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Processo de formação de vontade: a construção coletiva da

2. ATORES SOCIAIS, DELIBERAÇÃO E EFETIVIDADE NA

2.2 DELIBERAÇÃO E EFETIVIDADE NA CONSTRUÇÃO DA

2.2.2 Processo de formação de vontade: a construção coletiva da

Segundo Bohman (1996), Rousseau, Weber e Schumpeter partilhavam da ideia de que a democracia deve supor um nível de homogeneidade cultural e moral capaz de evitar conflitos permanentes e sociedades parciais. Ainda de acordo com esse autor, os arranjos argumentativos deliberativos assumem justamente a hipótese contrária, isto é, de que passamos a viver em sociedades que adquiriram um tal nível de diversidade de interesses, valores e concepções morais que o surgimento de sociedades parciais já é uma realidade.

Ratificando esse pensamento, Habermas (1997) constata que o assentimento a determinados temas só se forma como resultado de uma controvérsia mais ou menos ampla, na qual propostas, informações e argumentos podem ser elaborados de forma mais ou menos racional, e, nesse sentido, pode variar no nível discursivo de formação da opinião e da vontade. Desta forma, a construção da regulação por meio do debate dá- se entre consensos e dissensos dos diferentes atores envolvidos nele.

Na perspectiva do conceito de democracia centrada no discurso, o pensador alemão analisa a operacionalização do procedimento que possa conciliar os interesses individuais e o alcance do bem-comum e identifica as pré-condições para a formação discursiva da vontade:

Um elemento intrínseco às pré-condições da comunicação em todas as práticas do debate racional é a presunção da imparcialidade e a expectativa que os participantes questionem e superem as suas preferências iniciais. [...] Essa idealização das pré-condições supõe a inclusão de todos os afetados, a igualdade entre eles, a liberdade e a facilidade de interações, a não restrição de tópicos, a revisibilidade de posições, etc. (HABERMAS, 1997, p. 215).

É desse processo discursivo que, ainda segundo o filósofo, surge a opinião pública capaz de influenciar e direcionar o poder político na tomada de decisões sobre os mais diferentes temas.

Teixeira (2001) pondera que, tendo em vista a existência da contradição entre interesses particulares e públicos, é necessária a existência de organizações autônomas que se constituam como mediadoras entre sociedade civil e sociedade política. Na sociedade complexa, os grupos de interesses são numerosos. Assim, é indispensável que suas demandas sejam agregadas por agentes que façam a ligação entre sociedade civil e sociedade política.

Desta maneira, mais do que a defesa de posições, o debate tem a função de buscar alguma unidade, senão um consenso, um consentimento ou convergência, que é construído a partir dos diferentes posicionamentos. O mais importante não é o que se defende, mas o que vai ser construído a partir das diferentes posições (SOUZA; LIMA, 2011). O consenso racional pode ser alcançado na esfera pública, quando os argumentos são colocados e debatidos, mesmo que conflitos aconteçam.

Vitullo (2007) alega que, em boa parte das obras sobre ciência política das últimas décadas, encontra-se uma sistemática subestimação do conflito e uma persistente negativa a interpretá-lo como componente essencial de um regime político democrático e como parte constitutiva da ação política, inclusive da própria política democrática. Desta forma, o autor conclui que

Resulta peremptório incorporar o conflito como um dos elementos chave de uma teoria democrática renovada. Se bem é verdade que o diálogo e a deliberação são pontos importantes para o desenvolvimento de um sistema político democrático, é oportuno assinalar que não devemos exagerar e cair na sua superestimação. A democracia não é somente diálogo, deliberação, ética da palavra e consenso. Se excluirmos de nossa definição o conflito, tropeçaremos com um consenso forçado, que reprime, que oculta, que nega as

contradições, as disputas, os interesses, os valores e as diferentes visões do mundo que, mesmo sob a superfície, sempre continuarão existindo. (VITULLO, 2007, p. 13-14).

Na mesma linha, Chauí (1989) pontua que o conflito é o coração do regime democrático. Para a filósofa, o que caracteriza a política, e em especial a política democrática, é precisamente a legitimidade e a necessidade do conflito. A democracia significa um processo constante de incorporação de novas vozes, a constituição de novos atores e de novos poderes ou contra poderes, muitas vezes contrários às instituições vigentes, o que pode dar lugar a novos e mais variados conflitos. O antagonismo é, assim, a expressão da vida democrática: “O conflito não é obstáculo, é a constituição do processo democrático, sendo esta, talvez, uma das maiores originalidades da democracia” (CHAUÍ, 1989, p. 19).

