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Ao contrário do que se poderia pensar, a expressão língua materna não possui um significado preciso e uniformemente partilhado pelos indivíduos do planeta. Em determinados contextos sociais, essa expressão pode causar dúvida e entrar em choque com as representações que os falantes possuem do que seja sua língua materna. Ao fazer um inventário dos critérios

44 E a proposta de trabalho que está sendo sugerida também procura conformar-se à concepção que julgamos mais

adequada, a concepção interacionista.

utilizados para definir a língua materna, Castellotti (2001, p. 21–22)46 ajuda-nos a perceber como esses critérios são diversificados e carecem de precisão.

Um dos critérios mais difundidos é “de ordem etimológica ou morfológica”. Esse critério associa a língua materna à mãe ou a uma forma de expressão que está ligada à origem do falante, às primeiras palavras trocadas com a mãe. Esse critério tem se mostrado discutível, na medida em que em muitos contextos sociais, por variadas razões, a mãe pode falar com o filho através de uma língua que não é a sua língua de origem.

Outro critério utilizado “é o da anterioridade da apropriação ligada ao modo de aquisição”. Nesse critério a língua materna é a primeira língua que foi interiorizada por um indivíduo, pelo processo de aquisição natural, durante a primeira infância. Esse critério também é discutível, pois imagina-se que é nesta língua que o indivíduo possui uma maior competência lingüística. Ora, muitas vezes o locutor é um migrante que há muito tempo não está em contato com sua primeira língua. Outras vezes, ele já foi escolarizado na segunda língua, passando a ter nessa língua um domínio maior do que na primeira que foi interiorizada.

Outros critérios mencionados por Castellotti (2001) remetem à “ordem funcional” ou aos fenômenos de “identidade”. Alguns indivíduos consideram que sua língua materna é a língua que utilizam mais. Outros, que é aquela com a qual mais se identificam, muitas vezes por ser a língua da comunidade a qual aderiram.

Para Castellotti (2001), os critérios utilizados para definir uma língua materna serviram para definir, por oposição, uma língua estrangeira, mas os pesquisadores continuam utilizando termos alternativos em seus trabalhos, por considerarem que esses critérios referem-se a domínios

46 Castellotti define quatro critérios principais: “Le premier critère est d’ordre étymologique ou morphologique[...]

Le deuxième critère [...] est celui de l’antériorité d’appropriation lié au mode d’acquisition [...] Des critères d’ordre fonctionnel et identitaire [...] (CASTELLOTTI, 2001, p. 21–22). Tradução nossa dos termos em francês.

distintos. Dessa maneira, termos como “língua fonte”, “língua alvo”, “língua nativa”, “língua de referência”, têm aparecido nas produções dos autores, com significados que precisam ser sempre explicitados e que estão longe de ser unanimidade entre eles47.

A expressão língua primeira, por oposição a língua segunda48, tem sido usada por muitos autores e reúne critérios como o momento e a forma de aquisição, o grau de importância para o locutor e para a sociedade na qual ele está inserido, e a dimensão psico-afetiva do locutor com a língua. Castellotti (2001, p. 24) assinala, entretanto, que a noção de repertório verbal é a que melhor dá conta das condições de apropriação das línguas, pois ela “[reúne] o conjunto das competências de linguagem do indivíduo, as quais se organizam e se estruturam de acordo com o leque de utilizações ligadas ao status das diferentes línguas presentes [...], com as funções que essas línguas possuem na comunicação e com as escolhas de identidade dos locutores 49”.

O conceito de língua estrangeira se opõe ao conceito de língua materna. Besse (1987, p.14) considera que “uma língua segunda ou estrangeira pode ser caracterizada como uma língua adquirida (naturalmente) ou aprendida (institucionalmente) depois que se adquiriu pelo menos uma língua materna e freqüentemente, depois de ter sido escolarizado nesta última”50. A noção de “língua segunda” para Besse é pensada como aquela que está presente no meio em que vive o falante. Nesse caso, os aprendentes estariam em contato com essa língua no cotidiano, e na maioria das vezes, esta seria a língua de ensino na escola. Para Castellotti (2001), o critério

47 Castellotti repertoria, assim, outros termos utilizados pelos pesquisadores para fazer referência à língua materna

“[...] langue source [...] langue native [...] langue de référence [...] langue première [...]” (CASTELLOTTI, 2001, p. 23, tradução nossa).

48 L1 e L2.

49 “La notion de [...] répertoire verbal [...] permet d’englober l’ensemble des compétences langagières de l’individu,

qui s’organisent et se structurent selon un éventail d’utilisations liées [aux] status des différentes langues en présence [...] à leurs fonctions dans la communication et dans les choix identitaires des locuteurs” (CASTELLOTTI, 2001, p. 24, tradução nossa.

50 “[...] Une langue seconde/étrangère peut être caractérisée comme une langue acquise (naturellement) ou apprise

(institutionnellement) après qu’on a acquis au moins une langue maternelle et, souvent, après avoir été scolarisé dans celle-ci” (BESSE, 1987, p.14, tradução nossa).

utilizado para definir uma língua estrangeira também não é muito preciso, pois, como lembra Dabène (1994 apud CASTELLOTTI, 2001, p. 25), há línguas mais estrangeiras do que outras. A este propósito, podemos pensar na proliferação de termos da língua inglesa que invadem a língua portuguesa e que já fazem parte do cotidiano das cidades, nas fachadas dos condomínios, dos estabelecimentos comerciais, nos cardápios das lanchonetes, etc. Certamente essas expressões são menos estrangeiras do que aquelas provenientes de países culturalmente mais distantes ou cujos interesses econômicos e sociais diferem dos nossos. Dessa maneira, a noção de língua estrangeira ou segunda não pode ser aplicada de forma rígida, pois se deve levar em conta as realidades encontradas. No Brasil, as relações sociolingüísticas são relativamente simples. Apesar disso, algumas áreas indígenas ou colonizadas por imigrantes europeus possuem locutores que não têm a língua portuguesa como a primeira língua adquirida. Por outro lado, a segunda língua a ser estudada, salvo algumas exceções, também não é falada fora do contexto escolar. No Rio Grande do Norte, ao contrário dos países europeus51, não há relatos na literatura que apontem para a dificuldade dos aprendentes de reconhecer sua língua materna, pois, ao que parece, o número de crianças que chega à escola falando outras línguas é inexpressivo. Por essa razão, consideramos, nesta tese, L1 como sinônimo de língua materna. A L2, na maioria das vezes, só é aprendida e falada em contexto escolar, por isso a denominação de língua estrangeira parece ser mais adequada a nossa realidade52.

Os conceitos de língua materna e língua estrangeira têm sido discutidos por muitos pesquisadores através do tempo, pois servem de base para se estudar e para se entender as relações entre a linguagem e o processo de ensino/aprendizagem. Ao mesmo tempo, tem sido

51 Castellotti (2001) relata algumas pesquisas na França que mostraram esta dificuldade. 52 Apesar disso, utilizaremos também L2 como sinônimo de língua estrangeira.

preocupação de muitos estudiosos descobrir caminhos para melhorar o ensino dessas línguas nas escolas.