• Nenhum resultado encontrado

Na língua Negarotê, há duas classes de consoantes que ocorrem na posição de coda silábica: coronais e laringais, sendo as primeiras as mais curiosas, por apresentarem maior complexidade quanto à sua realização na superfície. As consoantes coronais em coda nesta língua são mais vulneráveis à mudança30, assimilando o ponto da vogal ou dissimilando o seu ponto consonantal31.

30 Sobre a suscetibilidade das coronais à assimilação, Kenstowicz (1994, p.517) afirma que “coronals are more susceptible to Place assimilation than noncoronals: many languages (e.g., Lithuanian, Catalan) restrict nasal assimilation to [n], excluding [m] and [ŋ]; in Yakut coda [t] assimilates to a following labial or velar while [p] and [k] do not.”

31 Na língua Mamaindê, fenômeno semelhante acontece com as coronais em coda silábica. De acordo com Eberhard (2009), as consoantes coronais /T/, /S/ e /N/ são subespecificadas para o ponto de articulação, que é determinado pela influência da vogal precedente, através do processo de espraiamento do articulador ativo vocálico (V-Place) para o nó C-Place da consoante. A interpretação de que o que ocorre é um processo de assimilação que transforma as coronais em labiais seguindo ditongos labiais e dorsais seguindo a vogal /i/ ou ditongos terminados em /i/ parte do princípio de que todas as vogais em Mamaindê são dorsais, o que não se confirma nos dados do Negarotê. Conforme afirma o pesquisador:

The feature organization I argue for here is based on the Mamaindê data, which can be accounted for in the most straightforward manner by viewing all vowels as Dorsal. Within the Dorsal node, we can use [+/-back] to differentiate the front and back vowels. By viewing the front vowels as [-back] Dorsals, it facilitates their connection to a pre-velar consonant (such as a fronted /̩k̯/), which would also be characterized as a [-back] Dorsal. On the other hand,

Fonologia Segmental | 51 A oclusiva /t/ tem a sua realização influenciada pela vogal que a antecede, através de processos distintos, de assimilação e dissimilação do ponto de articulação. A forma default [t] é a preferencial, realizada sempre seguindo as vogais /a, e, o/ e opcionalmente seguindo /i, u/.

(031) /ja̰ta̰ˈpet-nih-tu/ [ja̰.ta̰.ˈbet.ni.ɾu] “pariri”

(032) /wotˈtuʔ-ta/ [ʋutˈduʔˌta] “coquinho quebrado e furado”

(033) /ˈkat-ˈta̰-ki-tu/ [ˈkatˌdaːɡeɾu] “tipo de feijão grande”

/t/ é realizada como labial [p], quando antecedida por ditongo com último segmento arredondado /au/ ou /eu/.

viewing the front vowels as [-ant] Coronals would require the use of a redundancy rule by which [-ant] Coronal consonants are realized as Dorsals. While both of these approaches are functional, the one involving Dorsal [-back] is the most straightforward in terms of the Mamaindê data. […] As for the organization of the other vowel features, I will be using the Labial feature for both vowels and consonants sincethe Mamaindê data appears to make no distinction between the round feature of vowels and the labial feature of consonants. I will therefore assume that when it isapplied to vowels, the Labial feature indicates rounding. (EBERHARD, 2009,

52 | Fonologia Negarotê

Figura 5. Assimilação do ponto labial pela consoante coronal

(034) /iuˈdeut-ki-tu/ [iwˈdepɡeɾu] “cavalo” (035) /wa̰-ˈjaut-sĩn/ [wa̰ˈjaptsĩ] “sente! (IMP)”

Através do processo de dissimilação, obedecendo ao OCP (Princípio do Contorno Obrigatório), /t/ é realizada como dorsal [k] quando seguindo vogal coronal /i/, ou ditongo com segunda vogal coronal, /ei/, /ai/, /ui/32. De acordo com o OCP, dois traços ou nós idênticos numa mesma camada, na subjacência, devem ser evitados. Dessa forma, um dos segmentos adjacentes tem o traço ou nó conflitante desligado, realizando-se como um segmento de classe distinta do segmento adjacente.

