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Os culturalistas Franz Boas e Clifford Geertz: diálogo entre

1.2. Cultura

1.2.1. Os culturalistas Franz Boas e Clifford Geertz: diálogo entre

Uma cultura não é apenas diferente da outra cultura, mas pode ser “estranha”, sem considerar a fonte da diferença. A fim de estudar os imigrantes transnacionais sul-coreanos que trabalham nas multinacionais, tomaram-se como centro os conceitos de relativismo cultural de Franz Boas e de cultura interpretativa de Clifford Geertz.

Franz Boas, considerado o pai da antropologia cultural, ressalta a importância de estudar cada cultura singularmente, considerando as diferenças culturais e respeitando seus desenvolvimentos históricos distintos. Critica o pensamento evolucionista que trata de um modo linear a evolução biológica do homem – do selvagem para o civilizado – e o determinismo que considera a sociedade ocidental superior e outras culturas fazendo parte de sociedades de forma menos evoluídas, portanto inferior à cultura ocidental. A intenção de questionar a superioridade e inferioridade das culturas, portanto o etnocentrismo, foi embasada na distinção entre raça e cultura, mostrando que a capacidade da raça branca se encontra em todas as outras raças, e as diferenças das civilizações é uma questão do tempo devido ao desenvolvimento diferente, por conta do tempo segundo o entendimento do antropólogo. Define-se a raça: tipo de cabelo e traços faciais, características que vão distinguir o negro e outras raças. As características corporais são definidas pela vivência e não pela raça; e, ao mostrar tamanha variação na mesma raça através do estudo da estrutura óssea, rompe com o pensamento de quanto maior o tamanho do crânio, mais superior. Sendo assim, o corpo e a estrutura óssea diferem de uma raça para outra pela cultura e não por conta da biologia corporal. Boas rompe com a ciência empírica e determinista e apresenta uma nova linha de pensamento – o relativismo cultural.

Um estudo que mostra empiricamente o relativismo cultural é o dos esquimós da Ilha Baffin. Boas decidiu estudar a relação dos esquimós com o ambiente. Em suas próprias palavras, pretendia “coletar materiais antropológicos e realizar um estudo do idioma, costumes e hábitos dos esquimós” (Estranhos

no Exterior, 1985)20. Para isso, Boas, tendo formação em geografia, organizou uma expedição geográfica para mapear as áreas costeiras da Ilha Baffin e conhecer os grupos de esquimós que lá viviam. Como geógrafo, aprendeu que a vida de pessoas como os esquimós seria determinada pelo ambiente, mas, também, através do convívio com eles. Percebeu que os esquimós faziam coisas a despeito das limitações do ambiente circundante, tal como o conhecimento detalhado que tinham da topografia, mesmo que a área que eles percorressem fosse de considerável extensão. Para a caça no inverno, por exemplo, apesar das dificuldades como o frio, as correntes abaixo do gelo e “uma neblina densa sobre a água gelada” (Estranhos no Exterior, 1985), o conhecimento que tinham era de grande valia. No filme Estranhos no Exterior (1985), Boas diz:

“[...] quanto mais observo seus costumes, mais entendo que não podemos desprezá-los. Não temos o direito de criticar seus hábitos e superstições que podem nos parecer ridículos. Nós, as pessoas altamente educadas, somos muitos piores de certa forma. O valor de uma pessoa deveria ser julgado pelos impulsos do seu coração” (Boas, 1985).

Boas aprendeu que o ambiente não é a única coisa que determina o desenvolvimento cultural; costumes, crenças e ideias revelam mais os modos como uma cultura é moldada. Através dos estudos dos povos indígenas da costa noroeste do Pacífico, como os Kwakiutl, além dos costumes e objetos, a língua também é uma parte da essência da cultura. A língua é mais do que um meio para comunicar: é um meio para transmitir a identidade e a cultura em si.

Nos EUA do início ao século XX as pessoas de origens étnicas muito diferentes estavam chegando em grandes números na Ilha Ellis – cerca de 16 milhões de imigrantes. Estes imigrantes passavam pelo processamento e critérios, tais como o país do qual provinham, a idade, a quantidade de dinheiro, se falava o inglês, se tinha doenças graves. A partir do ano 1908, por meio das perguntas das medidas de corpo e cabeça, foi se supondo e se separando os imigrantes em raça superior e inferior com a finalidade que não houvesse

20 Trata-se de um filme, Estranhos no Exterior, produzido pela Central Independent Television (Great Britain) e Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, em 1985, dirigido por Bruce Dakowski e André Singer, que trata de seis antropólogos: Baldwin Spencer, William Halse Rivers, Franz Boas, Bronislaw Malinowski, Margaret Mead e Edward Evan Evans-Pritchard.

misturas entre raças diferentes e para manter o “padrão”. Assim, a imigração foi submetida ao processo de institucionalização da eugenia21, prática racista, difundida nas décadas de 1910 e 1920. Nesse âmbito, o relativismo cultural foi essencial para questionar se as características raciais representavam limitações para o potencial humano. Conforme a fala de William Halse Rivers (Estranhos no Exterior, 1985): “Boas introduziu uma nova forma de análise racial. Ele foi o primeiro cientista social branco famoso nos EUA que minimizou a importância da raça como fator determinante de comportamento humano” (1985).

