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Oficialização e legitimação do sistema de medidas no Brasil, um processo lento

No documento ESCOLAR EM PORTUGAL E NO BRASIL OITOCENTISTAS (páginas 109-114)

MEDIDAS DE PESO

2.4.6. Oficialização e legitimação do sistema de medidas no Brasil, um processo lento

Não foi uma tarefa fácil a mudança das unidades de medida antigas pelas estabelecidas pela comissão francesa, principalmente em um país de dimensões como o Brasil. A própria França teve dificuldades em implantar o novo sistema; embora o seu uso fosse obrigatório desde 1801, não se conseguiu implantá-lo totalmente, muitos seguiam utilizando os padrões antigos. Só em 1837 foi pro- mulgada uma lei que obrigava a utilização do sistema de pesos e medidas, criado 46 anos antes.

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No Brasil, apenas em 1872, pelo Decreto nº 5169 foi aprovado o Regulamento do Sistema Métrico Decimal, então adotado. Continuavam sendo utilizadas, pela população em geral, os antigos padrões: a vara (1/36363636 do meridiano terrestre) e seus múltiplos e submúltiplos: braça palmo, polegada, além de milha e légua, craveiro, linha, pé, para medir comprimentos; a libra, grão, marco, onça, oitavo, quintal para pesar; a pipa, canada, almude, martelinho, quartilho, para medir líquidos; a vara quadrada e o pé quadrado, para a medição de superfícies e a vara cúbica, polegada cúbica, para a medida de sólidos. A população resistia em adotar o novo sistema, apesar de sua simplicidade e praticidade. Havia uma cultura formada presa aos antigos padrões de medida (ZUIN, 1999). Em 18 de setembro de 1872 foi estabelecido defi- nitivamente o sistema francês, que passou a ser o único e legal, a partir de 1o de janeiro de 1874.

Ocorreram, no Brasil, movimentos contrários à adoção dos novos padrões de medidas que ficaram conhecidos como “quebra-quilos”. Esse termo surgiu no Rio de Janeiro durante manifestações em 1871. Souto Maior (1978) considera que as arruaças foram realizadas por “grupos de marginais e desocupados” que depredaram casas comerciais, as quais utilizavam padrões do novo sistema de pesos e medidas francês. Como os manifestantes gritassem “Quebra os quilos! Quebra os quilos! A expressão passou genericamente a indicar todos os parti- cipantes dos movimentos de contestação ao governo no que diz respeito ao recrutamento militar, à cobrança de impostos e à adoção do sistema métrico decimal.” (SOUTO MAIOR, 1978, p. 56).

Em 1874, aconteceu a Revolta do Quebra-quilos, advinda da reação de populações sertanejas do nordeste, exatamente, contra o recrutamento militar, os impostos e à implantação dos novos pesos e medidas oficializados doze anos antes. (SOUTO MAIOR, 1978). As manifestações ocorreram em vários locais no país.51

51 Monteiro (1995) afirma que pelos relatórios policiais da época, em 78 localidades nordestinas ocorreram a “revolta do quebra-quilos”, sendo 35 na Paraíba, 23 em Pernambuco, 13 no Rio Grande do Norte e 7 em Alagoas.

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A destruição dos padrões de medidas não pode ser vista apenas como uma forma de manifestar o descontentamento da população com a imposição de um novo sistema metrológico, com os impostos e recrutamento militar, mas, também, como uma forma de protestar contra as autoridades, externando a grande insatisfação do povo pelas condições de vida a que estavam submetidos. (MONTEIRO, 1995).

Para Millet (1989), que foi personagem ocular, o movimento dos Quebra- quilos foi “o filho legítimo dos sofrimentos e mal-estar que a destruição do capital flutuante da lavoura e do comércio ocasionada às classes laboriosas do interior”, vindo, assim, a retirar dessas pessoas os “tutores do otimismo em que se compraziam, em obrigá-los a por na ordem do dia a necessidade de auxiliar a lavoura.” (p.23-24)52. O motivo da revolta estaria mais ligado à crise da agri- cultura no país. A falta de crédito, juros altos havia tornado os preços dos produtos exportados inferiores ao custo da produção. A situação dos agricultores e comerciantes era crítica.