(036) /ˈseit-ˈni-tu/ [ˈsejkˌniɾu] “pássaro, tipo de.” (037) /nus-ˈit-ˈloʔweit-tu/ [nusˌikˈloʔweithu] “cílios”

32 Encontramos nos nossos dados apenas um caso de [k] realizado em coda silábica seguindo a vogal alta /u/, em [jukˈliːˌʃidndu] “carne de piau”.

Fonologia Segmental | 53

Figura 6. Dissimilação do ponto coronal da consoante em coda

d) /k/

/k/ é uma oclusiva dorsal surda, cujos alofones são [k], oclusiva dorsal surda, e [ɡ], oclusiva dorsal sonora. Este segmento tem ampla distribuição na língua Negarotê, não havendo restrição quando à sua ocorrência diante de vogais ou ditongos. /k/ pode aparecer em início, meio e final de palavra, em posição de onset silábico.

O alofone surdo, [k], é preferido em início de palavra33, seja em sílaba tônica ou átona. Em meio e final de palavra, é também preferida em sílaba tônica, realizando-se mesmo em ambiente sonoro.

(038) /ˈkan-tu/ [ˈkadndu] “abacaxi do campo” (039) /ˈkoʔta-leitã/ [ˈkoːtalejˌtã] “dançou”

33 Encontramos nos nossos dados raros casos da oclusiva dorsal sonora em início de palavra, em todos eles há variação com a contraparte surda.

54 | Fonologia Negarotê

(040) /ˈkei-ˈaun-ka-ˈta/ [ˈkejˌawɡaˌdaː] “mulher branca” (041) /kaˈlit-ˈkaʔ-te/ [kaˈliːkˌkaːte] “pé de najá” (042) /aiˈkeun-tu/ [ajˈkemdu] “fósforo”

[ɡ] é preferido em meio de palavra em sílaba átona. Pode ser realizado em sílaba tônica, em variação livre com [k], quando em ambiente sonoro adjacente — intervocálico ou precedido de consoante sonora.

(043) /ˈmãĩn-kaˈnĩn/ [ˈmãjŋɡeˌnĩ] “caju” (044) /ˈman-kaˈloh-tu/ [ˈmanɡaˌloːɾu] “roupa” (045) /saˈkĩn-ki-tu/ [siˈɡĩːɡiɾu] “arroz”

(046) /ˈmĩn-kaˈloh-tu/ [ˈmĩːɡoˌloːɾu] “cama/ mesa/ prateleira” (047) /ikoˈkoʔti-tu/ [iɡoˈkoʔthiɾu] “cigarra”

e) /ʔ/

A oclusiva laringal, /ʔ/, ocorre em meio e final de palavra, apenas em posição de coda silábica. Seu único alofone é [ʔ]. Pode seguir qualquer vogal ou ditongo, bem como aparecer em segunda posição de coda ramificada, após consoante nasal. A sua ocorrência mais frequente é em fronteira de morfema. Em fala rápida e espontânea, é comum a epêntese de segmentos oclusivos laringais

Fonologia Segmental | 55 não fonológicos nos ambientes de fronteira de morfema ou palavra, como nos exemplos (050) e (051).

(048) /jaˈmãʔ-tu/ [jaˈmãːʔthu] “flauta sagrada”

(049) /ˈniʔ-kaˈnĩn/ [ˈniʔkeˌnĩ] “resina”

(050) /haˈli-ˈna̰h-ˈte/ [haˈliʔˌnaː̰ɾe] “beber rápido” (051) /waˈnũn-ˈwaun-ˈhã/ [waˌnũʔˈwabmˌhã] “tudo bem?”

2.1.2.2.2 Fricativas

O inventário fonológico Negarotê conta com duas consoantes fricativas, quais sejam: a fricativa laringal /h/ e a fricativa coronal /s/. Ambos os segmentos podem ocorrer em início, meio e final de palavra, realizando-se nas posições de em onset e coda silábica.

Nas línguas Nambikwára do Norte, encontramos comportamentos distintos no que concerne às consoantes fricativas em posição de coda silábica. Em Mamaindê (Eberhard, 2009), as fricativas podem ocupar a posição final da sílaba, no entanto, não se realizam foneticamente nesta posição, uma vez que nesta língua o licenciamento da coda exige, pelo menos, um segmento [-contínuo]. (Eberhard, 2009, p.76). Este comportamento não é observado no Negarotê, cujo licenciamento da coda silábica permite segmentos [+contínuo]. Em Latundê e Lakondê, Telles (2002) afirma que, dentre as fricativas, apenas a laringal é licenciada em coda silábica, com realização fonética permitida.

