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Os contornos entre Estado, sociedade civil e mercado no

2. ATORES SOCIAIS, DELIBERAÇÃO E EFETIVIDADE NA

2.1. SOCIEDADE, ESTADO E MERCADO: ATORES

2.1.1 Do modelo dualista ao modelo tripartite dos atores

2.1.1.2 Os contornos entre Estado, sociedade civil e mercado no

No Brasil, os contornos entre Estado, sociedade civil e mercado são marcadamente entrelaçados (CARVALHO, 2003), porém, não em uma perspectiva ética e interdependente. Os intérpretes da sociedade brasileira (FREYRE, 2001; SANTOS, 1979; CARVALHO, 2003; FAORO, 1998; HOLANDA, 1995) identificaram, cada um a sua maneira, o descompasso de nossa formação em relação ao exemplo europeu. As

instituições, sociedade e economia do país não corresponderiam à formação moderna caracterizada por limites claros entre as esferas e por funções específicas e exclusivas.

Segundo Avritzer (2012a), ao longo do século XIX, “o conceito de sociedade civil não pôde ser utilizado para além dos limites dos países do Atlântico Norte porque os processos sociais que expressavam pertenciam exclusivamente àqueles” (AVRITZER, 2012a, p. 95). No caso do Brasil, as primeiras diferenciações modernas entre a economia doméstica e a esfera privada não tiveram lugar no mesmo período, com a grande propriedade rural servindo de local para o exercício da dominação econômica e política. O conceito a uma situação de pouca diferenciação entre o privado e o público não era aplicável até, pelo menos, o início do século XX.

O Brasil do início do século XIX ainda passava por um processo político privatista (FREYRE, 2001) no qual a grande propriedade rural era o lugar de realização das atividades públicas. Esse processo resultou em uma esfera privada desproporcionalmente grande e a possibilidade sempre aberta de estender as relações pessoais para o campo político. Nenhum processo de diferenciação social que conduzisse a uma ideia de separação entre grandes interesses privados e o Estado poderia ter surgido nesta situação (AVRITZER, 2012a).

Assim, do ponto de vista da formação política, o Brasil é marcado pelo mandonismo desde as relações privadas até as públicas (SANTOS, 1979; CARVALHO, 2003; FAORO, 1998). Não se teria, desde o início, as bases para a formação de um terreno que permitisse o surgimento de uma sociedade civil moderna. Primeiramente, pela ausência de separação entre público e privado e, posteriormente, pela imbricação entre a esfera política e a esfera econômica do mercado. Até aqui, a ausência da autolimitação entre as esferas sociais é aspecto que sugere a ausência, também, de uma sociedade civil.

Outro momento histórico e analítico que merece ser destacado é aquele que compreende o início da construção de nossos direitos até o processo de redemocratização. Nesse sentido, analisou Santos (1979) que o Brasil teria uma “cidadania regulada”, marcada pela limitação da autonomia da sociedade civil e pela regulação do acesso aos direitos pelo próprio Estado, ele próprio o “fabricante” das demandas sociais.

Distintamente do observado em outros países, em contraponto ao predomínio de abordagens que reduziam o Estado e suas políticas a uma “emanação” de demandas e interesses de atores sociais e/ou do mercado, no Brasil predominaram perspectivas que

conferiam uma primazia ao Estado enquanto ator protagonista na estruturação da vida social e/ou do seu desenvolvimento (MOURA; SILVA, 2008).

Na análise das sociedades civis brasileiras, Avritzer (1994) tem como pressuposto a distinção entre modernidade e modernização. O autor entende como sociedade civil a combinação entre formas sociais modernas ocidentais (modernidade) e instituições de implementação fora dos centros de origem (modernização). Assim, a sociedade civil moderna surge dos processos de diferenciação social, sistema legal e mecanismos de publicidade, estruturas intermediárias capazes de produzir solidariedade social.