A Lei 1.157 foi posta em execução pelo Visconde do Rio Branco em 1871, só chegando ao nordeste do país em 1874. Segundo Felix (1995), mesmo as autoridades da Província da Paraíba ignoravam a determinação imperial, des- conhecendo inclusive o termo “systema métrico decimal”. Para o autor, este fato aliado a não preparação da população para receber os novos padrões de medida foi responsável por gerar a não aceitação do novo sistema. Entretanto, enten- demos que, apesar da insatisfação da população com as condições de trabalho, com os impostos e recrutamento militar, destruir os padrões de medidas oficiais

52 Millet (1989) indica que oriundos da Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, os movimentos sediciosos eram compostos por “grupos numerosos, embora as mais das vezes desarmados” que invadiam “as povoações do interior, na ocasião das feiras semanais, opondo-se à percepção dos direitos municipais, quebrando ou dispersando as medidas do novo padrão, atacando as coletorias e câmaras municipais para queimar os respectivos arquivos, e praticando mais alguns desses desacatos, próprios das massas ignorantes quando se acham desenfreadas. O governo, como era da sua mais estrita obrigação, recorreu ao emprego da força para restabelecer a ordem e o prestígio das autoridades; houve de lamentar não poucas desgraças: consta, entretanto, das participações oficiais, que o império da lei se acha restaurado nos lugares onde brotara a sedição, e os principais pontos do Centro ocupados por numerosas forças de tropa de linha, polícia e guarda nacional destacada.

Graças ao telégrafo elétrico, aos vapores e locomotivas, as medidas de repressão foram tão prontas como eficazes, por ora não há mais que recear pela conservação da ordem material dessa primeira necessidade das sociedades civilizadas.” (p. 29).

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demonstra a sua renegação. Evidencia-se um choque com a tradição e cultura. Podemos verificar que a implantação dos padrões franceses no Brasil não aconteceu sem tensões e conflitos.

A Lei Imperial, ao determinar que o ensino do sistema métrico decimal deveria ocorrer nas escolas de instrução, tinha interesses econômicos e políticos.

No Brasil recém-independente havia aqueles que ansiavam por ver o país se constituir em uma nação livre das amarras de Portugal e sua emancipação também passava pelo estabelecimento de um sistema metrológico próprio. Fazer com que o Império tomasse os ares das nações européias significava aderir aos ideais políticos, filosóficos e econômicos dos países civilizados. Essa idéia já estava presente no discurso de Cândido Baptista Oliveira em 1830, tomando como principal referência a França. A oficialização do sistema métrico decimal no país seria o início de um novo tempo, porém, fortemente inspirado no ideal das Luzes.

Se alguns já anteviam o progresso e mudanças efetivas no país com a adoção do sistema métrico, outros o renegavam, ainda, fortemente aderidos à tradição, à cultura, ou mesmo contrários aos ideais dos revolucionários franceses, pois aceitar o sistema métrico também poderia implicar na adesão ao regime estabelecido na França.

Vale ressaltar que, embora a França tivesse tornado oficial o sistema métrico decimal em 1801, mesmo com Portugal e Brasil implementando mudan- ças na legislação para implantar o novo sistema em 1852 e 1862, respecti- vamente, ainda assim, estão entre os primeiros países a fazê-lo. Muitas nações só promoveram a implantação do sistema francês ao longo do século XX.

Vimos que a necessidade de medir tem suas origens na Pré-história, tendo uma diversidade de padrões nos diversos grupos humanos. As tentativas de unificação dos pesos e medidas não tinham êxito total pelo fato de as pessoas terem resistência ao novo, em função da grande influência da sua cultura e tradição ancestral. O Brasil foi fortemente influenciado pelos pesos e medidas

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portuguesas por razões óbvias, entretanto, outros sistemas e padrões sempre foram utilizados.

Apenas no final do século XVIII, na França, temos uma mudança mais drástica e efetiva, apesar de o processo de unificação dos pesos e medidas, através do sistema métrico decimal, ter sido lento no seu país de origem. As demais nações foram, aos poucos, cedendo ao sistema francês, mas existiram retrocessos exatamente devido à resistência popular.

Neste capítulo, apresentaremos um panorama da escola primária em Portugal e, a seguir, evidenciaremos algumas fontes primárias de pesquisa, nomeadamente livros de aritmética, metrologia e tabuadas, publicados por autores portugueses.

3.1. O sistema métrico decimal como saber escolar na escola primária

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