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1.3 O primado apostólico e a sucessão papal

1.3.3 Ockham e o primado papal

Ockham fez menção indireta ao primado da igreja de Roma na obra Oito questões sobre o poder do papa. O contexto dos argumentos de Ockham era a discussão se o império proviria do papa antes ou depois da vida de Cristo. Para afirmarem que o império provinha do papa após a vinda do Cristo, os opositores de Ockham (2002, p. 117) utilizavam um argumento do papa Nicolau II (1058-1061) que afirmou que somente a igreja romana seria fundada e instituída pelo apóstolo Pedro, ou seja, as igrejas como a de Jerusalém, Antioquia e outras antigas sedes não foram instituídas por Cristo. Ockham, porém, recordou que a igreja de Antioquia, conforme o pensamento da primazia do apóstolo Pedro, foi a primeira igreja fundada pelo apóstolo. Com estes argumentos, Ockham não questionou a legitimidade da igreja romana e de seu bispo na administração da Igreja. Seu posicionamento foi no sentido de que os argumentos para definir a primazia de Roma sobre as outras igrejas necessitavam ser colocados sobre outros fundamentos. Ockham mostrou que não servia de fundamento, por inverídico, o argumento de Roma ser a primeira e única igreja fundada pelo apóstolo Pedro ou a mais antiga sede.

Ockham conhecia e usou os termos técnicos teológicos sollicitudo e

principatus para definir a função do papa dentro da Igreja. A solicitude e principado

apostólico do papa foram definidos por Ockham (1999d, p. 194) como voltados primordialmente para ações espirituais, ou seja, “leitura da Escritura, à pregação da palavra de Deus, à organização do culto divino, e tudo aquilo que é necessário e próprio dos cristãos, a fim de que possam vir a alcançar a salvação eterna.” Nestas

ações consideradas estritamente espirituais, o papa seria responsável em primeiro lugar e possuiria a plenitude do poder. Mas, mesmo esta plenitude espiritual era limitada, pois o papa não podia agir contra a fé cristã e o direito dos fiéis.

A ação do papa, na visão de Ockham (1999d, p. 193-194), naquilo que fosse específico do poder temporal seria uma ingerência. Esta ingerência só poderia acontecer quando não pudessem ou não quisessem agir aqueles a quem de direito competia substituir ou corrigir um soberano. As ações temporais do pontífice deviam, no caso acima citado, serem ocasionais, suprindo-lhes a negligência, porém sem retirar-lhes definitivamente o direito de ação.

Ockham (1999b, p. 106) fez uma menção direta ao primado do apóstolo Pedro na obra Pode um príncipe, inclusive com a utilização do termo com sua conotação teológica. Concordou que o primado vem do texto bíblico “eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja” (Mateus 16,18) e não contestou a interpretação que dava o governo espiritual de toda a Igreja ao bispo da sé de Roma. Ockham reconheceu que a função do papa como chefe da Igreja era importante para a administração e foi instituído pelo próprio Cristo. Para ele, a função do papa não seria só uma convenção humana, visando a um bom governo, mas foi algo desejado pelo próprio Cristo, pois Cristo quis que o apóstolo Pedro fosse o primeiro (primado) entre os outros apóstolos. Também em nenhum momento Ockham contestou a sucessão entre o apóstolo Pedro e os papas. Para ele, Cristo quis a sucessão apostólica para sua Igreja. Logo, o teólogo de quem se trata, recusou o argumento da Igreja Oriental que a sucessão de Pedro estaria presente em cada bispo legitimamente escolhido e ordenado para exercer o ministério.

Pode-se concluir que Ockham confirmou que o papa possuía a sucessão do apóstolo Pedro, não testando através da negação desarticular na origem a idéia

plenitudo potestatis. A origem do argumento da plenitude era exatamente o Cristo

escolhendo o apóstolo Pedro e supostamente lhe dando o poder sobre tudo. Poder- se-ia afirmar que Cristo dera somente ao apóstolo Pedro seu pleno poder, isto é, que nada constava nos textos bíblicos sobre possíveis sucessores participando do mesmo poder de Pedro. Se Ockham tivesse se posicionado dessa forma, estaria aceitando que Cristo deu ao apóstolo a plenitudo potestatis. Porém, o argumento de Ockham é ainda mais abrangente, pois para ele nem o apóstolo Pedro nem os seus sucessores receberam de Cristo a plenitude do poder.

