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Samuel Filipe

No documento O CÉU E O INFERNO. Allan Kardec (páginas 182-186)

Samuel Filipe era um homem de bem, na acepção da palavra. Ninguém se lembrava de tê-lo visto fazer uma má ação nem de ter, voluntariamente, feito mal a quem quer que seja. De um devotamento sem limites com os amigos, dava a segurança de estar sempre pronto, quando se tratava de prestar algum serviço, mesmo que à custa de seus interesses. Esforço, cansaço, sacrifício, nada o impedia de ser útil e o fazia naturalmente, sem ostentação, surpreendendo-se quando lhe era atribuído algum mérito. Nunca atacou os que lhe faziam algum mal e os tratava de tal forma que parecia que lhes tinham feito um bem. Quando tinha algum problema com pessoas ingratas, pensava: “Não é a mim que é preciso lamentar, mas a eles mesmos”. Embora muito inteligente e dotado de Espírito natural, sua vida, de muito trabalho, tinha sido obscura e cheia de rudes provas. Era uma dessas naturezas de elite que florescem na sombra, com que o mundo não se importa muito e cujo brilho não reflete sobre a Terra. Pelos conheci- mentos do Espiritismo, tinha uma fé ardente na vida futura e uma grande resignação com os males da vida terrena. Morreu em dezembro de 1862, com 50 anos, depois de uma dolorosa doença, sinceramente pranteado por sua família e por alguns amigos. Foi evocado várias vezes após a morte.

P – O senhor tem uma lembrança clara de seus últimos momentos na Terra?

R – Perfeitamente. A lembrança me vem aos poucos, porque naquele momento eu estava ainda confuso.

P – Para nossa instrução e pelo interesse que nos inspira sua vida exemplar, poderia nos descrever como se deu sua passagem da vida

corporal para a vida espiritual e qual sua situação no mundo dos Espí- ritos?

R – Com prazer, essa narrativa não será útil apenas para vocês, mas também para mim. Voltando-me aos pensamentos na Terra, a compa- ração me faz avaliar melhor ainda a bondade do Criador.

Vocês sabem quantas atribulações tive em minha vida. Nunca perdi a coragem na adversidade, graças a Deus! Hoje me congratulo por isto. Quanto eu teria perdido, se tivesse perdido a coragem! Tremo só de pensar que, por fraqueza, tudo o que sofri tivesse sido sem proveito e eu tivesse que recomeçar. Meus amigos, possam vocês acreditar nesta verdade, porque disto depende sua felicidade futura! Não, certamente, alguns anos de sofrimento não significam pagar muito caro por esta feli- cidade. Se vocês soubessem como alguns anos são muito pouco, diante do infinito!

Se vocês acham que minha última existência teve algum mérito, não diriam o mesmo das anteriores. Foi à força de muito trabalho que me transformei no que sou agora. Para apagar os últimos traços de meus erros anteriores, era preciso ainda sofrer essas últimas provas, que volun- tariamente aceitei. Busquei na firmeza de minhas resoluções a força para suportá-las sem queixas. Hoje, bendigo essas provas, com as quais rompi com o passado, que agora é apenas uma lembrança para mim. E posso daqui para a frente olhar com legítima satisfação o caminho que percorri.

“Oh! Vocês que me fizeram sofrer na Terra, que foram duros e mal- -intencionados comigo, que me humilharam e me cobriram de amar- gura, vocês, cuja maldade muitas vezes me levaram às piores privações, não somente os perdoo como agradeço. Querendo me fazer o mal, não imaginam como me fizeram o bem. Portanto, é verdade que devo a vocês a felicidade de que gozo, porque me deram a oportunidade de perdoar e de devolver o mal com o bem. Deus os colocou em meu caminho para provar minha paciência e me exercitar na prática da cari- dade mais difícil: a de amar os inimigos.

“Não se impacientem por eu me desviar do assunto, já chego ao que vocês perguntaram.

“Embora sofrendo cruelmente em minha última doença, não tive qualquer agonia, a morte veio como um sono, sem luta, sem traumas. Não tendo medo do futuro, eu não estava agarrado à vida. Em conse- quência, não tive que me debater com os últimos apertos. A separação ocorreu sem esforços, sem dor e sem que eu percebesse.

