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4 O ESTADO ALEMÃO: O MODELO CORPORATIVISTA E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIDADE

5. OS IDEÁRIOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO E AS REPERCUSSÕES NAS AGÊNCIAS ECLESIÁSTICAS ALEMÃS DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

5.1 DIMENSÃO POLÍTICO – ESTRATÉGICA

5.1.1 Os ares do mundo sobre as estratégias das agências

As mudanças na dimensão político-estratégica das agências não governamentias alemãs para o desenvolvimento não dizem respeito apenas a um movimento interno das mesmas, mas são influenciadas pelo que aqui se denominou “ares do mundo”. Confirmando algumas tendências apresentadas na seção 3.4 deste trabalho (“Repercussões da agenda internacional da eficácia nas organizações não governamentais para o desenvolvimento”), a presente seção abordará a situação específica das agências eclesiástias alemãs, a partir de informações colhidas por meio de entrevistas com funcionários e ex-funcionários do EED, Pão para o Mundo e MISEREOR, documentos institucionais e artigos.

Quando surgiram, entre final da década de 1950 e início de 1960, as agências de cooperação das igrejas alemãs - MISEREOR, PPM e a então EZE - atendiam às demandas dos parceiros localizados no Terceiro Mundo, que, em geral, denotavam as carências da população local (BALLÓN e VALDERRAMA, 2004). A crescente politização das parceiras do sul, a partir da década de 60, denunciando as mazelas causadas pelo modelo de desenvolvimento adotado por seus governos e as estruturas sociais injustas de seus países, influenciou as agências ecumênicas alemãs, tornando-as também mais politizadas. Em todo o mundo esse foi um período de intenso movimento político, marcado por conflitos entre direita e esquerda pela tomada de poder em diversos países em

desenvolvimento. As críticas ao desenvolvimentismo do período também eram frequentes, inclusive no seio da própria igreja católica, que, a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965) e das correntes de renovação teológica, definiu como prioridade promover a “opção pelos pobres” (BALLÓN e VALDERRAMA, 2004). Em 1967, o papa Paulo VI, com a encíclica Populorum Progressio sobre o desenvolvimento dos povos, lança um grito a todos os homens de boa vontade, exortando-os a romper com “o imperialismo internacional do dinheiro”, combater a miséria e lutar contra a injustiça” (BEOZZO, 1981). Em 1968 surge o movimento da Teologia da Libertação, apoiado pela conferência dos bispos da América Latina em Medellín, convocando a criação das Comunidades Eclesiais de Bases, CEB´s, para o protagonismo popular. No Brasil, o arcebispo de Olinda-Recife, Dom Helder Câmara, num documento assinado por 16 bispos da “periferia” afirmava que ”os povos do terceiro mundo constituem o proletariado do mundo atual e que nossa missão, como a de Cristo, consiste em dar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação dos oprimidos” (BEOZZO, 1981). No lado protestante, segundo Wadehn (2012), o Conselho Mundial das Igrejas (CMI)111, com o lema Church in solidarity with the poors, teve grande influência na mudança de filosofia das agências eclesiásticas, levando a que, “no mundo inteiro, organizações oriundas das Igrejas formassem atividades críticas nesse período”(WADEHN, 2012).

Tratava-se também do período em que se instauraram ditaduras militares em muitos países do Terceiro Mundo. O contato direto com a exploração econômica e degradação social em que vivia a maior parte da população desses países, somado à frustração quanto à esperada distribuição dos frutos do crescimento econômico, desencadeou um processo de questionamento político nas agências eclesiásticas alemãs que marcaria sua cooperação durante muitos anos. Segundo documento comemorativo de 50 anos da Pão para o Mundo, tal mudança de paradigma em direção à politização das agências eclesiásticas alemãs ocorre por volta do ano de 1968:

O ano de 1968 foi marcado por reviravoltas políticas e levantamentos político- sociais: o período de 1968 foi marcado pela crítica emancipatória, do idealismo e do acionismo. Uma nova geração discutia as causas da pobreza e do subdesenvolvimento, do neocolonialismo, assim como o domínio estrutural entre norte e sul, entre as ‘raças’, entre pequenos agricultores e grandes proprietários e entre os sexos. O clima social foi aquecido pela Guerra do Vietnã, Levante de

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O CMI é a maior e mais representativa das muitas expressões organizadas do moderno Movimento Ecumênico, cujo objetivo é a unidade dos cristãos. Segundo Wadehn (2012), o Conselho Mundial das Igrejas é um órgão muito importante para a Cooperação no meio Ecumênico. Apesar de a Igreja Católica não ser membro, existe uma relação muito próxima entre o Vaticano e o Conselho. “Ele foi muito importante na orientação da cooperação para o desenvolvimento social e humano nos anos 70, 80 sobretudo, agora não é mais, mas foi extremamente importante” (WADEHN, 2012)