No processo de inovação social brasileiro, na década de 1970, “modernização e modernidade foram consideradas sinônimos e a implementação de formas impessoais de atividade econômica foi associada à criação de uma sociedade moderna” (AVRITZER, 1994, p. 26). Na alternância entre populismo e autoritarismo, o Estado brasileiro constituiu seletivamente os atores sociais beneficiados pelo processo de modernização econômica e definiu as formas de ação em nível da economia e da política, recorrendo com frequência à prática intervencionista nos sindicatos, partidos e associações civis. Deste modo, houve a falta de formas organizativas de ação para discutir e contestar a forma de modernização realizada pelo Estado (LOEBEL, 2007).

Carvalho (2003) corrobora com esse pensamento, sinalizando que, até a redemocratização, o que havia no Brasil era a “estadania”, “gerada pela inversão na arquitetura dos direitos que ofereceu bens sociais sem garantir um ambiente no qual tais demandas pudessem ser desenhadas pela própria sociedade” (CARVALHO, 2003, p. 97). Este aspecto envolveu o enfraquecimento da cidadania e a desarticulação da sociedade pelo Estado, eliminando esferas de mediação representativas, desmobilizando a sociedade civil e minando sua autonomia. Tal peculiaridade foi rompida, em grande parte, com o processo de transição democrática e coroado com a Constituição de 1988, que garantiu vários mecanismos de participação e controle social.

Atores sociais tradicionalmente marginalizados da cena política passam não apenas a ocupar o “palco”, mas, principalmente, são objeto de uma ressignificação a partir de modelos interpretativos que os valorizam e põe-los como protagonistas da mudança de um país caracterizado por profundas desigualdades e dominações.

Essa ressignificação, característica da literatura sobre movimentos sociais produzida no período, foi marcada por uma radicalização da distância entre Estado e atores da sociedade – que, no limite, passou a ser tratada como uma relação de

contradição –, a qual levou a um tratamento dicotômico e substancialista desses dois polos. De acordo com Moura & Silva (2008), dicotômico na medida em que a visão de uma sociedade forjada por um Estado “todo-poderoso” foi substituída pela visão de uma sociedade que, “de costas para o Estado”, auto organizava-se de maneira espontânea e autônoma; substancialista pelo fato de que o Estado e a sociedade civil (em que surgiu do processo de auto-organização social) não só se constituem e operam de maneira não- relacional como ainda são dotados de um conjunto de qualidades que passam a ser tomadas como inerente às suas “naturezas”.

Por outro lado, no entanto, tal visão encobriu a complexidade e heterogeneidade do Estado e da sociedade civil, além dos profundos vínculos e interdependências existentes desse tecido associativo. Tais limitações tenderam a reproduzir-se no modelo de interpretação predominante nas reflexões sobre a sociedade civil, nos anos 1990, uma vez que esse modelo partia do pressuposto da necessidade de uma separação entre a sociedade civil que surgia e os atores e instituições do sistema político-administrativo e do mercado:

Assim, apreendida como solidária, orientada para o interesse geral, originada da associação espontânea, dentre outras características, a sociedade civil passou a ser o foco das propostas e das análises de arranjos institucionais participativos que marcaram a redemocratização brasileira (MOURA; SILVA, 2008, p. 12).

Moura & Silva (2008) pontuam um dualismo que marca grande parte da literatura brasileira, a qual procura estudar os processos participativos – sociedade civil versus Estado – e que não consegue dar conta de uma relação que é constitutiva de ambos os “polos” e, em muitos aspectos, dos limites fluidos e imprecisos que os separam. Para os autores, essa literatura encontra-se fragilizada para identificar e analisar a permeabilidade intrínseca à sociedade civil e ao Estado, como também as relações entre atores sociais e atores e instituições político-administrativas.

Nos últimos anos, buscando superar essas limitações analíticas da perspectiva dominante na literatura brasileira voltada ao estudo das experiências de participação e de representação institucional da sociedade civil, pesquisadores (DAGNINO, 2002; LAVALLE, 2003) vêm buscando modelos teórico-metodológicos mais adequados à complexidade da sociedade civil e de suas relações com o campo político-institucional.

