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Origem da doutrina das penas eternas

No documento O CÉU E O INFERNO. Allan Kardec (páginas 69-74)

das penas eternas – Impossibilidade material das penas eternas –

A doutrina das penas eternas teve seu tempo – Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original

Origem da doutrina das penas eternas

1. A crença na eternidade das penas perde terreno com tal frequência que não é preciso ser profeta para prever seu fim. Foi combatida por argumentos tão fortes e decisivos, que parece supérfluo ainda falar sobre o assunto. Bastaria deixá-lo se extinguir. Não se pode negar, entretanto, que, por mais ultrapassada que esteja esta crença, não haja ainda adver- sários que a defendam com vigor e ridicularizam as ideias novas, por ser essa crença um lado muito vulnerável, cujo desaparecimento terá previsíveis consequências. Por esse ponto de vista a questão merece um sério exame.

2. A doutrina das penas eternas, como a do inferno material, teve sua razão de ser, porque poderia ser um freio aos homens pouco avançados intelectual e moralmente. Mesmo que pouco ou nada se preocupassem com a perspectiva de penas morais não teriam se importado nada com a ideia de penas temporais. Não teriam mesmo compreendido a justiça

das penas graduais e proporcionais, porque não estavam preparados para perceber as diferenças, às vezes sutis, entre o bem e o mal e o valor relativo das circunstâncias atenuantes ou agravantes.

3. Quanto mais primitivo é seu estado, mais materialistas são os homens e o senso moral se desenvolve mais tarde. Por isso mesmo têm uma ideia muito imperfeita sobre Deus e Seus atributos e mais vaga ainda sobre a vida futura. Deus tem uma natureza semelhante à deles. É um soberano absoluto, tão terrível quanto invisível, como um tirano que, escondido em seu palácio, jamais se mostra a seus súditos. É poderoso apenas pela força material, já que não compreendem a força moral, e, portanto, só é visto com um raio na mão, entre relâm- pagos e tempestades, semeando por onde passa a ruína e a desolação, a exemplo de guerreiros invencíveis. Um Deus de mansuetude e miseri- córdia não seria para eles um Deus, mas um ser fraco, que não saberia se fazer obedecer. A vingança implacável, os terríveis e eternos castigos em nada contrariavam a ideia que tinham de Deus e em nada contra- riavam a razão desses homens em estado primitivo. Deus, que lhes era superior, deveria ser mais terrível que eles, que já eram implacáveis em seus ressentimentos, cruéis com os inimigos, sem piedade com os vencidos.

Para tais homens eram necessárias crenças religiosas semelhantes às suas naturezas ainda rudes. Uma religião espiritual, plena de amor e caridade, não poderia combinar com a brutalidade de seus costumes e paixões. Não censuremos, pois, Moisés e sua legislação, cruel e severa o suficiente para conter seu povo indócil nem o fato de ele ter criado a imagem de um Deus vingativo. Era necessário, naquela época. A doce doutrina de Jesus teria sido impotente e não teria encontrado repercussão.

4. À medida que o Espírito se desenvolvia, o véu material pouco a pouco se dissipou, e se tornaram gradativamente mais aptos para compreender as coisas espirituais. Em seu tempo, Jesus pôde falar de um Deus clemente, de Seu reino que não é deste mundo e dizer aos homens: “Amai-vos uns aos outros, fazei o bem aos que vos odeiam”, contrapondo-se aos antigos que diziam: “olho por olho, dente por dente”.

Ora, quem eram os homens que viviam no tempo de Jesus? Seriam almas recentemente criadas e encarnadas? Se fossem, Deus as teria criado, então, mais avançadas do que no tempo de Moisés. Neste caso, em que teriam se transformado aquelas criadas no tempo de Moisés? Teriam eternamente se enfraquecido no embrutecimento? O simples bom senso rejeita esta suposição: não! Eram as mesmas almas que, após terem vivido sob o império da lei mosaica1, tinham, durante várias exis-

tências, adquirido um desenvolvimento suficiente para compreender uma doutrina mais elevada e que, hoje, têm o avanço necessário para receber um ensinamento ainda mais completo.

