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CAPÍTULO III: A(O)S ALUNA(O)S EM CONFLITOS

3.4. Origem Social e Étnica da(o)s Normalistas

Outra questão intrigante seria a origem social das alunas e dos alunos da EN durante o período analisado por esse trabalho. Levando em consideração que as meninas das elites não exerciam o magistério e que no caso do aprendizado de boas maneiras e preparação para o

46 Idem.

casamento haveria boas escolas particulares e religiosas, a aluna que enfrentasse de quatro a cinco anos de escola normal visaria o exercício efetivo do magistério, pelo menos até o seu casamento. A respeito de sua condição social foram encontradas algumas pistas que ajudam a clarear a questão.

Quando da constituição da escola normal republicana, que estabelecia dois turnos diários, houve um abaixo-assinado de trinta e cinco alunas no sentido de transformar o horário para apenas um turno. Entre vários argumentos era dito a necessidade de quatro viagens duas de ida e duas de volta e “(...) essas viagens são feitas a pé, por falta de recursos pecuniários de quase todas, sob uma temperatura elevada que sempre se observa nessa cidade depois das 10 horas, ou sob chuvas torrenciais que cahem frequentemente ás tardes (...)”.48 A questão das chuvas da tarde em Belém era recorrente nas representações da cidade do passado e continua sendo na cidade do presente. Ao se marcar um encontro à tarde, costumava-se dizer: antes ou depois da chuva? Em outros momentos, estabelecia-se um horário preciso: chuva das três. Hoje as mudanças climáticas dos últimos tempos diminuíram muito essa precisão, alterando horários e planejamentos dos belemenses.

Em um documento sem data e assinatura, possivelmente de 1918, o diretor Elias Vianna, comunicou ao Secretario Geral do Estado a respeito de um pedido da aluna Maria Stella Rocha Sótão, que solicitava ao Governador um novo exame de História Natural. O diretor, embora considerasse que o pedido feria o regulamento e que a aluna não seria merecedora, lembrava:

“(...) Conquanto, attendendo a razão, embora, de ordem puramente sentimental, exposta pela alunna e decorrente da necessidade em que julga estar de ‘por todos os meios ao seu alcance tentar destruir os desastrosos effeitos de sua reprovação, afim de corresponder aos sagrados esforços de seus paes, que, por

paupérrimo, (sic) só a custo dos mais penosos sacrificios tam-na (sic) podido manter em seus estudos’ não me opponho a que um novo exame seja

facultado a requerente, tanto mais quanto é o ultimo que lhe falta para completar o curso especial desta Escola”.49 [negrito nosso]

Em 20 de maio de 1893, o diretor, Raymundo Joaquim Martins, numa correspondência ao Governador do Estado, justificando um suprimento de verba para uma compra efetuada no exterior afirmava: “No intuito de facilitar ás alumnas deste estabelecimento, em sua maioria pobres, os objetos necessários para o estudo de prendas, muitos dos quais são caros, mandei vir do estrangeiro uma factura deles (...)”. 50

48 APEP. Caixa: Governo do Pará: Ofícios: Escola Normal, 1891-1900. 49 Livro de Requerimentos de 1918 do Arquivo do IEEP.

Em 1919, Joaquim Corrêa Ayres requerendo inscrição como candidata estranha para sua filha, Martha da Cruz Ayres, de 15 anos de idade, afirmou que os documentos já se encontram na escola e que a taxa de inscrição “serão descontadas (sic) de seus vencimentos atrazados auctorizados pelo Ex.mo Snr Dr.Governador do Estado”51. Pode-se perceber aí, como seria difícil em função de seus salários atrasados, o pagamento da taxa.

Pode-se argumentar que tanto a aluna, na primeira correspondência, quanto o diretor na segunda usem de táticas e estratégias emocionais para alcançar seus objetivos. No entanto, para que surtam efeito era necessário que fossem verossímeis. Isto é, não causasse estranheza a pobreza generalizada das alunas nem a pobreza da requerente que pedia um novo exame. No caso do último documento, o próprio governador autorizou o desconto da taxa de matrícula no vencimento do requerente que seria funcionário público. O episódio do aluno, relatado no primeiro capítulo, que saía no intervalo para tomar cachaça, corrobora que sujeitos sociais oriundos de grupos sociais populares partilhavam de práticas comuns no seio da própria escola.

