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Os séculos XII-XIII foram marcados por um retorno aos evangelhos. Na época anterior, a leitura e citação de textos do Antigo Testamento estavam em igualdade numérica – e muitas vezes em maior número - com os textos do Novo Testamento. A leitura predominante dos textos bíblicos do Antigo Testamento tinha por finalidade observar como se constituiu a monarquia judaica. A leitura dos textos que citam o modo de governo dos judeus e a interpretação destes, objetivavam servir como modelo para as monarquias que começavam a se fortalecer nestes séculos. Diversas vezes encontramos Ockham citando e debatendo os textos bíblicos que fazem menção à monarquia. Estes textos serviam para a discussão sobre o modo de governo e de como o rei cristão devia exercer a autoridade. Com o retorno aos textos dos evangelhos, apareceram questões motivadas pelo contexto do século XII e analisadas segundo estes mesmos textos. Uma das questões era o que os evangelhos entendiam por pobreza.

Nos evangelhos, Jesus chamou os pobres de bem-aventurados. Mas há uma diferença entre os textos dos evangelistas. Em Mateus 5, 3 aparece o termo “pobre de espírito” ou “pobre de coração”, variando conforme a tradução: “Felizes os pobres de coração: deles é o Reino dos céus.” Já em Lucas 6, 20 aparece: “Felizes, vós, os pobres, o Reino de Deus é vosso”. O termo “pobres de coração” motivou questionamentos sobre o que significava a pobreza evangélica. Questionava-se se não poderia ser a pobreza algo mais interno, ou seja, capacidade de ser livre perante os bens materiais e não uma pobreza no sentido de não possuir qualquer coisa. Estes questionamentos foram intensos nos séculos XI a XIV levando os papas a se manifestarem sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos. De qualquer modo, os textos bíblicos apresentam a possibilidade de uma dupla compreensão da pobreza. Segundo Albuquerque (1983, p. 37): “Não há uma resposta única à questão, [pobreza literal e pobreza de coração] principalmente porque leva a ilações de ordem prática.” Os franciscanos em sua maioria

entenderam que a pobreza evangélica não era apenas uma liberdade espiritual frente aos bens. A pobreza de coração permitiria possuir bens, porém mantendo uma postura interna de pobreza que se identificaria com humildade. A pobreza literal não permitia qualquer tipo de posse. Uma parte dos franciscanos entendia que a pobreza de coração estava dentro da pobreza literal, ou seja, sem a absoluta ausência de bens não se poderia falar de pobreza de coração. Assim como persiste biblicamente a dupla interpretação da pobreza, os franciscanos trouxeram as duas interpretações para a definição do que era a pobreza prescrita pela Regra vivida por eles. Embora, em alguns momentos, parte da ordem optasse pela pobreza literal, persistiam frades que interpretavam a pobreza de forma mais branda. A questão da pobreza constituiu num dos problemas mais presentes nos primeiros séculos do franciscanismo, tendo conseqüências internas e para toda a Igreja.

Todo o esforço dos franciscanos na questão da pobreza, deve ser interpretado como a necessidade de renovação que acolheu a espiritualidade medieval do século XII e XIII. Esta renovação partia da vontade de uma prática dos preceitos contidos no evangelho. Sabatier (1920) julgou que São Francisco com sua vontade de renovação a partir dos evangelhos (evangelismo), sofreu uma oposição da Igreja que era na época inspirada no modelo monacal. Sabatier insistiu que S. Francisco se submeteu à Igreja institucional, embora fosse sua intenção viver de forma diferente. Os comentários de Sabatier à vida de S. Francisco demonstraram uma tendência de opor o carisma e a instituição, não estando isentos de uma posição previamente contrária à Igreja institucional. Concordamos com Sabatier em vários aspectos, a vida franciscana se diferenciava da vida monacal, o que poderemos perceber durante esta pesquisa.