Soweto112, Conflito no Oriente Médio e o surgimento das ditaduras militares na América Central e Latina ou na Ásia. O debate sobre uma mudança estrutural fundamental na Cooperação para o Desenvolvimento e sobre a responsabilidade do norte foi uma das consequências desta época (...) A mudança de um trabalho mais prático para mais conceitual influenciou (...) em direção a uma cooperação mais estreita com as organizações parceiras em campo. Com isso abre-se um novo cenário: ações de conscientização no próprio país eram uma prioridade. A Cooperação para o Desenvolvimento viveu uma politização nunca vista e “Pão para o mundo” seria um ator militante no novo debate sobre as políticas de cooperação para o desenvolvimento (BROT FÜR DIE WELT, 2008, pág. 77)113

Em decorrência do vínculo estreito com a realidade da pobreza e exploração em que vivia grande parte da população dos países subdesenvolvidos, subjugada a governos que atuavam em prol dos interesses do capital nacional e internacional, as agências eclesiásticas alemãs de cooperação para o desenvolvimento assumiram, nesse período, posicionamentos políticos críticos seja diante dos governos dos países em desenvolvimento, por meio dos movimentos populares locais, seja diante do governo e sociedade alemã. Por outro lado, tal politização representou motivo de polêmicas e críticas na Alemanha ou, até mesmo, dentro das famílias religiosas às quais pertenciam. O livro comemorativo dos 50 anos da Pão para o Mundo, Den Armen Gerechtigkeit – 50 Jahre Brot für die Welt (2008) narra uma série de críticas e difamações sofridas pela agência, nas décadas de 70 e 80, tanto de correntes políticas conservadoras em seu país, quanto de membros da esquerda alemã.

Trocadilhos como “Brot für die Katz und Rot die Welt “ (Pão para os gatos e um mundo vermelho) foram slogans criados por militantes da esquerda alemã em cima do nome da Agência protestante durante a década de 70. A principal acusação desse segmento político contra a agência era a de que os doadores e a Pão para o Mundo estavam empenhados em aliviar a consciência sem mudar as estruturas que geram a pobreza. Outra prática dos militantes de esquerda, em cima das campanhas da Pão para o Mundo, que ficou muito conhecida no período era a sobreposição de um punho fechado sobre a figura original de uma mão aberta que compunha os cartazes da agência. “Slogans como ‘justiça, não misericórdia’ eram reinvidicados pela esquerda, mas rejeitados pela PPM pela contrariedade com o Evangelho” (BROT FÜR DIE WELT, 2008, pág.96-100).

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O Levante de Soweto foi um dos sangrentos episódios desencadeado pela repressão policial à passeata de 10 mil estudantes, em 16 de junho de 1976, que protestavam contra a inferioridade das "escolas negras" na África do Sul. A manifestação pacífica dos estudantes foi alvo de uma bomba de gás lacrimogêneo lançada por um policial branco, para, em seguida, ser atingida por disparos das tropas de choque munidas de armas automáticas, matando quatro alunos.

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Já do lado dos conservadores alemães, cresciam as acusações de as agências eclesiásticas serem partidárias de movimentos comunistas. No início da década de 70 a mídia alemã acusou a Pão para o Mundo, por meio de uma série de reportagens, de patrocinar a causa dos palestinos (BROT FÜR DIE WELT, 2008). Born cita uma campanha publicitária que causou grande polêmica nessa época na Alemanha, intitulada: “Fome causada pelo excesso de abundância114”?

Isso foi, em certo sentido,revolucionário, porque essa ligação de dois contextos, ou seja, que o nosso bem estar aqui acontece às custas de muita gente no sul do planeta, isso foi uma ideia revolucionária e que, pela primeira vez, se colocava ao público, não somente aos doadores, mas ao público em geral e causava um terremoto. Fomos agredidos, ofendidos, questionados por experts da revolução verde, etc. Mas também houve outras vozes, foi um debate incrível, foi superinteressante... Também outros meios de comunicação... filmes, por exemplo, houve um filme que chamava “Trigo Sangrento” e mostrava guerras entre a produção de monoculturas... Então na época era muito novo e todo mundo dizia “Ah, a PPM agora é comunista!”, “já não são objetivos!”, “vocês querem o conflito?” O que na Alemanha era pecado na época... Foi uma época de muito valor para o posicionamento dessa agência...(BORN, 2012)

Segundo Born, tal posicionamento político crítico contra o modelo de desenvolvimento internacional hegemônico passou a conduzir a agência, cujo slogan passou a ser “Pão Para o Mundo: uma fatia de justiça” (Brot für die Welt, ein Stückgerechtigkeit). Todas essas campanhas, polêmicas e amplas discussões na mídia em massa na Alemanha, trouxeram, segundo documento da Pão para o Mundo, bons frutos para a cooperação não governamental do país, sendo que, na década de 70, as doações adquiriram proporções inéditas - dobraram em relação à década de 60 (BROT FÜR DIE WELT, 2008) .