O relativismo de Boas trouxe uma visão mais ampla sobre os estudos da raça, língua e cultura. As diferenças biológicas entre raças são poucas, por isso não há razão para crer que uma raça seja superior à outra, mais inteligente, que tenha mais força de vontade, ou que seja mais emocionalmente estável. A ideia de relativismo cultural, de Boas, de que cada cultura deve ser julgada por suas próprias premissas, também estabelece a autonomia relativa do fenômeno cultural, que foi essencial para o entendimento e a prática do estudo da cultura histórica dos coreanos segundo a singularidade da cultura coreana. Na mesma linha de pensamento encontra-se Clifford Geertz (1973), que traz uma compreensão além do estruturalismo, sendo uma antropologia interpretativa que se apresenta em seu “fazer” através da etnografia.

Na obra Interpretação das Culturas, de Geertz, objetiva-se uma definição da cultura e seu significado para a prática de um antropólogo cultural. Define-se “cultura não é um poder, não é algo ao qual acontecimentos sociais, comportamentos, instituições, ou processos podem ser causalmente atribuídos” (GEERTZ, 1973, p. 14). Cultura, em outras palavras, não determina o comportamento humano, não pode ser reduzido a leis, regras sistemáticas ou paradigmas de comportamento conscientes ou inconscientes. A cultura, ao contrário, “é um contexto, algo dentro do qual eventos sociais, comportamentos, instituições ou processos podem ser inteligivelmente – isto é, densamente – descritos” (Idem, Ibidem). A descrição densa e sua leitura são o que dão significado aos atos individuais. Portanto, a análise da cultura não é uma ciência

21 Termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando “bem-nascido”. Teoria que busca produzir uma seleção nas coletividades humanas, baseada em leis genéticas; eugenismo.

experimental em busca de direito, mas uma interpretação em busca de significados. Geertz diz, em entrevista a Alan Macfarlane, entrevista expressa:

“[...] não estudos os javaneses para entender os EUA. Estudei os javaneses para entender os javaneses. [...] Eu acho que devemos entender o outro como o outro, não como pálida reflexão de nós mesmos ou como um canal para conhecermos a nós mesmos” (GEERTZ, 2004)22.

Ambos os antropólogos culturalistas contrapõem uma visão unidimensional sobre o mundo e valorizam a singularidade de cada grupo. Geertz compreende o sistema cultural como um padrão historicamente transmitido de significados incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seus conhecimentos e atitudes em relação à vida. Critica aqueles que localizam a cultura nas mentes e corações dos homens. Embora o pensamento ocorra na cabeça e envolva toda a psicologia humana, Geertz, no entanto, afirma que o pensamento humano é consumativamente social: social em suas origens, social em suas funções, social em suas formas, social em suas aplicações. O pensamento humano, como um fenômeno subjetivo, não pode ser observado, mas suas formas e funções dentro da arena social podem ser minuciosamente observadas. A antropologia cultural, como Geertz pratica, começa indutivamente com a observação e descrição de padrões sociais (GEERTZ, 2008, p. 89).

Em observações da comunidade coreana em São Paulo percebeu-se que há um costume interessante dos imigrantes sul-coreanos – o kye. Consiste em um sistema de consórcio de ajuda mútua que envolve grande soma de dinheiro. As reuniões mensais são em restaurantes coreanos dando aos consorciados o direito a um jantar farto, sem limites no pedido de prato; cada consorciado pode levar sua família. Kye nada mais é que um modo informal de coletar uma soma razoável em dinheiro, usado em eventos com uma grande despesa, tais como casamento dos filhos, funerais, festas e outros eventos que requerem grande soma de dinheiro. Este dinheiro é sorteado e serve como ato de solidariedade

22 GEERTZ, Clifford. Ayabaya, Cambridge, maio, 2004. Entrevista concedida ao Professor Alan MacFarlane. Youtube, 20 nov. 2007. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3dQDx3axrDs. Acesso em: 17 de março de 2019.

ou ajuda mútua na comunidade coreana. Este costume, que foi transmitido historicamente por gerações, será analisado mais profundamente no próximo capítulo.

No entanto, como Geertz reconheceu, observação e descrição, em si mesmas, são insuficientes para descrever a cultura. Como ele aponta, a cultura não pode ser reduzida a padrões de comportamento específicos – costumes, usos, tradições, grupos de hábitos. Pelo contrário, a cultura é melhor vista como um conjunto de regras que servem para governar o comportamento. Para usar uma analogia linguística, os padrões culturais fornecem a gramática. Sendo assim, a cultura, de acordo com Geertz, pode ser estabelecida do seguinte modo:

[...] o conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui referentes múltiplos e nem qualquer ambiguidade fora do comum, [...] ele denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (GEERTZ, 1989, p. 103).

A função da cultura é impor significado ao mundo e o fazer compreensível. O papel dos antropólogos é tentar – embora o sucesso completo não seja possível – interpretar os símbolos orientadores de cada cultura.