Para Ockham, a plenitude do poder não foi utilizada por Cristo quando esteve neste mundo, porque o próprio Cristo se sujeitou aos juízes seculares. Para provar isto, ele citou o seguinte texto bíblico de João 18,36: “O meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas meu reino não é daqui.” Cristo, no seu julgamento, não teria contestado a autoridade temporal de Pilatos e Herodes, mas aceitado a autoridade temporal sobre ele (OCKHAM, 2002). Cristo definiu que veio ao mundo para servir e não para ser servido, portanto não podia possuir a plenitude do poder (OCKHAM, 1988, p. 59-60).

O texto principal sobre o primado de Pedro (e do papa) presente em Mateus 16,19 foi contestado por Ockham através de outros textos bíblicos que limitavam seu alcance. Um dos textos utilizados por ele para a melhor compreensão da missão confiada ao apóstolo Pedro e seus sucessores encontra-se em Lucas 22,25-26: “Sabeis que os governantes das nações as dominam e os grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que desejar tornar-se grande entre vós seja aquele que serve.” (OCKHAM, 2002).

Ele concluiu, do texto acima, que Cristo vetou o poder temporal ao papa. Ockham utilizando tal versículo diversas vezes para limitar a compreensão dos textos bíblicos abaixo, nos quais Cristo teria confirmado o apóstolo Pedro como chefe dos apóstolos. Entretanto, esses mesmos textos contestados por Ockham faziam parte predominante das argumentações dos partidários da plenitude do poder. São eles:

a) “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: devo conduzi-las também; elas ouvirão minha voz; então haverá um só rebanho, um só pastor.” (João 10,16); b) “Depois de comerem, Jesus disse a Simão Pedro; ‘Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes’? Ele lhe respondeu: ‘Sim, Senhor, tu sabes que te amo’. Jesus lhe disse: Apascenta os meus cordeiros.” (João 21,15);

c) o evangelho, texto de Mateus 16, 16-19, já citado aqui, e mais conhecido, sobre a sucessão papal; e,

d) Jesus respondeu: “Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas meu reino não é deste mundo” (João 18,16).

O último texto de João 18,36, para o Venerabilis Inceptor, declarou explicitamente que Cristo não foi rei aqui neste mundo. Caso fosse rei, Pilatos o teria condenado, entretanto a condenação aconteceu em função da insistência dos judeus. Foi por medo que Pilatos o condenou, quando os judeus lhe disseram que “se o libertas, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei, opõe-se a César”. Segundo a interpretação de Ockham, Pilatos temia os judeus e não considerava Cristo, o rei. Com este argumento bíblico, ele procurou demonstrar que o entendimento que os defensores da plenitude do poder faziam da Sagrada Escritura era falho (OCKHAM, 2002, p. 172). Em outro momento, Ockham (1988, p.146-148) afirmou que Cristo reconheceu que o poder humano de julgá-lo pertencia aos chefes romanos e não contestou esse poder. O franciscano não perdeu a oportunidade de menosprezar e zombar a compreensão dos que eram favoráveis ao papa.

Daí, alguns se admirarem de que Pilatos, homem mundano e sem fé, tenha compreendido o verdadeiro significado das palavras de Cristo acerca de seu reino, e de que, ao contrário, alguns cristãos, que também querem ser doutores da lei, não o entendam do mesmo. Daí, conforme o parecer dessas mesmas pessoas, não haver uma outra explicação para tal atitude, senão que eles estão obcecados por um mau sentimento. (OCKHAM, 2002, p. 44).

Pode-se concluir na questão do primado, que Ockham não foi contra a instituição chamada papado, mas contra papas específicos e contra a idéia que ampliava o poder pontifício para além do limite que foi instituído por Cristo. Ele, também, condenou a plenitude do poder como pensamento herético e foi contra a finalidade da instituição do papado.

Usando como base a interpretação ampliada do que seria o primado papal, vários pontífices procuraram fundamentar suas pretensões no plano temporal. Consideram-se momentos especiais da supremacia papal nos séculos posteriores, os períodos dos papas Gregório VII, Inocêncio III e Bonifácio VIII, aspectos que serão examinados nos próximos itens.

1.4 A REFORMA GREGORIANA: SEPARAÇÃO DOS PODERES E PREDOMÍNIO