• Nenhum resultado encontrado

DO ESTUDO DA TRADUÇÃO E DA FORMAÇÃO SUPERIOR DE TRADUTORES

1. Do Estudo da Tradução

1.1. Os Estudos de Tradução

No seu artigo inaugural, James S. Holmes criou um objecto de estudo novo – a tradução, entendida enquanto processo e produto – e, simultaneamente, uma nova disciplina – os Estudos de Tradução –, antecipando o comentário de Roberto Mayoral Asensio de que «Quando se cria um objecto de estudo novo, cria-se uma disciplina para o mesmo» 25.

Holmes advogou o estatuto de disciplina independente para os ET, mas não de uma disciplina isolada das outras. Pelo contrário, ele concebeu os ET como uma área do conhecimento cujo desenvolvimento seria possível a partir do contacto com outras disciplinas e com diferentes tipos de intervenientes, conforme se pode constatar neste excerto: «uma teoria abrangente da tradução (...) terá de ser o resultado de um trabalho de equipa entre especialistas de diferentes áreas (...). E com a participação

25 «Cuando se define un objeto de estudio nuevo, se crea una disciplina en torno al mismo.» (Mayoral Asensio 2001, 91).

dos próprios tradutores.» 26.

Alguns anos mais tarde, Mary Snell-Hornby completou a ideia de Holmes ao descrever os ET como uma interdisciplina:

(…) translation studies as an integrated and independent discipline that covers all kind of translation, from literary to technical. In this view, translation draws on many disciplines, but is not equal to the sum total of their overlapping areas and is not dependent on any one of them. As a discipline in its own right, translation studies needs to develop its own methods based (...) on the complexities of translation (...) both the translator and the translation theorist are rather concerned with a world between disciplines, languages and cultures. (Snell-Hornby 1988/1995, 35).

A ênfase que Snell-Hornby coloca na sobreposição disciplinar corresponde ao conceito estabelecido do que é uma interdisciplina. Michael Scriven, p. ex., escreve que as interdisciplinas «focam uma área em que várias disciplinas se sobrepõem, como a Ética Médica ou a Ergonomia» 27. A novidade desta autora reside no facto de Snell-Hornby interpretar a relação dos ET com as restantes disciplinas como uma relação de apropriação unidireccional (das suas linguagens, culturas, temas, teorias e metodologias) (Snell-Hornby 1988/1995, 2-3, 32, 35), algo que nos parece refutável se nos lembrarmos que os ET fornecem um instrumento que é indispensável a todas elas e que é a própria tradução. Além disso, a ênfase que, ao reforçar a palavra «between», a autora coloca no hiato

26 «a comprehensive theory of translation (…) will have to be the product of teamwork between specialists in a variety of fields (…). And with the involvement of practising translators.» (Holmes 1994, 101).

27 «focus on an area where several disciplines overlap—medical ethics or ergonomics, for example.» (Scriven 1991, 364).

interdisciplinar dá a entender que esse será sempre o espaço dos ET, que,

assim, se vêem vedados de uma existência própria, conforme Snell-Hornby advoga no passo que citámos acima.

Tal como Mary Snell-Hornby, também nós estimamos os ET como uma interdisciplina, embora favoreçamos a troca bidireccional e multidireccional de informações e a ocupação de um lugar próprio, não circunscrito aos espaços entre as outras disciplinas. A natureza das relações que acompanham as sobreposições disciplinares será, agora, debatida.

Certos autores ligados aos ET consideram-nos como uma

disciplina que estabelece relações de diferentes tipos com as outras áreas

do saber. Referir-nos-emos, aqui, às propostas de Roberto Mayoral Asensio, Amparo Hurtado Albir e de Carlos Castilho Pais.