Em 25 de fevereiro de 1899, na Folha do Norte, o professor da EN de Álgebra e Geometria, Marcos Nunes ao reportar-se a um imbróglio entre ele, uma aluna e o governo, comenta a respeito dessa última: “A essa alumna, filha de paes paupérrimos e cujo nome peço para não declinar, dei a nota zero”.52

Considerando a complexidade da realidade em estudo, a documentação como espelho das experiências vividas, permite reconstituir outros indícios. Marguerite Muriel, diretora do College Français, solicitou inscrição para suas alunas Oscarina Faciola e Inah Herma Faciola nos exames do 1º ano do curso normal. O pedido foi deferido e despachado em 11 de outubro de 1912 pelo diretor interino Dr. Nery53. Lisbina Cantão de Siqueira Mendes requeria inscrição para o exame de admissão para sua filha Marietta Cantão de Siqueira Mendes de 14 anos filha do Dr. João José de Siqueira Mendes54.

O nome das alunas da professora Muriel estava relacionado a uma das mais importantes famílias de Belém no período. Poderia evidenciar o empobrecimento de famílias que estariam sentindo a quebra do preço do látex a partir de 1912. É possível também que o requerimento de matrícula através da professora reflita o aumento de prestígio da EN, levando ali famílias de camadas médias a matricular seus filhos. De qualquer forma as alunas

51 Livro de Protocolo de Entrada de Requerimento: 29 de março de 1917 a 12 de fevereiro de 1921, nº 258 de 21

de janeiro.

52 Escola Normal. Folha do Norte. Publicações a Pedido. Belém, 25 de fevereiro de 1899.

53 Livro de Protocolo de Entrada de Papéis de 10 de agosto de 1912 a 26 de março de 1917 do Arquivo da IEEP. 54 Livro de Protocolo de Entrada de Requerimentos: 29 de março de 1917 a 12 de fevereiro de 1921, nº 236 em

provenientes de uma escola particular de ensino provavelmente, com forte influência francesa, também pode ser um indício de sua origem social elevada.

Ainda nesse sentido, é bom lembrar que a família Siqueira Mendes era considerada uma família tradicional na cidade, com vinculações políticas, embora não necessariamente rica. O fato de seu pai ser chamado de Dr. significa também uma formação de nível superior, possivelmente bacharel em direito, médico ou engenheiro.

A própria avó do autor dessa pesquisa, Marietta Bastos Brasílico, vinha de uma família de camada média, cujo pai, Tito Augusto Brasílico, foi comandante de navios responsável por trazê-los do alto-mar até o porto de Belém. Três de suas filhas fizeram a inscrição na escola em 1918: Isabel, Marietta e Laura. As duas últimas foram aprovadas e concluíram o curso. Em 10 de janeiro de 1921, Tito reescreveu Valdomira Bastos Brasílico reprovada em 1920. Em seguida, essas irmãs montaram um internato, chamado Brasílico às imediações da casa de família num prédio alugado e próximo a EN, na Rua 28 de Setembro. Com a mudança da família para outro bairro, o internato foi fechado, Marietta e irmãs foram trabalhar no setor de serviços como secretárias, mas não como professoras.

As situações narradas ajudam a desconfiar que nem todas as alunas eram efetivamente pobres ou de origem popular. Não foi encontrado nenhum documento que indicasse ser analfabeto o responsável pela matrícula. Muitos médicos, bacharéis, professores, oficiais fazem questão de deixar claro sua profissão no requerimento. Diante desses quadros, é possível assinalar que a maior parte do alunado era pobre.

As camadas pobres estariam incorporando os discursos, valores e concepções de vida das elites disseminados pela possível propaganda realizada pela EN. No entanto, a apropriação dessas orientações pelos estudantes e seus familiares se faziam a partir de códigos de conduta de sua cultura, ressignificando sentidos da escola. Não por acaso, a pesquisa vem deixando ver práticas do chamado mundo rural no seio da própria escola. Isso indicia que se viviam tempos de contíguos valores tradicionais e modernos.

Entre 1912 a 1917, de acordo com o Protocolo de Entrada de Papéis do Arquivo do IEEP, antiga EN, a esmagadora maioria da(o)s alunas(os) tinha entre 14 e 16 anos. Eram em sua maioria paraenses, mas havia também quatro maranhenses, uma pernambucana, seis amazonenses, quatro rio-grandenses, cinco cearenses uma baiana e uma paulista. Como nesse material as anotações indicam apenas a naturalidade e não especifica o município, não foi possível responder, nesse momento histórico, se provinham do interior do estado, de quais municípios e em que proporção.

exame encontram-se: sete amazonenses, quatro rio-grandenses, três acreanas, duas cearenses, duas paraibanas, duas maranhenses, uma carioca, uma mato-grossense e até mesmo uma portuguesa. A matrícula ou pedido de exame da EN no período, portanto, reflete o processo migratório muito forte ocorrido durante a expansão da exportação da borracha que, embora terminado, tinha deixado aqui imigrantes que lutavam por uma vaga para suas filhas na escola. 55

Quanto aos candidatos do interior, verificando pedidos de matrícula entre 1890 e 1911, encontrou-se uma relação que, para facilitar sua visualidade, dispôs-se na Tabela nº 06.