56 | Fonologia Negarotê

a) /h/

A fricativa laringal, /h/, não tem restrição quanto à distribuição, podendo ocorrer, em posição de onset silábico, diante de qualquer vogal ou ditongo, em início e meio de palavra. O seu único alofone é [h].

(052) /ˈhat-tu/ [ˈhaʔthu] “cará do mato e da roça”

(053) /ˈhãn-si-tu/ [ˈhãːtʃiɾu] “branco” (054) /ˈwa̰i-ˈon-hã/ [ˈwa̰j ˈodnˌhã] “você está com

preguiça?” (055) /nakaˈliʔ-ˈhein-tu/ [nakaˌliʔˈhejdndu] "talha de buriti”

Em coda silábica, a realização de [h] ocorre preferencialmente em sílaba acentuada. Com frequência, a sua realização se dá como uma leve aspiração, às vezes pouco perceptível à audição, podendo também ser apagado na fala e compensado pelo alongamento da vogal antecedente34.

(056) /kaˈlih-ˈta̰-tu/ [kaˈlihˌɾaːɾu] “passarinho, tipo de.”

34 Este comportamento é similar ao que foi observado por Telles (2002, p. 78) no Latundê: “Em fim de sílaba, /h/ é produzido com fricção muito fraca. Quando é coda de sílaba acentuada, a fricativa sempre motiva o alongamento da vogal precedente, de cujo resultado será uma vogal longa com leve aspiração.”

Fonologia Segmental | 57 (057) /ˈtoh-noh-tu/ [ˈdoːhnuɾu] “açúcar”

(058) /ˈtḛhne-tu/ [ˈdḛːhneɾu] “mulher”

b) /s/

A fricativa coronal anterior surda, /s/, pode ocorrer tanto em posição de onset quanto ocupar a coda silábica. Em posição de onset silábico, pode aparecer diante de qualquer vogal ou ditongo, em início e meio de palavra, em sílaba átona ou tônica.

Os alofones de /s/ são [s], fricativa coronal surda, [ʃ], fricativa palatal surda, e [tʃ], africada alvéolo-palatal. Diante de vogal baixa e média, o alofone [s] é categórico, em início ou meio de palavra, independente da tonicidade ou não da sílaba.

(059) /ˈsaun-ˈta̰-tu/ [ˈsamˌdaːɾu] “mosquitinho” (060) /nasaˈlaʔ-tu/ [nasaˈlaːˌtu] “boi”

(061) /ˈtuʔ-soʔˈtaĩn-tu/ [duʔˈsoʔtãj du] “tipo de madeira (nome antigo do córrego)” (062) /ˈnunsa-ˈnait-tu/ [ˌnuːsaˈnajthu] “pilão da mão” (063) /seˈkeĩn-te/ [seˈkej de] “quero mijar” (064) /ˈiʔ-keˈsein-tu/ [ˌiʔkeˈsejndu] “matraca” (065) /nũsˈtan-tu/ [nũsˈtaːdu] “barriga”

58 | Fonologia Negarotê

[ʃ] e [tʃ] têm realização condicionada pela presença de vogal alta na adjacência, que favorece a palatalização da consoante coronal, podendo variar livremente entre si ou ainda com a fricativa coronal.

(066) /ˈsih-tu/ [ˈʃiːɾu] “tucangueira” (067) /ta̰-ˈsinsa-ˈtah-tu/ [taːˈʃiːtʃaˌdaːɾu] “minha prima” (068) /jeˈtaĩn-ˈsin-tu/ [jeˌdaj ˈʃiɡŋdu] “carne de mateiro” (069) /seiˈseit-tu/ [seˈʃejʔthu] “escorpião”

(070) /ˈsṵh-tu/ [ˈtʃṵːɾu] ~ [ˈsṵːɾu] ~ “balaio” [ˈʃṵːɾu]

(071) /ˈta̰n-si/ [ˈda̰ːtʃi] “deite-se! (IMP)”