Mayoral Asensio atribui dois tipos de interdisciplinaridade aos ET. De um lado, ele atribui-lhes uma interdisciplinaridade interna, a qual associa à própria investigação, mais especificamente, ao contributo que as outras disciplinas fornecem para os ET 28 (um pouco à semelhança de Snell-Hornby, Mayoral Asensio parece ter dúvidas acerca do contributo dos ET para as outras disciplinas). Do outro lado, o autor atribui aos ET uma interdisciplinaridade externa, que considera ser comum a todos os estudos da comunicação e que vê como decorrendo da própria interdisciplinaridade (e/ou pluridisciplinaridade, segundo deduzimos da leitura do passo em baixo) dos documentos traduzidos, bem como das disciplinas que enformam a prática das diferentes modalidades de tradução:

28 «Los Estudios de Traducción son un campo interdisciplinar construido por aportaciones de la teoría del lenguaje, la teoría de la comunicaión y la psicolingüística, especialmente.» (Mayoral Asensio 2001, 62).

(...) interdisciplinariedad interna. Ésta seria la convergencia en el estudio de la traducción de lingüística, psicología, sociología, semiótica, estudios de la comunicación 29, etc., es decir las disciplinas de nivel superior de las que derivan los Estudios de Traducción. Queda por dilucidar si existen unos Estudios de Traducción que converjan con las anteriores o los Estudios de Traducción no son más que el resultado de la convergencia de las disciplinas anteriores cuando estudian la traducción. Este primer tipo de interdisciplinariedad está vinculado al estudio de la traducción. Creo que existe también otro tipo de interdisciplinariedad a la que podemos denominar externa y que es característica de todos los estudios de la comunicación (…), pues continuamente convergen en la traducción el conjunto de disciplinas con las que se relaciona y a las que hemos hecho mención anteriormente con 1) las disciplinas a las que se refieren los diferentes textos o mensajes a traducir y traducidos y que incluyen cualquier campo imaginable del saber (bioquímica, derecho procesal, minería, música, etc.) y con 2) las disciplinas características de los diferentes modos de traducir (audiovisual, localización, hipertexto, traducción oficial, etc.). Este segundo tipo de interdisciplinariedad está vinculado a la ejecución de la traducción. (Mayoral Asensio 2001, 65).

Esta concepção de interdisciplinaridade vai ao encontro da seguinte metáfora de Michael Scriven acerca da interdisciplinaridade – «os

temas interdisciplinares são propriedades situadas nas zonas de

sobreposição de duas ou mais regiões, mas que são parte de um mesmo

29 «No se aprecia en el campo de los Estudios de Traducción una tendencia centrípeta fuerte a fundirse con otras disciplinas para crear disciplinas nuevas de ámbito más amplio». Repare-se, no entanto, que este autor prossegue, afirmando que, a acontecer, essa tendência e fusão dar-se-ão, muito provavelmente, nas áreas das Ciências da Comunicação ou das Ciências da Informação (Mayoral Asensio 2001, 66).

projecto» 30. Assim, torna-se possível falar, como Julie Thompson Klein faz, da interdisciplinaridade como «um rótulo que serve para descrever as diferentes formas de interacção cujo objectivo é integrar os conceitos, métodos, dados ou as epistemologias de múltiplas disciplinas em torno de uma questão, tema, problema ou ideia específica» 31 . Mas a interdisciplinaridade coloca algumas exigências especiais, conforme Nicolas Bullot notou num seminário virtual organizado por Dan Sperber. Ela requer, entre outros factores, que os participantes tenham conhecimentos multi/pluridisciplinares, ela exige que a investigação seja realizada por redes de investigadores a trabalharem em colaboração e que a mesma decorra em áreas do conhecimento comensuráveis e exige, ainda, que uma grande quantidade de informação seja trocada com comunidades epistémicas externas (in Sperber 2005).