5. Entretanto, o Cristo não pôde revelar a Seus contemporâneos todos os mistérios sobre o futuro. Ele mesmo disse: “Eu teria ainda muitas coisas a vos dizer, mas vós não as compreenderíeis. Por isto vos falo por parábolas”. Sob o ponto de vista moral, isto é, dos deveres dos homens para com o próximo, o Cristo foi bastante explícito, porque sabia que seria compreendido, abordando o lado sensível da vida mate- rial. Mas limitou-se a semear outros pontos, de forma alegórica, para que fossem desenvolvidos mais tarde.

A doutrina das penas e recompensas futuras ficou entre as questões a serem esclarecidas mais tarde. Principalmente no que diz respeito às penas, Jesus não poderia romper de uma só vez todas as ideias exis- tentes. Ele vinha falar sobre novos deveres aos homens, substituir o espírito de ódio e vingança pelo amor e caridade, o egoísmo pela abne- gação, o que já era bastante. Não podia, racionalmente, enfraquecer a crença no castigo reservado aos prevaricadores, sem enfraquecer ao mesmo tempo a ideia de dever. Prometia aos bons o reino dos céus, proibido aos maus. Portanto, para onde iriam os maus? Era preciso uma contrapartida que impressionasse as inteligências ainda muito materialistas para se identificar com a vida espiritual. Não se pode perder de vista que Jesus se dirigia aos povos, à parte menos esclare- cida da sociedade, para os quais era necessário usar imagens de alguma

(1) Nota da tradução: Lei mosaica era o código de lei que Deus teria dado a Moisés no Monte Sinai.

Era um código muito rígido de justiça e castigo que previa a morte para quem não cumprisse qual- quer um de seus pontos.

maneira bem palpáveis e não ideias sutis. Por isto, não entrou em deta- lhes supérfluos. Nessa época bastava-lhe opor uma punição à recom- pensa, não mais que isto.

6. Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo do inferno, também os ameaçou de serem jogados na Geena2. Ora, o que seria a Geena? Um

lugar nos arredores de Jerusalém, onde se jogavam as imundícies da cidade. Poder-se-ia interpretar essa passagem ao pé da letra? Era uma dessas figuras enérgicas de linguagem que usava para impressionar as massas, da mesma forma que falava em fogo eterno. Se não era isto que pensava, estaria sendo contraditório ao exaltar a clemência e a mise- ricórdia de Deus. Porque clemência e inexorabilidade são conceitos contrários que se anulam. Seria equivocado ver no sentido das palavras de Jesus uma aprovação ao dogma das penas eternas a partir de tudo o que Seu ensinamento proclama da mansidão do Criador.

Na oração do Pai Nosso, nos ensina a dizer: “Senhor, perdoai-nos as nossas ofensas, assim como perdoamos aqueles que nos ofenderam”. Seria inútil pedir perdão se o culpado não pudesse esperar qualquer perdão. Mas seria um perdão sem condições? Seria uma graça, uma remissão pura e simples da pena? Não! A medida desse perdão é subordinada à maneira como nós perdoamos. Isto é, se não perdoamos, não seremos perdoados. Deus, colocando o esquecimento das ofensas como uma condição absoluta, não poderia exigir que o homem, sendo fraco, fizesse o que Ele, Todo-Poderoso, não faria. O Pai Nosso é um protesto diário contra a eternidade da vingança de Deus.

7. A ideia de fogo material não chocava os homens que só tinham uma noção confusa da espiritualidade da alma, principalmente porque era a ideia da crença comum, vinda do inferno dos pagãos, aceita quase que universalmente. A eternidade da pena também não assustava as pessoas submetidas por séculos à legislação do terrível Jeová. Para Jesus,

(2) Nota da tradução: Geena, palavra grega, corruptela de “Vale do Hinom”, uma depressão pro-

funda ao sul de Jerusalém. No governo de Manassés, os hebreus sacrificavam seus próprios filhos a Moloque, um ídolo oco, aquecido por dentro até ficar em brasa, e então as crianças sacrificadas eram colocadas em seus braços. Mais tarde, virou um lixão de Jerusalém, onde eram queimadas as carcaças de animais e os corpos de assassinos mortos. O fogo e a fumaça do lixo sempre queimando criaram uma imagem de inferno para os hebreus. Também porque era um lugar onde o lixo era queimado passou a ser sinônimo de castigo eterno.

o fogo do inferno podia ser apenas uma figura de linguagem e pouco Lhe importava que fosse tomada ao pé da letra, desde que servisse como um freio. Ele sabia muito bem que o tempo e o progresso se encarrega- riam de esclarecer o sentido alegórico. Por isso previu que o Espírito de Verdade viria esclarecer os homens sobre todas as coisas.

