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2.5 A pobreza evangélica e o fim dos tempos: interpretações

2.5.1 Pedro de João Olivi

Segundo Delumeau (1997, p. 48) Pedro de João Olivi nasceu no Sul da França possivelmente em 1248, entrou na ordem franciscana entre os anos de 1260 ou 1261, falecendo em 1298.

Foi um zelante observador da Regra franciscana, especialmente nos preceitos relacionados à obediência. Para Falbel (1995, p. 126), Olivi demonstrou a importância que dava à obediência quando foi questionado por suspeita de ter escrito algumas afirmações contra a ortodoxia, submeteu à apreciação de seus superiores todas as suas obras suspeitas.

Cursou a formação teológica na universidade de Paris, o que lhe deu uma sólida formação teológica, especialmente conhecimentos dos textos bíblicos e seus comentários. Na universidade de Paris sofreu, junto com outros franciscanos, a perseguição por parte do clero secular e de alguns professores.

Os problemas de interpretação da intenção de São Francisco com a Regra e o Testamento escritos por ele haviam começado antes da morte de S. Francisco. A ordem franciscana obteve um crescimento muito rápido já que se narra um número de cinco mil religiosos presentes no Capítulo Geral de Santa Maria da Porciúncula em 1217 (SÃO BOAVENTURA, 2004a, p. 576). Mesmo com a imprecisão do número de cinco mil frades, a ordem franciscana com suas idéias de vida itinerante, retorno ao evangelho, vida em fraternidade, afastamento das riquezas, oferecia aos homens e mulheres do século XIII a renovação que eles pretendiam para a fé cristã. Pedro de João Olivi fez uma opção mais próxima dos anseios de renovação religiosa do século XIII na interpretação da Regra e do Testamento de São Francisco. Olivi insistia, especialmente, na vida simples e pobre como a intenção real de S. Francisco.

Olivi escreveu algumas obras, são elas: Postilla [ou Lectura] in

Apocalypsim, Tractatus de Septem Sentimentis Christi Ieshu, Expositio in Canticum Canticorum, Tratado sobre as compras e vendas e outros textos reunidos pelos

editores de Grottaferrata.

As obras de Olivi procuram manter o respeito à hierarquia representada pelo papa. Olivi sofreu diversas perseguições por causa de seus escritos. Foram condenadas 56 proposições de seus escritos por frades da chamada comunidade entre os anos de 1283 e 1284. Segundo Falbel (1995, p.126-129), Olivi foi acusado, em 1284, de ser dirigente de seita herética e provocar divisões na ordem. A seita a que se referiam eram os beguinos que se inspiraram nele e cultuaram-no como santo. As várias perseguições despertaram a ira dos partidários de Olivi, assim como trouxe prestígio para ele.

Olivi foi um líder espiritual não só para os franciscanos, mas também para os leigos que o consideravam um santo. Após sua morte, a tumba de Olivi recebia a visita dos fiéis, especialmente dos beguinos. Manselli (1959) demonstrou que o culto a Olivi foi propagado na região da Provenza, fortemente marcada pela presença dos beguinos e dos espirituais. Os beguinos e os espirituais esforçaram- se espalhando as obras de Olivi. Os beguinos partiam para a peregrinação do jubileu do ano 1300 tendo as obras de Olivi entre seus objetos devocionais.

Segundo Manselli (1965, p. 96), a idéia mais condenada de Olivi era a que distinguia entre a igreja do tempo presente e a igreja futura. A conclusão de Olivi era que a Igreja do seu tempo era imperfeita e seria superada. Sua interpretação sobre a Igreja abria a possibilidade da contestação do papado e da cúria pontifícia. Mas o que se mostrou ainda mais perigoso para a Igreja foram as interpretações que partiram das obras de Olivi.

Na sua obra Postilla in Apocalypsim, Olivi usou de imagens presentes no livro do Apocalipse para comparar a igreja do tempo presente a uma “nova Babilônia”. Outra figura do Apocalipse que ele utilizou foi o Anti-Cristo, ao qual ele acrescentou o adjetivo “místico”.

Manselli (1965) escrevendo sobre o Anti-Cristo místico destacou que Olivi não esclareceu se este Anti-Cristo místico seria um pseudo-papa ou um alto dirigente da Igreja. Foi Ubertino de Casale quem identificou o Anti-Cristo místico a um papa concreto. Para ele, o Anti-Cristo místico era Bonifácio VIII.

Os escritos de Olivi descreviam um novo tempo que seria iniciado com o Anti-Cristo místico e que seria perigoso para os cristãos que permanecessem fiéis buscando uma vida simples e fugindo das tentações da igreja carnal. O fiel devia armar-se da fé como um guerreiro que enfrenta o inimigo. A linguagem que comparou o fiel ao guerreiro (cavaleiro) está num texto chamado de Miles armatus. Somente o cavaleiro armado podia escapar às investidas do Anti-Cristo místico. Olivi recomendou para escapar às tentações:

A humildade, a discrição, a fuga de tudo o que possa dar a impressão de ter um particular dom espiritual: toda a sua pequena obra [Miles armatus] resulta no perfil de um cristão silencioso, paciente e remisso. O cavaleiro armado se defende contra o mundo e suas tentações, na interioridade e no silêncio da sua consciência contra os que crêem possuir especiais dons e graças divinas,

revelações e visões, contra quem, por qualquer motivo, insinua soberba na alma. (MANSELLI, 1959, p. 50, tradução nossa).

