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1 CONTROLE E UNIFICAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DAS

1.1 A TUTELA DA LEI PELO TRIBUNAL DE CASSAÇÃO

1.1.4 Tribunal de Cassação 33

1.1.4.1 Origem 33

Inicialmente, cumpre proceder a determinados esclarecimentos sob pena de recair em anacronismos. Embora o estudo vise à avaliação da formação do Tribunal de Cassação a partir do marco temporal da Revolução Francesa, constata-se que o instituto da cassação já existia no ordenamento francês antes mesmo da Constituição revolucionária.

                                                                                                               

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HUFTEAU, Yves-Louis. Le référé législatif…1965, p. 51. Na continuidade das disposições constantes na ata, foram identificadas as seguintes circunstâncias: o sucesso da instituição; a dificuldade de sua operabilidade, uma vez que o Corpo Legislativo não supria o número de pedidos de interpretação; e, a confiança dotada à legislação, fonte única do Direito. (HUFTEAU, Yves- Louis. Le référé législatif…1965, p. 51).

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CALAMANDREI, Piero. La casación civil… 1945, p. 48-49. Caso não houvesse qualquer controle sobre os juízes, acreditava-se que os valores da nova ordem de ideias proclamadas pela Assembleia Nacional estaria comprometida, razão pela qual se justifica a instituição de um órgão regulador no topo da hierarquia judicial para conservação da lei, bem como para lembrar os tribunais ordinários do dever de sua observância por meio da cassação das decisões que fossem contrárias às prescrições legais. (FAYE, Ernest. La Cour de

Piero Calamandrei, em sua obra sobre o instituto da cassação, discorre que seria um quanto simplista considerar o Tribunal de Cassação como uma grande descoberta das mentes revolucionárias, um produto puramente doutrinário. O amadurecimento do instituto não se deu inteiramente nas abstratas concepções da Revolução, mas em parte foi preparada pelas instituições políticas vigentes no último século do

Antigo Regime.37

Embora as ideias sustentadas na Revolução Francesa tentassem extinguir qualquer pensamento e instituição do regime monárquico, alguns resquícios e experiências foram herdadas e acabaram por refletir

e exercer certa influência na política que se estava a instituir.38

Segundo os relatos de Ernest Faye, uma espécie de tribunal supremo já existia no governo anterior à Revolução. Uma das cinco seções do Conselho do Rei, designado de Conseil des parties, era dotado do direito de anular decisões proferidas pelos Parlamentos que

contivessem violações de decretos e ordens.39

Ao soberano era possível a propositura da cassação, sendo que esse tomava conhecimento da transgressão por meio do Conseil des

parties. A demanda era proposta em face das sentenças dos

Parlamentos, isto é, dos órgãos de justiças de última instância que

surgiram em diversas cidades francesas.40 O monarca francês, por

                                                                                                               

37 CALAMANDREI, Piero. La casación civil… 1945, p. 16. O autor esclarece:

“[...] quiero decir que es necesario entender, con absoluta claridad, que la actual Corte de Casación no habría nacido nunca de las teorías de los filósofos revolucionarios, si la edad anterior no hubiese ofrecido a la nueva creación el ejemplo, aunque fuera imperfecto y primario, de un instituto positivo, y no hubiese transmitido a la doctrina, que únicamente de los cánones abstractos deducía los remedios, la experiencia práctica de los males a remediar”. (CALAMANDREI, Piero. La casación civil… 1945, p. 16).

38

TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução... 1979, p. 43.

39 FAYE, Ernest. La Cour de Cassation… 1903, p. 1.

40 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis

no direito comparado. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre:

1984, p. 40. O Conseil des parties era uma seção do próprio Conselho de Governo responsável especialmente para estes casos. Mauro Cappelletti ainda explica: “O instituto da demande en cassation, que vinha, portanto, a se inserir na luta secular desenvolvida, na França, entre a monarquia centralizadora e as tendências descentralizadores do Parlaments, podia dar lugar à anulação (cassation, de casser que significa exatamente romper, anular), por parte do Soberano, das sentenças proferidas com violação de ordenanças régias”.

inúmeras formas, podia exercer o poder de inspeção e revisão sobre os

juízes inferiores, atuava como juiz supremo de todo o Estado.41

Tentou-se criar dentro do Conseil des parties um órgão especial encarregado pelo exercício da função antes mencionada. Todavia, esse órgão, como seção especializada do Conselho de Governo, não possuía uma direta emancipação em relação ao soberano, e, portanto, não se

podia visualizar um instituto plenamente autônomo.42

No entanto, é possível estabelecer aqui uma relação entre o

Conseil des parties com o Tribunal de Cassação. Muito embora

guardem características bem distintas – como o poder e a forma de exercício –, o primeiro por meio da sua evolução preparou o estabelecimento do segundo. Inclusive, a necessidade do órgão cassacional ser autônomo em relação ao Poder Executivo, já que a própria doutrina aponta a má definição das funções do Conseil des

parties como consequência justamente da característica onipotência do

rei.43

Em razão do objeto de interesse desse estudo, contudo, não será analisado o instituto da cassação desde sua origem, mas tão somente a partir da instituição do Tribunal de Cassação dos moldes revolucionários, em que se pode relacionar sua estrutura e função com a

                                                                                                                                                                                                                                         

(CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade... 1984, p. 40).

41 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário… 1995, p. 58. Nas palavras

do doutrinador: “A ‘cassação’ (de ‘cassar’, quebrar) havia sido um recurso ao soberano para que este declarasse mal aplicadas as leis régias e, deste modo, quebrasse as sentenças dos ‘parlamentos’. Tendo em conta essa característica e a interminável pugna de poder – ou de honorários – entre os ‘parlamentos’ e entre estes e o poder real, a cassação em sua origem foi um claro instrumento do rei em sua luta contra o poder dos ‘parlamentos’, que se inseria na luta mais geral de poder entre o rei e a nobreza provincial”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário… 1995, p. 58).

42

TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução... 1979, p. 43.

43 FAYE, Ernest. La Cour de Cassation… 1903, p. 1-2. Nesse mesmo sentido,

Piero Calamandrei esclarece o porquê dos revolucionários terem criado um órgão novo e não dado continuidade à estrutura já existente do Conseil des

parties. O controle exercido por esse órgão sobre todos os tribunais do reino foi,

na verdade, destinado a defender o interesse político do próprio monarca, e não para garantir o interesse da justiça, da imparcialidade e da regularidade dos juízos em relação aos litigantes particulares. Em razão disso, o Conseil des

parties era “temido e odiado” pelos franceses, sendo que o povo via nele um

instrumento de tirania. (CALAMANDREI, Piero. La casación civil… 1945, p. 24).

sedimentação de um tribunal de estrito direito que veio, adiante, influenciar a criação de outros órgãos análogos ao redor do mundo.