56

Local Nomes

Acará Raymundo Nonnato de Almeida

Bragança Antônio Armando da Paixão

Breves Raymundo Mittermayer de Moraes

Bujaru José Matheus de Mendonça Moraes

Cachoeira do Arari Raymundo do Espírito Santo

Cametá Philogônia Leão de Moraes Bittencourt

Colares Helena Pantoja Leite

Curuçá Rosa Estrella Monteiro

Igarapé Miri José Procópio Pinto, João Antônio Pereira de Castro

Maracanã Astréa de Leão Corrêa

Marapanim Estefânia (sem sobrenome)

Monte Alegre Paulina de Oliveira

Vigia Francisco C. Nunes de Vilhena

Dessas informações, infere-se que a maioria dos estudantes era da capital do Estado do Pará, a minoria do interior e outras unidades da federação. Esse aspecto corrobora as informações a respeito do fluxo migratório existente no período em função da economia de exportação da borracha. Dessa forma, o espaço escolar fez-se locus onde se encontravam várias práticas culturais étnicas e de classe, cujos sujeitos históricos oriundos de várias localidades movimentavam trocas de experiências, conflitos, revelando dificuldades, superações e derrotas.

Há inúmeros pedidos de abono de falta e autorização para fazer exames, apresentado atestados médicos. Alguns tratam de moléstias nervosas, embaraços gástricos, febres palustres; outros documentam gripes benignas, traqueíte57 aguda, impaludismo, endocardite.

55 Livro de Protocolo de Entrada de Requerimentos do Arquivo do IEEP, 29 de março de 1917 a 12 de fevereiro

de 1920.

56 APEP. Educação e Cultura: Escola Normal. Petições, 1890-1918.

Isso demonstra a insalubridade da cidade, fruto de uma modernidade altamente excludente e desigual. Os abonos de faltas por doença preenchiam às vezes todo um semestre. Além das doenças de caráter físico, apareciam outras de fundo nervoso como se visualiza abaixo:

“Dr. Jaime P. Bricio, medico e cirurgião pela Faculdade da Bahia. Attesto que a alumna normalista Maria de Lourdes Torres, em conseqüência de hysteria, manifestada por um ataque, não poder realizar na escola Normal, hontem, a prova de composição”.58

Nos corredores da antiga EN, havia vários quadros de diversos tamanhos com as fotos dos formandos. Atualmente, encontram-se jogados em um depósito fétido e abafado. Entre eles encontrou-se um de 1911 de aproximadamente 1,52 x 81 cm, emoldurado e envidraçado. Dentro, em papel espesso tipo cartão de 1m x 76 cm., fotos da(o)s formand(a)s de 1911. Ao focalizar aqueles rostos, alguns já esmaecidos pelo tempo, encontrou-se o que traços da presença negra. No quadro abaixo, visualiza-se a figura do diretor, Heitor Castelo Branco, do professor paraninfo, Alfredo Vasconcellos Chaves, da oradora e dos demais alunos, alguns oriundos de diversos estados. No centro, a presença de uma coruja junto aos outros símbolos da ciência e das artes, como o esquadro representando a ciência e louros de Apolo reportando-se às artes.

58 APEP. Educação e Cultura: Escola Normal. Petições, 1890-1918. Belém, 26 de Setembro de 1918, documento

As fotos são de rostos jovens, sérios, empertigados. Parecem querer transmitir um sentimento de dever cumprido e de missão importante a desempenhar. Com exceção de Maria José Leger, maranhense, Gabriela Antunes Zulmira Crespo de Castro, amazonense e Eulália Figueredo, paraibana, os demais formandos da turma de 1911 eram paraenses. São eles: Florencia Sampaio de Souza, Esmerina Ferreira, Alice Moura, Gabriela Antunes, Thereza Cunha, Agnes Mendes, Raymunda Ferreira e Júlia Teixeira, Isabel Fonseca, Rosina Quaglia, Raymunda Vasconcellos, Dolores Freitas, Servita Bentes, Mariana Alves Bentes, Argemira Lameira Ramos, Benedita Tavares, dois rostos femininos e um masculino, cujos nomes estão ilegíveis.

