentais. Ockham teria recusado, exatamente, a função subliminar, segundo as pesquisas citadas, de colocar o Império Oriental e especialmente Bizâncio sobre a tutela papal. Assim a abrangência geográfica do poder temporal do papa ficava limitado.

A transferência do império, a Doação de Constantino e o Dictatus Papae estavam na base dos argumentos dos curialistas (partidários do papa). Bonifácio VIII acrescentou ainda outras sustentações para a doutrina política dos papas.

1.7 A SITUAÇÃO POLÍTICA E RELIGIOSA NO PONTIFICADO DE