Amparo Hurtado Albir interpreta os ET como uma disciplina de carácter multidisciplinar. Segundo esta autora, a multidisciplinaridade é «um quadro (...) de análise» 32, uma forma de abordar uma disciplina que se liga, estruturalmente, a muitas outras disciplinas, incluindo a didáctica 33, e que o faz de formas variáveis, uma vez que o peso das outras disciplinas muda consoante o objecto de estudo (A. Hurtado Albir 2001, 135-138). A concepção de multidisciplinaridade desta autora encontra-se mais próximo da ideia de interdisciplinaridade de Michael Scriven do que da forma como o termo multidisciplinar é, geralmente, entendido:

30 «interdisciplinary subjects are estates located where one or more regions overlap, built on a joint project» (Scriven 1991, 14).

31 «a label for a variety of interactions that aim to integrate concepts, methods, data, or epistemology of multiple disciplines around a particular question, theme, problem or idea» (Klein s/d).

32 «un marco (...) de análisis» (A. Hurtado Albir 2001, 170).

33 Recordamos que Snell-Hornby, que demonstra uma preocupação idêntica à de Hurtado Albir com a formação de tradutores, não faz nenhuma referência explícita às disciplinas que lhe estão directamente associadas.

“Multidisciplinary”, although often used as a synonym for “interdisciplinary” usually refers to activities that use the methods of several disciplines on a problem without as strong a suggestion that the subject matter constitutes an autonomous discipline located adjacent to their fiefdoms. (Scriven 1991, 364).

Por outro lado, Julie Klein nota que o termo aplica-se às situações em que diferentes áreas do saber se sobrepõem, sem que haja assimilação. A multidisciplinaridade é, assim, propícia ao desenvolvimento de perspectivas diferentes, nem sempre proveitosas, conforme nota Raymond Miller 34, sobre um mesmo objecto de análise (Klein s/d).

Referimo-nos, agora, a Carlos Castilho Pais. Sob a influência de Edgar Morin (Morin 1982, 17; Morin 1994), este autor associa os ET à

transdisciplinaridade. Segundo ele, este termo remete «para a questão em

torno do saber», permitindo que a entrada dos ET nesse debate se realize «sobre um questionar do saber actual» e que a mesma se faça como um dos «postulados metodológicos e filosóficos que, de alguma forma, unificaram as disciplinas», a partir de um lugar exterior às mesmas (Pais 1999, 92).

Na escolha deste atributo para os ET, vemos o desejo de Castilho Pais de dotar a disciplina da mesma unidade/unificação e abrangência cognitiva e da mesma liberdade relacional que Julie Thompson Klein associa à transdisciplinaridade. Segundo ela, a transdisciplinaridade remete para:

34 «Multidisciplinary approaches “involve the simple act of juxtaposing several disciplines, but no systematic attempt at integration or combination.” Multidisciplinary teams might teach a survey course, work on a research project, or serve as a presentation or expert panel. Multidisciplinary efforts are often problem centered. The results are frequently confusing because each specialist is speaking her/his language, using her/his particular concepts and focusing on her/his aspect of the problem.» (R. C. Miller 1997).

a higher stage of interaction that entails an overarching framework that organizes knowledge in a new way and, in a new discourse, cooperation of multiple sectors of society and stakeholders in addressing complex problems (Klein s/d).

Através deste passo da mesma autora, concluímos, aliás, que a transdisciplinaridade mais não é senão o grau supremo da complexidade e do interrelacionamento entre disciplinas:

Broadly speaking, transdisciplinarity is involved in a series of shifts […]:

• from segmentation to boundary crossing and blurring • from fragmentation to relationality

• from unity to integrative process

• from homogeneity to heterogeneity and hybridity • from isolation to collaboration and cooperation • from simplicity to complexity

• from linearity to non-linearity

• from universality to situated practices. (Klein s/d) 35.