Olivi desconfiava daqueles que diziam ter dons espirituais para tirar proveito deles. Por isso, não aceitava ser chamado de visionário ou profeta. Para ele, a realização do fiel estaria na quietude e resistência frente às tentações. Para o franciscano, era a Regra que podia fortalecê-lo contra o mal.

A interpretação da Regra que prescrevia a pobreza evangélica continuava sendo um ponto de divisão entre os franciscanos. Para Olivi, a correta interpretação da Regra assumia a pobreza evangélica e recusava qualquer privilégio. Para ele, a Regra dos franciscanos era a perfeição do evangelho, sendo o ponto de chegada de todas as outras regras de vida que surgiram na Igreja.

As idéias de Olivi e dos espirituais estavam espalhadas por muitos lugares da Europa. Esser afirmou que as regiões de mais divergências entre os ideais primitivos “eram o centro da Itália e o sul da França”, mas ele não reconheceu a importância dada aos espirituais pelos estudiosos da ordem franciscana dos séculos XII e XIII:

No século XII e o começo do século XIII essas regiões eram a área principal (sic) da disseminação dos movimentos heréticos de pobreza e dos cátaros. Evidentemente havia ligações entre estes e os “Espirituais” e “Fraticelli” posteriores na Ordem dos Frades Menores, os quais tinham os seus centros no mesmo espaço geográfico [...] Sempre será necessário ter em conta o fato de que a maior parte da Ordem não foi atingida pelas controvérsias agitadas aí, até que sob João XXII a discussão se alastrou por toda a Ordem. Como porém as lutas dos Espirituais deixaram um extenso espólio literário, até hoje são tratadas com prolixidade descabida na história da Ordem. (ESSER, 1972, p. 11).

Não concordamos com Esser, pois a querela dos “espirituais” e da “comunidade” teve início com grande vigor antes do pontificado de João XXII. As hagiografias compostas nas primeiras décadas após a morte de S. Francisco, comprovam a divisão entre os frades quanto ao rumo que os franciscanos deviam seguir. Os diversos documentos da ordem franciscana e dos papas, procurando definir a pobreza entre os franciscanos, demonstram a importância dos espirituais

na história da ordem franciscana e da Igreja. Logo, tratar a história dos espirituais não constitui uma “prolixidade” efêmera. Oficialmente foram publicados vários documentos dos papas sobre a citada questão, como por exemplo a bula Fidei

catholicae.

A bula Fidei catholicae, do Concílio de Vienne de 1312, realizado após a morte de Olivi, condenou-o como herege. Segundo o concílio, as heresias estariam presentes na sua Postilla in Johannem. Estas heresias seriam quanto às duas naturezas de Cristo, ao efeito do batismo e suas afirmações sobre a alma e o corpo (DENZINGER, 1996, p. 498-502). A condenação de parte das idéias de Olivi, no Concílio de Vienne, preanunciava que a perseguição estava se acirrando para uma parte da ordem franciscana.

Embora Olivi tenha sido considerado um joaquimita pela historiografia da ordem franciscana, difere fundamentalmente das idéias joaquimitas na concepção da história do mundo. Olivi destacou o Cristo (idade do Filho em linguagem joaquimita) como o ponto de chegada da plenitude do mundo e do homem. Fiore defendeu que a fase definitiva da Igreja, do homem e do mundo estava na idade do Espírito Santo. Segundo Magalhães (2003, p. 167), novos estudos têm tomado posição contrária a nomear Pedro de João Olivi e outros personagens do século XIII como “espirituais”. Assim para entender o pensamento de Olivi e de outros franciscanos do século XIII sem os vincular demasiadamente aos espirituais ou a Joaquim de Fiore, seria melhor interpretar que os espirituais e Fiore foram uma das fontes de inspiração, sem fazer deles elementos determinantes. Interpretamos João Pedro Olivi segundo os estudos que apontam as diferenças entre Olivi, Fiore e os espirituais. Para nós, Olivi nos seus comentários ao Apocalipse participou do grande interesse despertado por este livro bíblico, interpretando-o conforme a teologia bíblica da época e outros comentadores anteriores.

Outro aspecto importante de Olivi foi o respeito demonstrado às autoridades, sejam elas da Igreja em geral ou dos franciscanos. Seus textos, por ele, foram submetidos à apreciação de seus superiores. Julgamos que Olivi entendeu que a obediência representava a maneira concreta de demonstrar também a simplicidade. A perfeição evangélica, buscada por ele, tinha em Cristo o modelo da perfeita obediência. A obediência em Cristo não era uma passividade frente às situações, no caso de Olivi uma aceitação dos rumos perigosos para a Igreja, mas uma atitude crítica dentro da obediência. Esta postura supõe um

equilíbrio nem sempre possível. Ubertino de Casale, admirador e defensor de Olivi, não conseguiu permanecer no equilíbrio de seu mestre evitando atritos diretos com a autoridade. Ubertino de Casale desenvolveu especificamente as idéias contidas na Postilla e contribuiu para questionar a posição que os papas de seu tempo haviam tomado na relação da Igreja com o poder temporal.