Por uma questão de espaço, da(o)s 28 colanda(o)s, 24 mulheres e dois homens, escolheu-se três fotografias de aluna(o)s, considerados para a concepção etnicorracial atual, negra(o)s.59

59 Não se quer entrar na polêmica a respeito da constituição da identidade negra que é fruto de condições

históricas específicas e uma somatória de como os outros e as próprias pessoas se identificam. Chamam-se aqui de negros, pessoas com alguns de fenótipos como cor, cabelos, e lábios associados a eles. Comparou-se também a fotos do passado em que outros sujeitos com os mesmos fenótipos eram reconhecidos como tais. Ver sobre

essa discussão. HALL, Stuart. Da Diáspora. Op. Cit. e SCHWARCZ. Lilia Moritz. “Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. IN: NOVAIS, Fernando. História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 173-244.

Foto nº 10. Margarida Tavares, tirada em 2012.

O conjunto dessas fotografias possibilita discutir a presença de alunos negros dentro da EN. Embora não se tenha podido fazer uma análise estatística, o quadro de formatura pode mostrar um indício da composição dos alunos, pois seria muita coincidência que no único documento disponível desse tipo a presença negra fosse marcante.

Foto nº 12. Maria José Leger, maranhense, tirada em 2012.

Foram vistos mais dois quadros em condições extremamente precárias e com rostos quase desaparecidos entre 1921 e 1922 e um provavelmente do início da década de 1920, sem possiblidade de ser identificado o ano exato. Em dois deles, há registros de, pelo menos, dois negros. Há também muitos tipos que se consideram mestiços, ou seja, um amálgama de características brancas, negras e indígenas em diversas combinações. Muitas das características presentes no fenótipo da(o)s aluna(o)s fotografada(o)s assemelham-se com traços de rostos paraenses do tempo presente.

Os discursos higienistas e raciais que pulularam ao longo do século XIX precisam ser levando em conta ao se deparar com essa expressiva presença negra e mestiça na EN. Igualmente necessitam ser contextualizados aos padrões e grupos sociais que conformavam a sociedade paraense na virada do século XIX e duas primeiras décadas do século XX. É possível então que a entrada de um público mais pobre e, quem sabe mestiço, negro, afroindígena, ao longo dos anos tenha inquietado o seu corpo de funcionários e das autoridades públicas de uma sociedade que se vê europeizada e tenta esconder a marca vergonhosa da mestiçagem escravidão e negritude. Afinal, eram inquestionáveis as teorias raciais. E então como explicar para a população que negros e negras teriam a moralidade e a capacidade intelectual, referendada por um difícil diploma de normalista?

Lilia Schwarcz possibilita pensar em outra possibilidade. O embranquecimento que as pessoas atribuiriam aos negros e mestiços que ascendessem socialmente. Sem negar o racismo, que no Brasil é ligado mais aos aspectos fenótipos (cor da pele, lábios, cabelo) em detrimento dos genótipos (origem genética), os professores normalistas negros e mestiços ganhariam respeitabilidade com o diploma desde que não fossem comparados com os brancos em iguais condições. 60

A favor da segunda alternativa, segundo depoimento da avó desse autor, ela teve como colega na EN uma negra que já era professora, há muitos anos, Manuela Freitas Jucá de procedência barbadiana, e que precisava abrir ou legalizar uma escola sua e por isso foi fazer o curso da EN. O colégio dessa senhora chamava-se S. Geraldo Magela e situava-se às proximidades da rua de S. Jerônimo, atual Gov. José Malcher, ponto bem localizado da cidade como se viu no primeiro capítulo. Era também internato no qual ficavam duas crianças cujos pais moravam no Rio de Janeiro. Nas férias a professora ia deixar os alunos com os seus pais no Rio e ficava lá até trazê-las de volta a Belém.

Embora negra, a professora alcançou uma respeitabilidade e confiança a ponto de instalar e deslocar-se com crianças aparentemente detentoras de alto poder aquisitivo. É verdade que ela pertencia à família de negros oriundos de outro local, Barbados, colônia inglesa, que vieram como mão de obra para a construção da estrada de ferro Belém-Bragança, possivelmente não identificada com a escravidão e com populações de cor de Belém.

Seja como for seria mais confortável para uma sociedade racista confirmar suas expectativas e preferir confrontar-se com professoras e professores brancos do que com negros e mestiços. Em outras palavras, em situações similares digamos dois colégios considerados de qualidade, com mais ou menos o mesmo valor, com dois diretores também considerados de confiança. Um sendo considerado branco e outro negro, é muito provável que as pessoas preferissem matricular seus filhos no que fosse dirigido por um branco. A favor dessa hipótese, estão os dados do IBGE mostrando que as pessoas consideradas como negras ganham os mais baixos salários, moram em sua maioria em lugares mais insalubres, têm maior número de mortalidade infantil e mais baixa escolaridade e expectativa de vida. Portanto, além da questão de classe há de se considerar uma questão de discriminação racial.61