O caráter essencial das penas irrevogáveis é a inutilidade do arrepen- dimento. Ora, Jesus nunca disse que o arrependimento não alcançaria a graça de Deus. Ao contrário, em todas as oportunidades, mostrou Deus clemente, misericordioso, pronto a receber o filho pródigo que volta à casa paterna. Mostra Deus inflexível apenas para com o pecador endu- recido. Mas, ainda assim, se há o castigo, há sempre o perdão, pronto a se estender ao culpado que se volte sinceramente para Deus. Certa- mente não é verdadeiro o quadro de um Deus impiedoso. Também é preciso lembrar que Jesus jamais falou sobre condenação irremediável, nem mesmo ao pior dos culpados.

8. Todas as religiões primitivas, de acordo com as características dos povos, tiveram seus deuses guerreiros, que combatiam, à frente dos exércitos. O Jeová dos hebreus lhes fornecia mil formas de exterminar os inimigos, os recompensava pelas vitórias e os castigava pela derrota. A partir da ideia que tinham de Deus, acreditavam que O honrariam ou O apaziguariam com o sangue de animais ou de pessoas. Daí os sacrifí- cios sangrentos que tiveram tão importante papel em todas as religiões antigas. Os judeus tinham abolido os sacrifícios humanos. Os cristãos, apesar dos ensinamentos do Cristo, acreditaram por muito tempo que honravam o Criador, torturando e queimando os hereges. Era outra forma de sacrifício humano, já que a praticavam, em cerimônias reli- giosas, para a maior glória de Deus. Ainda hoje os exércitos invocam Deus antes do combate e O glorificam depois da vitória, em guerras geralmente travadas pelas causas mais injustas e anticristãs.

9. Como o homem é lento para se desfazer de seus preconceitos, seus hábitos e suas ideias primitivas! Quarenta séculos nos separam de Moisés e nossa geração cristã vê ainda traços de antigos costumes bárbaros, senão consagrados, pelo menos aprovados pela atual reli- gião!

Foi necessária a força de opinião de pessoas não ortodoxas, encaradas como heréticas, para pôr um fim às fogueiras e fazer compreender a verdadeira grandeza de Deus. Mas a ideia de um Deus cruel é tão enrai- zada nas pessoas que, na falta de fogueiras, vigoram ainda as persegui- ções materiais e morais. Alimentado por sentimentos que lhe foram incutidos desde a infância, sobre um Deus que se sente glorificado por atos bárbaros, poderia o homem se surpreender se este Deus condena a torturas eternas e vê sem piedade os sofrimentos dos condenados?

Sim, os filósofos, considerados ímpios por alguns, são os que se escandalizaram ao ver o nome de Deus profanado por atos indignos. Eles é que mostram aos homens um Deus em toda Sua grandeza, sem as paixões e mesquinhez humanas, como pregava a crença não esclarecida. Com isso, a religião ganhou em dignidade o que perdeu em prestígio exterior, porque agrega menos homens presos à forma e muitos mais que são religiosos sinceros, pelo coração e pelos sentimentos.

Mas, ao lado destes, há muitos que se prenderam às aparências e foram conduzidos à negação de toda a Providência! Por falta de proposta de crenças religiosas harmônicas com o progresso da razão humana, muitos aderiram ao deísmo3, outros à incredulidade absoluta, outros

ao Panteísmo. Isto é, na falta de um Deus completamente perfeito, o homem se faz deus a si mesmo.

No documento O CÉU E O INFERNO. Allan Kardec (páginas 69-74)