“Ignoro quanto tempo durou esse último sono, mas foi curto. O despertar foi de uma calma que contrastava com meu estado anterior. Não sentia mais dor e estava contente, queria me levantar, andar, mas um entorpecimento nada desagradável e até com um certo encanto, me segurava. Então me abandonei a esse torpor com uma espécie de volúpia, sem ter consciência de minha situação e sem duvidar de que tinha deixado a Terra. O que me cercava me aparecia como em um sonho. Vi minha mulher e alguns amigos de joelhos no meu quarto, chorando, e pensei que certamente acreditavam que eu estava morto. Quis avisá-los de que estavam enganados, mas não pude articular nem uma palavra e imaginei que estava sonhando. O que confirmou essa ideia foi que me vi cercado por pessoas amadas, que tinham morrido havia muito tempo, e por outras que não reconheci em um primeiro momento, que pareciam me velar e esperar meu despertar.

Esse estado foi entremeado de instantes de lucidez e de sonolência, durante os quais eu recuperava e perdia alternadamente a consciência de meu eu. Pouco a pouco minhas ideias adquiriram mais nitidez, a luz que eu só entrevia através de uma névoa ficou mais brilhante. Então comecei a me reconhecer e compreendi que não pertencia mais ao mundo terreno. Se eu não tivesse conhecido o Espiritismo, a ilusão teria, sem dúvida, sido muito mais prolongada.

Meus restos mortais ainda não tinham sido enterrados e eu já os olhava com piedade, feliz por ter me livrado deles. Estava tão feliz de ser livre! Respirava à vontade, como alguém que sai de uma atmosfera repugnante. Uma indescritível sensação de felicidade penetrava todo meu ser, a presença daqueles que eu tinha amado me enchia de alegria. Eu não estava nem um pouco surpreso em vê-los. Tudo parecia tão natural, parecia-me revê-los depois de uma longa viagem. Uma coisa ainda me espanta: nós nos entendíamos sem articular nenhuma palavra,

nossos pensamentos se transmitiam apenas pelo olhar, como uma espécie de penetração fluídica.

Entretanto, eu não estava completamente livre das ideias terrenas. A lembrança de tudo o que tinha sofrido me voltava de tempos em tempos, como para me fazer valorizar ainda mais a nova situação. Sofri no corpo, mas sobretudo sofri moralmente, fui alvo de maledicências, dessas mil perplexidades mais penosas talvez que a infelicidade real, porque causam uma eterna ansiedade. A impressão desse sofrimento não estava completamente apagada e às vezes me perguntava se real- mente eu tinha me libertado de tudo. Parecia-me ainda ouvir algumas vozes desagradáveis, receava as dificuldades que tantas vezes me ator- mentaram e, contra minha vontade, eu tremia. Eu me tocava, por assim dizer, para ter certeza de que não estava sonhando. Quando tive certeza de que tudo aquilo tinha acabado, parecia que me tinha sido tirado um peso enorme. Então é verdade, pensava, que enfim estou livre de todas as preocupações que foram o tormento de minha vida, e dava graças a Deus. Estava como um pobre que de repente recebe uma grande fortuna e durante algum tempo duvida da realidade e sente medo da necessidade. Ah! Se os homens compreendessem a vida futura, que força, que coragem esta convicção lhes daria diante da adversidade! O que não fariam, enquanto estão na Terra, para assegurar a felicidade que Deus reserva a Seus filhos que são obedientes à Sua lei! Veriam que todas as alegrias que vivenciam não são nada, perto daquelas que negligenciam!”

P – Esse mundo tão novo para o senhor, perto do qual o nosso é quase nada, os inúmeros amigos que encontrou fizeram-no se esquecer de sua família e dos amigos na Terra?

R – Se eu os tivesse esquecido, seria indigno da felicidade que tenho. Deus pune e não recompensa o egoísmo. O mundo em que estou pode me fazer ignorar a Terra, mas não os Espíritos que aí estão encarnados. Somente entre os homens a prosperidade faz esquecer os amigos de infortúnio. Vou sempre rever os meus, fico feliz com a boa lembrança que guardam de mim. Eles me atraem com o pensamento, ouço suas conversas, gozo suas alegrias. Seus sofrimentos me entristecem, mas não

é essa tristeza ansiosa da vida humana, porque sei que são passageiros e pelo próprio bem deles. Fico feliz em pensar que um dia eles virão para essa morada afortunada, onde não se conhece a dor. Dedico-me a torná-los dignos de virem para cá, esforço-me para sugerir-lhes bons pensamentos e, sobretudo, a resignação à vontade de Deus que eu mesmo tive. Meu maior sofrimento é quando os vejo retardarem esse momento, por falta de coragem, por suas lamentações, dúvida sobre o futuro ou qualquer outro ato repreensível. Tento então desviá-los do mau caminho. Se consigo, é uma grande felicidade e todos nos regozijamos aqui. Se fracasso, lamento comigo mesmo: mais um atraso para eles, mas me consolo pensando que nem tudo está perdido sem retorno.”

Samuel Filipe

No documento O CÉU E O INFERNO. Allan Kardec (páginas 182-186)