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2   OS REFLEXOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO EUROPEU NA

2.3 Organizações Públicas em Forma Privada na Itália: intersecção entre o direito

 

Conforme denota Duarte (2008), o Direito Administrativo Europeu é, por excelência, “um direito de redefinição das relações entre público e privado”.161 Irti (In: IRELLI, 2012), refletindo sobre a constante tensão entre o Direito Público e o Direito Privado, lança interessante observação:

                                                                                                                         

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SCARASCIA, Antonio. La nuova nozione di soggettività pubblica di derivazione comunitaria. Disponível em: http://www.lexitalia.it/articoli/scarascia_organismodp.htm. Acesso em: 10 de maio de 2014.

159

IRELLI, Vincenzo Cerulli. Amministrazione pubblica e diritto privato. Torino: G. Giappichelli, 2012, p.46.

160

UNIÃO EUROPEIA. Corte de Justiça. Sentenças 10.4.2008 C-393/06; 10.11.1998 C-360/96. Disponível em: curia.europa.eu. Acesso em: 20 de maio de 2015.

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E aqui resgata-se a reflexão sobre a relatividade histórica destes predicados: não há, nem nunca houve em tempos passados, um catálogo de interesses privados ou interesses públicos. O que é privado hoje pode se tornar público amanhã; o que é público hoje pode ser privado amanhã. Se o Estado de Direito é, nos tempos de nossas vidas, Estado parlamentar de partidos, interesses privados e interesses públicos, portanto, dependem de uma escolha de política, a qual lhes ordena, lhes fornece ou lhes tira a tutela, classifica-os e coloca-os na hierarquia preferência162.

Na Itália, a redefinição do que é público e do que é privado manifestou-se em diversas áreas, inclusive no que se refere à organização administrativa.

Dispõe o art. 97, da Constituição da Itália, que

As repartições públicas são organizadas de acordo com a lei, de modo a garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração.

No ordenamentos das repartições serão determinadas as esferas de competência, deveres e responsabilidades próprias dos funcionários.

O emprego na administração pública é acessada através de concurso público, exceto os casos previstos em lei163. (Tradução livre)

Embora o tema da utilização de formas privadas por organismos públicos não seja novo, Irelli (2012), analisando o preceito constitucional em referência, alerta que a organização pública no ordenamento jurídico vigente na Itália é composta não apenas de Administração Pública strictu sensu, englobando, também, múltiplos sujeitos que são pessoas jurídicas de direito privado164.

Isto porque a atividade jurídica da organização pública é exercida, no Direito Administrativo italiano, segundo o módulo de direito público, não sendo proibido, contudo, o exercício da atividade administrativa por sujeitos de direito privado.

Por essa razão, o autor sustenta a existência de um direito privado da organização pública (diritto privato dell`organizzazione pubblica) ou direito privado da ação administrativa (diritto privato dell`azione amministrativa), que registra a presença de organizações formalmente privadas no exercício de funções administrativas.

Assim, em que pese se tratar de entidades constituídas sob as regras do Código Civil italiano, são substancialmente públicas, na medida em que exercem competências próprias de Administração Pública, gerindo recursos públicos e sob controle do poder público165.

Para o referido autor, essas entidades são denominadas organizações públicas em forma privada (organizzazioni pubblici in forma privatistica) e podem ser sistematizadas em                                                                                                                          

162

IRTI, Natalino. In: IRELLI, Vincenzo Cerulli. Amministrazione pubblica e diritto privato. Torino: G. Giappichelli, 2012, p.X.

163

ITALIA. Constituzione della Repubblica italiana. Disponível em: http.://www.governo.it. Acesso em: 29 de março de 2015.

164

IRELLI, Vincenzo Cerulli. Amministrazione pubblica e diritto privato. Torino: G. Giappichelli, 2012, p. 38.

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três espécies: as associações, as fundações e as sociedades por ações ou outras sociedades comerciais, de capital exclusivamente público ou misto.

As formas privadas caracterizadas pelas associações e fundações, assim como ocorre no Direito brasileiro, são regidas pelo Código Civil e não trazem características distintivas dignas de nota.

No que se refere às sociedades por ações, por influência do Direito Administrativo comunitário, é possível distingui-las, ainda, em duas subespécies: aquelas sociedades por ações no exercício de atividade de empresa, ou seja, comercial, denominadas empresas públicas (imprese pubbliche); e outras sociedades por ações que, embora abranjam também uma forma organizacional de sociedade comercial, não são afetas ao exercício da atividade de empresa, e sim à competência de Administração Pública, de caráter não negocial e controladas majoritariamente pelo Poder Público (società in mano pubblica ou in house)166.

Por essa razão, Irelli (2012) prefere a expressão organismos de direito público, na medida em que podem ser constituídos, também, de forma societária, desde que atendam a interesse geral, não comercial e com financiamento majoritariamente público.

Contudo, a utilização de formas privadas por organismos públicos gera uma série de problemas de natureza prática, uma vez que, conforme já afirmado, não há um critério único para a identificação da natureza publicista dessas entidades e muito menos para a determinação se as regras incidentes serão de direito público ou de direito privado.

O fio condutor dessa complexa caracterização seria, para Irelli (2012), seguir a tendência da matriz comunitária, analisando, em cada caso, a razão da dominância pública existente. Essa leitura deve ser realizada partindo-se da legislação definidora da entidade, acrescida da análise de normas sobre ela incidentes em matéria de organização, contabilidade, controle, em ordem a disciplina de pessoal, limitação de capacidade, gestão dos bens, de responsabilidade dos administradores, dentre outras.

Há de se lembrar, contudo, que essas entidades públicas organizadas sob vestimentas privadas, em suas atividades contratuais, deverão seguir os critérios de evidenza pubblica e serão submetidas à justiça administrativa167.