Todavia, os ET debruçam-se sobre um objecto que é

35 Interessante é a maneira como Klein recorre à imagem de Babel para descrever a transdisciplinaridade: «Babel is the condition of transdisciplinarity. It is generative and emergent, it[‘]s intellectuality vested in reflexivity and collaborative modes. All social actors (...) need to reflect on the consequences of their actions and to develop the capability to deal with wanted and unwanted side-effects. As a form of problem solving, transdisciplinarity is a context-specific, actor-oriented negotiation of knowledge, not an instrumental formula. In all its contemporary forms, transdisciplinarity moves toward improving choices, heightening reflexivity, generating new languages, designing new structures, and devising new pluralistic and more complex knowledge cultures across disciplinary, professional, interdisciplinary, and sectoral communities.» (Klein s/d) (os sublinhados são nossos).

indispensável a todas as outras disciplinas – a tradução. É, novamente, Michael Scriven quem se pronuncia sobre as disciplinas cujos objectos de estudo apresentam estas características:

TRANSDISCIPLINE Transdisciplines such as statistics,

logic, or evaluation, are disciplines whose subject matter is the study and improvement of certain tools for other disciplines. That study generates some general methodology, epistemology, and ontology relating to these tools, much of it interwoven with one or more metatheories. Transdisciplines often have several semiautonomous fields of study connected with them (for example, biostatistics, formal logic). (Scriven 1991, 364) (o sublinhado é nosso).

Noutra parte da sua obra, Scriven escreve, ainda, que, «embora mantendo a autonomia de uma disciplina de direito próprio» 36, as transdisciplinas distinguem-se por se formarem para auxiliar as outras disciplinas:

There can be no intellectual activity without primary disciplines and by and large, transdisciplines come into existence to service them, as the utility companies come into existence to service already existing buildings that house people and businessess already dealing with each other, sometimes with their own primitive sources of power (for example). The transdisciplines thus exist to serve—and only then come to exist as disciplines in their own right. Although they deserve to be seen as disciplines, they are tool disciplines—in other terminology, one might say that they are essentially symbiotic in origin, or that they are driven from the bottom up rather than from the

36 «while maintaining the autonomy of a discipline in their own right.» (Scriven 1991, 1).

top down. (…) The practice of the early transdisciplines such as informal logic and evaluation developed into disciplines in their own right as knowledge was increasingly converted from implicit to explicit status and the inevitable questions generated answers. (Scriven 1991, 17) (os sublinhados são nossos).

Ou seja, e aplicando este raciocínio aos ET, a tradução é, como se sabe, uma prática antiga que, desde sempre, assistiu as outras práticas e saberes, práticas e saberes esses que, por sua vez, se foram transformando em disciplinas, interdisciplinas e, até mesmo, em transdisciplinas à medida que as questões que iam levantando apelavam a uma sistematização maior. Ora, o mesmo aconteceu com a tradução, sendo James Holmes a perceber que havia chegado o momento da sua sistematização científica. Se acompanharmos o raciocínio de Michael Scriven, mais do que criar uma nova disciplina independente dedicada ao estudo da tradução enquanto processo e produto, Holmes criou uma transdisciplina que se dedicava ao «estudo e aperfeiçoamento» de uma ferramenta de aplicação universal.

Assim, concluímos que os ET são uma transdisciplina, pelas razões que acabámos de apontar. Mas eles são, também, uma transdisciplina interdisciplinar porque estão, sistematicamente, envolvidos com outras disciplinas, tais como as disciplinas das ciências e tecnologias, as Ciências da Educação ou as Ciências da Comunicação, tanto nos seus objectos de estudo, como na própria actividade de investigação. Além disso, os ET são ou podem ser, igualmente, uma transdisciplina

multidisciplinar sempre que se socorrerem dos métodos de outras

disciplinas para lançar novas luzes sobre questões pontuais. Por fim, os ET são uma transdisciplina transdisciplinar porque se situam, ou aspiram a situar-se, num patamar cognitivo e relacional tal que lhes permite actuar com a máxima liberdade nos planos cognitivo e comunicativo. Assim se compreende que, nesta tese, se fale da tradução como uma forma de

Uma resenha da bibliografia sobre este último tema – a tradução científica e técnica – é o que nos propomos apresentar a seguir.