• Nenhum resultado encontrado

Os bens simbólicos e o surgimento de um novo segmento de mercado

Aclamados por todos, os estilos musicais, dentro e fora das igrejas, começam a se mexer em busca de mudança e adaptação. O sertanejo, por exemplo – que era considerado “brega”, em que se usava chapéu de palha, bota de zebu e calça xadrez; com viola e violão, tocando sempre em dueto, com uma terça musical e em uma linguagem bem interiorana –, para passar a ser aderido pela nova massa de consumo e pela nova elite, precisava de um processo de estilização em termos musicais, ou seja, precisava de uma mudança simbólica. E, então, em vez de um cinto amarrado com cordão, o cantor traz um cinturão de couro com a fivela do Texas para ostentar a origem. Ao invés da bota zebu, bota de cascavel, do interior do Colorado; no lugar do chapéu de palha, um chapéu de grife; a camisa já não é mais xadrez, com remendo nos cotovelos, mas de marca conhecida nos grandes rodeios mundiais. E, por entender que precisa estilizar, não pode continuar com a mesma toada de viola e violão, então, passa a adotar um estilo musical que exige guitarra elétrica, baixo, bateria, teclados, back vocal e solos de guitarra

drive. A mudança não é apenas externa, mudam também os acordes para uma sequência de

harmonia invertida.

Tal transformação é uma exigência, visto que é preciso mudar o produto para que seja consumido por outra classe, ou seja, ocorre uma estilização de classe. Estava acontecendo, na prática, uma mudança que, aos poucos, migrava para os grupos assembleianos das pequenas e grandes igrejas, que procuravam inserir os novos estilos musicais nos louvores da igreja. Nesse mercado, os grupos e cantores que não tinham músicos para completar o acompanhamento de determinados arranjos faziam uso do equipamento de CD-player, que era uma novidade, para que os cantores e conjuntos pudessem cantar suas músicas favoritas com os arranjos originais nos playbacks. Muitas das transformações da cultura assembleiana estavam acontecendo a partir da música.

Para o pentecostalismo, esse processo de transformação utilizando a música se faz necessário para alcançar o público. Então, com vistas a alcançar e obter aceitação e respeitabilidade social da classe média e da elite, era preciso melhorar a qualidade e estilizar o produto a ser consumido e, desse modo, adaptar-se ao mercado, mostrando que a mudança não foi apenas comportamental, foi também conceitual. Nessa nova tendência, a música teve o importante papel de mostrar, através dos novos estilos musicais, que o conceito “ser cristão” não passa mais pelos antigos padrões religiosos do pentecostalismo, como afirmou Jacqueline Dolghie (2007, p. 230).

A sociedade está mudando e busca interação social, e a música tem a grande vantagem de provocar a aproximação e o diálogo entre a igreja, a sociedade e a cultura. É nesse processo que a música evangélica vai crescendo no meio secular, alcançando inúmeras pessoas com seu novo conceito musical, conquistando um novo mercado de fãs fora do mundo religioso. É através dessa nova tendência musical que os pentecostais abarcam esse cenário de mudança, conquistando o respeito do povo e construindo uma base segura por meio da qualidade de suas novas músicas, interpretadas por novos cantores, formando um conceito e alcançando altos patamares dentro e fora da instituição; tendência que, mais tarde, passa a se chamar “Pop pentecostal”, estilo sobre o qual vamos nos aprofundar mais adiante.

3 A TRAJETÓRIA DA CANTORA CASSIANE E O POP

PENTECOSTAL

Nos capítulos anteriores, contextualizamos as principais transformações da música

gospel no Brasil e seu impacto no campo evangélico, especialmente na Igreja Assembleia de

Deus. Neste capítulo, seguiremos argumentando, a partir da trajetória da cantora Cassiane, que a música gospel alcançou novos patamares no mercado religioso e no secular. Apontaremos de que modo a trajetória dessa cantora nos permite elucidar as dinâmicas da música gospel no contexto das Assembleias de Deus e buscaremos demonstrar as principais contribuições dessa cantora ao estabelecer o que chamaremos de “Pop pentecostal”, estilo inaugurado por ela.

A fim de situar a trajetória de Cassiane, tomaremos como pano de fundo o conceito de “espaço dos possíveis”, proposto por Pierre Bourdieu (1996), segundo o qual as colocações e os deslocamentos de uma biografia acontecem no espaço social. Segundo Bourdieu,

A relação entre as posições e as tomadas de posição não tem nada de uma relação de determinação mecânica. Entre umas e outras se interpõe, de alguma maneira, o espaço dos possíveis, ou seja, o espaço das tomadas de posição realmente efetuadas como tal como ele aparece quando é percebido através de categorias de percepção constitutivas de certo habitus, isto é, como um espaço orientado e prenhe das tomadas de posição que aí se anunciam como potencialidades objetivadas, coisas a ‘fazer’, ‘movimentos’ a lançar, revistas a criar, adversários a combater, tomadas de posições estabelecidas a ‘superar’, etc. (1996, p. 265).

Diante do “espaço dos possíveis”, como diria Bourdieu, uma trajetória se desenvolve a partir de uma série de posições nem sempre claras aos que a ocupam. É nesse sentido que buscaremos situar a trajetória da cantora Cassiane e sua contribuição à música gospel. Uma

trajetória é construída a partir de um conjunto de configurações sociais. Norbert Elias traça a

biografia de Mozart procurando relacionar pessoa e artista em um processo socializador individual. Inspirando-nos na abordagem sociológica de Elias, perguntamo-nos, por exemplo, qual o papel de Cassiane no processo de transição musical nas Assembleias de Deus? Buscaremos articular pessoa e artista como um eixo, para apreendermos um conjunto de relações.