Assim, durante a democratização brasileira, a sociedade civil brasileira foi, então, entendida como sendo um conceito capaz de diferenciar os novos atores sociais emergentes tanto do mercado, aqui entendido como os interesses econômicos privados

associados ao regime autoritário, como do Estado. No entanto, uma importante ressalva permaneceu no uso do conceito com o avanço da democratização no Brasil - as diferentes formas de relação entre a sociedade civil e o Estado, conforme exposta por Dagnino:

Na medida em que postulou a ideia de autonomia social, o conceito de sociedade civil incorporou uma dimensão do debate internacional, mas também envolveu fortes elementos locais. Ele incorporou todos os tipos de movimentos sociais na dimensão autônoma da sociedade civil e, até mesmo, uma ideia geral de autonomia que vinha do próprio sindicalismo. Esta dimensão de autonomia mostrou-se muito forte durante o autoritarismo e influenciou um conjunto de movimentos, entre os quais cabe destacar o associativismo comunitário, o movimento de saúde, o movimento da reforma urbana e quase todos os movimentos com a presença de ativistas da igreja católica. Mas a verdade é que este movimento pela autonomia social não sobreviveu à democracia com a mesma concepção com que surgiu (DAGNINO, 2002, p. 54).

Desta forma, uma segunda fase tanto da prática democrática quanto da teoria da sociedade civil surgiu em meados dos anos noventa do século XX e colocou a questão da interdependência entre a sociedade civil e o Estado. No caso brasileiro, a interdependência foi motivada pela sua associação com o aprofundamento democrático. Os atores da sociedade civil superaram uma fase de demarcação de espaço com o Estado e começaram a interagir em conselhos de políticas, bem como em projetos específicos que envolvem a implementação de políticas públicas (AVRITZER, 2012a).

No entanto, Nogueira (1994) observa que, no Brasil, nos anos recentes, haveria uma supervalorização do papel da sociedade civil, apostando-se muito no seu fortalecimento, inclusive com uma visão equivocada de tentar substituir-se o Estado por ela, deixando-se de lado a preocupação em torno da democratização das instituições políticas:

Apesar das limitações e ambiguidades do processo de emergência dos atores sociais na cena política, utilizá-los não significa minimizar ou desconsiderar o papel das instituições políticas, mas, ao contrário, fortalece-as. A ação da própria sociedade civil em relação à reestruturação institucional funda-se no próprio suporte institucional, garantido pelos direitos fundamentais da Constituição. A sociedade civil não pode assumir responsabilidades que são do Estado, mas deve exercer uma função política sobre o estado e o sistema político para atender às necessidades do conjunto dessa sociedade. (NOGUEIRA, 1994, p. 32).

Na medida em que a existência de uma efetiva democracia depende da articulação entre a esfera político-institucional e a esfera societária, por meio da mediação da esfera pública na qual demandas, interesses e problemas sociais

conseguem expressar-se e, de alguma forma, orientar a atuação dos agentes e instituições político-administrativas, torna-se imprescindível a existência de atores sociais capazes de organização e atuação autônomas. Como destaca Costa,

A sociedade civil, com seu conjunto de associações voluntárias, independentes do sistema econômico e político-administrativo, absorve, condensa e conduz de maneira amplificada para a esfera pública os problemas emergentes nas esferas privadas, no mundo da vida. (COSTA, 2003, p. 44).

Como mencionado anteriormente, na medida em que Estado, sociedade civil e mercado se relacionam e estabelecem vínculos, há o aprofundamento da democracia. Nesse sentido, o conceito de “instituições participativas” e “instituições híbridas” são exemplares e a realização de espaços democráticos e deliberativos como conselhos, conferências e audiências tem grande importância.

Deste modo, diversos autores enfatizam a necessidade de aprofundar a democracia aumentando a presença da sociedade civil em formas alternativas de representação, principalmente por meio da criação de espaços em que ela possa se manifestar (AVRITZER, 1994; 2003; COSTA, 1997; GOHN, 1991; SANTOS, 2002). A representação bem feita das demandas da sociedade é de suma importância para a efetividade da participação social nas políticas públicas, tema tratado a seguir.