Ao reconhecer as relações de poder que permeiam os encontros deliberativos e a tensão entre interesses divergentes, é preciso se perguntar sobre o grau de conflito desejável e o tipo de resultado esperado para a boa deliberação. Para Habermas (2003), a “boa deliberação” requer o movimento em direção ao consenso racional, tentando minimizar ou suprimir os elementos de conflito existentes, seja na opinião ou nos interesses dos participantes.

De acordo com Cohen (2009), a deliberação ideal igualmente almeja chegar a um consenso racionalmente motivado, isto é, encontrar razões que são persuasivas para todos aqueles que estão comprometidos a agir de acordo com os resultados de um acesso livre e razoável de alternativas por interlocutores iguais. O pensador ainda pontua que

Mesmo sob condições ideais, não há nenhuma promessa de que razões consensuais serão formuladas. Se elas não são, a deliberação é, então, concluída com uma votação submetida a alguma forma de regra da maioria. O fato de a deliberação poder ser concluída dessa forma não elimina, entretanto, a distinção entre formas deliberativas de escolha coletiva e formas que agregam preferências não deliberativas. As consequências institucionais são diferentes nos dois casos, e os resultados da votação entre aqueles que estão comprometidos a encontrar razões que são persuasivas a todos serão diferentes dos resultados de uma agregação que proceda sem esse compromisso. (COHEN, 2009, p. 94).

O argumento utilizado por Cohen é de que se o processo de decisão, ainda que por maioria, for um processo inclusivo e tendo como base a troca de razões, tal processo será aceito pela minoria enquanto legítimo.

Na mesma linha de pensamento, Bohman (1996) atribui a legitimidade de uma lei ao resultado de um processo participativo justo e aberto a todos os cidadãos e que, como tal, inclui todas as razões publicamente acessíveis a essas pessoas:

A deliberação pública é um processo dialógico de troca de razões com o objetivo de solucionar situações problemáticas que não encontrariam resolução sem a coordenação e a cooperação entre as pessoas. (BOMAN, 1996, p. 27).

Com isso, o autor não está pressupondo um acordo unânime entre cidadãos ou legisladores sobre todas as leis, objetivos ou decisões, mas uma cooperação contínua a despeito das diferenças de posições próprias de uma sociedade pluralista. A constituição do consenso, desta forma, dependerá da participação no processo público e legislativo independente do desacordo em relação a qualquer decisão particular alcançada deliberativamente: “Ao participar de um processo deliberativo justo, inclusivo e cooperativo, os cidadãos chegarão racionalmente a uma lei legítima” (BOHMAN, 1996, p. 62).

No lugar de uma opinião pública informal, esse filósofo propõe a institucionalização da soberania popular por meio da regra da maioria. Para ele, qualquer fraqueza que porventura a maioria apresentar será corrigida por instituições majoritárias, como as instâncias judiciais. Além disso, a cooperação será facilitada pela regra da maioria na medida em que as minorias tiverem expectativas razoáveis de afetar e rever as decisões políticas, incluindo aí, segundo o autor, decisões sobre o caráter e as condições da participação política. A possibilidade de rever os procedimentos democráticos para que esses tornem-se mais inclusivos é o que qualifica a regra da maioria como deliberativa.

Ainda segundo Bohman (1996), o uso público da razão, bem como a formação das maiorias deliberativas ocorrem tanto nas associações da sociedade civil como nas instituições legislativas e representativas. Entretanto, nas sociedades contemporâneas, a soberania das maiorias deliberativas requer um intercâmbio complexo entre as instituições públicas e políticas. Destarte, Bohman, cuja especialidade é o estudo de como as instituições públicas podem tornar-se mais democráticas através de métodos e condições de debates, propõe que as instituições públicas, burocráticas e administrativas criem suas próprias esferas públicas com o objetivo de operacionalizar tal deliberação, compostas por atores afetados pelas estratégias que visam solucionar os problemas. Esse pensamento vai ao encontro das arenas de debates criadas no Brasil e ampliadas durante os anos 2000.

A deliberação pública, enquanto arena política, pressupõe bem mais que simples expressão da vontade geral, mas também liberdade discursiva e questionamento permanente, de forma que os cidadãos, em pé de igualdade, discutam e debatam sobre questões de ordem pública, buscando a solução de problemas oriundos da vida coletiva. Portanto, parte-se da premissa, nesta tese, de que a prática deliberativa deve sempre garantir a participação política dos indivíduos, bem como o diálogo público amplo e aberto em busca do consenso racional. Isso permite constituir uma ‘razão pública’ ampliada através de uma arena política marcada por liberdade dialógica e participação popular para que a regulação seja criada a partir do debate da sociedade. No entanto, a efetividade dessa construção, sobretudo nas políticas brasileiras, é questionada entre seus estudiosos.