Portanto, a organização pública italiana, em atendimento à classificação comunitária, configura-se como aquela composta pelas Administrações Públicas, ou seja, organizações

                                                                                                                         

166

IRELLI, Vincenzo Cerulli. Amministrazione pubblica e diritto privato. Torino: G. Giappichelli, 2012, p.39- 40.

167  

públicas em senso próprio, de uma parte, e organizações públicas em forma privadas, de outra168.

2.3.1 As sociedades in house e a intersecção entre o direito público e direito privado

A expressão in house, originária do Reino Unido, conforme aponta Calogero (2010), foi utilizada pela primeira vez no âmbito da Comunidade Europeia no ano de 1996, durante a análise de contratos firmados em âmbito interno pelos países-membros com suas empresas estatais, ou seja, entre a Administração Pública e uma entidade societária inteiramente ou majoritariamente controlada pelo Poder Público169.

Para Chiti (2013), a expressão in house está inserida no contexto de privatização de alguns serviços públicos e da proliferação do uso de formas organizativas societárias no Direito Administrativo Europeu170.

É possível afirmar que a in house providing constitui-se um modelo organizativo no qual a Administração Pública, manifestando seu poder de auto-organização e, no caso do Direito Administrativo europeu, à luz dos princípios da autonomia institucional e da indiferença das formas jurídicas, persegue a realização de uma atividade tipicamente pública, embora possua vértice privado.

Para Mangani, Marzari e Spinelli,

Em linhas gerais, concretiza-se a gestão in house quando uma administração pública, em senso comunitário, não recorre ao mercado para buscar bens ou serviços ou para fornecer à coletividade a prestação de serviços públicos. Mais precisamente, a modelo in house representa uma modalidade alternativa a aplicação da disciplina comunitária de aquisições e serviços públicos, pelo que é organizável, por parte de uma entidade pública, a produção ou o fornecimento de bem ou serviço público171. (Tradução livre)

                                                                                                                         

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O Prof. Vicenzo Irelli afirma que: (...) associações e fundações, bem como sociedade por ações que admitem tarefas de administração pública, mas não para atividade de empresa, são inscritas ao genus de organismos de direito público, enquanto outras sociedades (mesmo formalmente equipada as primeiras) operadoras de atividade de empresa, são inscritas, para fins de aplicação da disciplina dos contratos públicos, ao genus de empresas públicas. IRELLI, Vincenzo Cerulli. Amministrazione pubblica e diritto privato. Torino: G. Giappichelli, 2012, p.47.

169

CALOGERO, Armando. La società in house tra pubblico e privato dopo Il D.P.R. 168/2010. Disponível em: http://www.innovazionediritto.unina.it/archivionumeri/1005/calogero.pdf. Acesso em: 02 de abril de 2015, p. 73.

170

CHITI, Mario. La pubblica amministrazione. In: CHITI, Mario P. (org.). Diritto amministrativo europeo. Milano: Giuffrè, 2013, p .198.

171

MANGANI, Roberto; MARZARI, Francesco; SPINELLI, Daniele. Il nuovo codice dei contratti pubblici. Milano: Il Sole 24 Ore. p. 48.

Como vislumbram o interesse geral e necessariamente não comercial, essas pessoas jurídicas de natureza privada serão equiparadas em diversos aspectos àquelas de natureza pública, seja para se valer de suas prerrogativas quanto para se submeter às formas típicas de controle, justiça administrativa e procedimento de evidenza pubblica, dentre outros.

A consequência dessa afirmação é que as sociedades in house, independentemente da forma societária adotada, diferenciam-se das empresas públicas atuantes na atividade comercial e daquelas não controladas pelo Poder Público. Sobre as sociedades in house, prevalecerá um regime jurídico híbrido, no qual incidirão tanto normas de direito público quanto de direito privado.

Nesse sentido, Capalbo (2015) conclui que a caracterização dessas sociedades representa um dos exemplos mais atuais da crescente intersecção entre o direito público/administrativo com o direito privado/civil, o que requer a releitura dos paradigmas publicistas clássicos172.

Para Spinelli, no Direito italiano a expressão in house refere-se a uma pluralidade de situações jurídicas “tanto em matéria de aquisições quanto de serviço público”173. No que se refere às aquisições públicas, a referida autora entende que subjace o fenômeno pelo qual se exclui a aplicação das regras de concorrência, visto que não se trata de um “terceiro” e sim da própria administração, ou seja, de um sujeito que é parte.

Feitas essas considerações sobre as sociedades in house providing, as quais serão necessárias para a compreensão do modelo de central de compras italiano, no próximo capítulo será apresentado o estudo de caso da Consip Spa.

Se, por um lado, é interessante observar os movimentos cíclicos de centralização e descentralização pelos quais passa a Administração Pública – o que também se verifica na Itália – de outro, não menos desafiador, é a compreensão da sistematização do modelo central de compras italiano, realizada por intermédio de uma entidade pública de vértice privado, mas considerada in house: a Consip SpA.

                                                                                                                         

172

CAPALBO, Ferruccio. Le società partecipate dagli enti pubblici: um problema di teoria generale.

Disponível em:

http://www.ancrel.campania.it/public/societa%20partecipate%20un%20problema%20di%20teoria%20gener ale.pdf. Acesso em 02 de abril de 2015.

173

MANGANI, Roberto; MARZARI, Francesco; SPINELLI, Daniele. Il nuovo codice dei contratti pubblici. Milano: Il Sole 24 Ore. p.48.  

3 O SISTEMA CONSIP: SURGIMENTO, EVOLUÇÃO E PRINCIPAIS