O retorno aos evangelhos dos séculos XI a XIV propiciou que diversos grupos de cristãos desejassem uma vida mais simples. Na medida em que surgiam os movimentos espirituais, alguns acabavam sendo considerados hereges pela Igreja. O que queriam era o retorno ao espírito das comunidades primitivas, buscando ter a vida e tudo em comum, sempre inspirados nos evangelhos. Os franciscanos não foram uma completa novidade na espiritualidade do século XIII, estando inseridos em suas linhas gerais nos movimentos laicos dos séculos XII-XIII. Acompanharam este período de mudança religiosa também mudanças na economia. A economia, centrada no meio rural, expandiu-se para as pequenas comunas espalhadas na Itália através dos mercadores (burgueses). Dentro da

sociedade tripartida da Idade Média, despontaram os comerciantes como um grupo que buscava sua autonomia e queria, também, a possibilidade de exercer o poder. A família de São Francisco pertencia à “classe” dos comerciantes. O fortalecimento dos comerciantes marcou uma inovação no sistema feudal:

De elemento notável, mas secundário, de uma sociedade predominantemente agrária como era a sociedade de inícios da Idade Média, o mercador transformou-se gradualmente numa figura de primeiro plano, no criador de novas relações que minavam os alicerces tradicionais do feudalismo. (GUREVIC, 1989, p. 165).

Outro aspecto, que sofreu alterações no século XI a XIII, foi a compreensão de santidade. Os séculos XI–XIII tinham a vida dos santos como protótipo de conduta para o cristão. Eles encarnavam tudo o que os medievais buscavam dentro de uma sociedade marcada pela presença da fé cristã. Mas sabemos que a narração da vida dos santos era baseada no que os hagiógrafos julgavam adequado à vivência cristã, destacando, por isso, certos elementos morais e espirituais. Sabemos que a imagem do santo foi se desenvolvendo dentro de toda a Idade Média. A princípio, os santos foram os mártires que derramaram o sangue pela fé, testemunho incontestável de sua fidelidade religiosa. A partir do século IV, a figura do anacoreta com a sua fuga de todos, fuga mundi, sua luta contra o demônio, causaram espanto aos fiéis e seriam aclamados pelo povo como os novos santos. Logo depois dos anacoretas, foram considerados sucessivamente como santos, os cristãos que foram bispos, nobres, reis e monges de vida comum. A mudança na definição da santidade pode ser percebida na canonização de S. Francisco. Pode-se afirmar que São Francisco foi um dos primeiros santos a ter seu processo de canonização dentro dos novos critérios de santidade do século XIII. O retorno ao evangelho, à primitiva comunidade cristã, que diversos movimentos reivindicavam, não passaram despercebidos dos cristãos dos séculos XI-XIII. Estes movimentos de renovação conseguiram impor sua figura de cristão ideal, ou seja, ser santo nos séculos XI-XIII passou a estar ligado à vivência das práticas da nova espiritualidade.

O modo utilizado para os cristãos definirem seus santos — futuramente chamado de processo de canonização — mudou durante os séculos. Até o século

XII, a santidade era proclamada pelos próprios fiéis e não pela hierarquia religiosa. Ainda não acontecia um domínio formal da hierarquia religiosa sobre a questão. O processo de canonização de São Francisco, que aconteceu no ano de 1228 sob o pontificado de Gregório IX (1227-1241), marcou o início do domínio formal da hierarquia religiosa sobre os processos de santificação. Foram ouvidas testemunhas que conheceram o santo; perguntou-se pela ortodoxia de seus ensinamentos e foram verificados os milagres atribuídos ao santo; estes procedimentos passaram a ser controlados pela hierarquia. A partir de São Francisco, iniciou-se um novo modo de canonizar um santo e também, indiretamente, assumiu que os movimentos espirituais — alguns futuramente condenados por heresia — em alguns elementos gerais, expressavam a vontade profunda de uma renovação da cristandade. Os movimentos espirituais praticavam a pregação dos evangelhos de modo itinerante, vida pobre, formavam comunidades de ajuda mútua para a vivência cristã. Os anseios da nova espiritualidade, nascidos quase sempre de grupos de fiéis leigos, terminaram impondo também à Igreja hierárquica, os critérios para julgar a santidade. O movimento iniciado por São Francisco apresentava todos os aspectos que os movimentos de renovação viviam, o que o diferencia era insistência do fundador para que os seus frades permanecessem sempre fiéis à igreja de Roma. No modo como S. Francisco vivia a pobreza, pode-se perceber que em nenhum momento contestou-a com a palavra a Igreja ou a hierarquia religiosa.

2.3 SÃO FRANCISCO DE ASSIS: O NOVO CAVALEIRO DE CRISTO E A