Importantes parceiros das lutas contra as ditaduras que se haviam instalado nos países em desenvolvimento a partir da década de 70, as agências eclesiásticas continuaram a apoiar as causas das organizações parceiras após o processo de redemocratização. O retorno da democracia evidenciou ainda mais os conflitos existentes em tais países no que tange ao tema desenvolvimento, fortalecendo o posicionamento das agências alemãs contra os privilégios das elites locais e internacionais e a favor da organização e da luta por direitos dos mais pobres, contra as políticas neoliberais que eram implementadas nestes países e defendendo o que, na época, chamavam-se “modelos alternativos de desenvolvimento”115.

Além dos processos de redemocratização, o final da década de 80 e início de 90 será marcado pela aplicação das políticas neoliberais nos países em desenvolvimento. Nesse período,

114 Überflüssig era o termo original, o qual foi traduzido por Christine como “super-abundância”. 115

Autores como Ballón e Valderrama, 2004, utilizam com frequência tal termo para descrever a causa das organizações da sociedade civil na América Latina e das agências europeias, na época.

registra-se a expansão significativa do número de organizações da sociedade civil, como consequência das novas constituições democráticas e da aplicação das políticas neoliberais, que repassavam para as ONGs a execução de políticas sociais antes sob responsabilidade dos governos. Configura-se um vasto “Terceiro Setor”, formado por desde movimentos populares tradicionais, críticos às políticas neoliberais, até instituições que surgiram exclusivamente para participar do novo mercado que se estabelecia a partir da privatização dos serviços sociais, sem expressar visão crítica sobre esse arranjo.

Da mesma forma, no nível internacional, cresceu o número de organizações dedicadas às atividades de cooperação para o desenvolvimento nesse período. Até então disputado por um número restrito de Agências não governamentais, com filosofias próprias, registra-se, a partir de 90, um número expressivo de novos entrantes, especializados em executar políticas de desenvolvimento em diversas áreas temáticas como infância, agricultura, meio ambiente, gênero, entre outras. Em 1995, Kaiser (1995), então cooperante do EZE, afirma que “os governos centro e norte-europeus, com tradição mais antiga de repasses orçamentários à sociedade civil, aumentaram super-proporcionalmente a parcela das ONGs sobre o total das pastas de cooperação internacional”(KAISER, 1995, pág. 14).

Cresce o número de setores da sociedade civil que ante tendências globalizantes buscam uma maior atuação na esfera internacional, frequentemetne sem uma visão compreensiva da problemática das relações Norte-Sul. Muitas vezes, encontram dificuldades ou até as causam no exterior com estilos duvidosos de comunicação e cooperação (KAISER, 1995, pág. 15).

Sob este aspecto, a entrada da década de 90 marcará um período de intensas mudanças no seio da cooperação internacional não governamental para o desenvolvimento, diante do processo de crescimento, legitimação e institucionalização das ONGDs. Como visto, trata-se de um período de busca de alternativas para as repetidas crises econômicas e de novos arranjos institucionais capazes de conceber e implementar concertações socioeconômicas e espaciais. Nesse período de crise, a cooperação para o desenvolvimento registrou diminuição crescente de recursos, ao passo que, as denúncias de situação de pobreza e violação dos direitos humanos continuavam alarmantes. Kaiser registra nessa época um crescente desinteresse das sociedades europeias pelo Terceiro Mundo, acompanhado da perda de credibilidade dos agentes da cooperação internacional oficial para o desenvolvimento. Trata-se do fim da Guerra Fria e da depreciação das reivindicações das esquerdas. Kaiser identifica, na entrada da década de 90, “um claro processo de redefinição da função da cooperação internacional dentro de uma nova ordem mundial” (KAISER, 1995, pág. 15).

A partir de 90, outros “ares” passam a influenciar as estratégias das agências não governamentais alemãs. O discurso e as diretrizes para a cooperação internacional para o desenvolvimento propagadas ao longo desta década, principalmente no âmbito das Nações Unidas, e seu fortalecimento a partir do ano 2000 já foram amplamente analisadas no final do segundo capítulo e ao longo de todo terceiro capítulo desta dissertação. A próxima seção analisará em que direção esses “novos ares” influenciaram a MISEREOR, EED e Pão para o Mundo no nível político-estratégico.

5.1.2 Mudanças no nível político-estratégico do EED, Pão para o Mundo e