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CAPÍTULO 4 – PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA DIALETOLOGIA E DA GEOLINGUÍSTICA

4.3 OS ESTUDOS DIALETOLÓGICOS E GEOLINGUÍSTICOS EM PORTUGAL

Iniciamos esta seção apresentando os períodos dos estudos dialetais em Portugal. Assim, conforme Barros Ferreira (1994) há três períodos: o primeiro deles, 1836-1868, é caracterizado por referências dispersas à variação territorial; o segundo, 1868-1942, é definido

108 Grupos demograficamente estáveis. 109 Grupos móveis.

como o início dos estudos dialetais; e o terceiro, 1942-1994, compreende a dialetologia atual, relacionada com a coleta ordenada de dados, com objetivos definidos e com interpretações de conjunto.

No entanto, Carvalho (1964, p. 167) apresenta outra proposta de divisão que se pauta em duas fases: a primeira delas, 1880-1940, é iniciada por Leite de Vasconcellos e “[...] sobretudo pela actividade infatigável do diretor da Revista Lusitana, não só como investigador, mas como animador e despertador de boas vontades, e assinalada pelo carácter fragmentário, como que incompleto, dos estudos dialetológicos então publicados”. A segunda fase que se inicia em 1940, de acordo com Carvalho (1964, p. 171), e tem seu marco fixado no “momento em que a Faculdade de Letras de Coimbra confiou ao Prof. Manuel de Paiva Boléo a cadeira de filologia portuguesa”.

Desse modo, segundo Barros Ferreira (1994, p. 110), os fundamentos da dialetologia em Portugal impulsionaram-se na segunda metade do século XIX, quando “as linguagens não oficiais se tornam objetos de estudo”. Assim, é com a pesquisa de Adolfo Coelho, A Língua

Portuguesa, de 1868, que a diversidade dos usos da língua portuguesa passam a ser

estudados. Além desse trabalho, Adolfo Coelho, ainda, com o objetivo de pesquisar os aspectos dos usos da língua, inicia outra pesquisa de cunho monográfico que trata do estudo da linguagem dos ciganos, publicado no primeiro número da Revista Lusitana de 1887.

No final do século XIX, os nomes de José Leite de Vasconcellos e Aniceto dos Reis Viana ganham destaque. De acordo com Barros Ferreira (1994, p. 110), é nesse período que “verdadeiramente começa a descoberta voltada para o interior do país, a preocupação com a identificação dos caracteres de cada área e a visão geográfico-histórica da língua”.

Leite de Vasconcellos destaca-se, então, com a elaboração do primeiro mapa dos dialetos portugueses, o Mapa Dialectologico do Continente Português, publicado em Paris em 1890. Em 1900, o autor realiza um estudo sobre o mirandês. Em 1901, Leite de Vasconcellos torna-se único na área com a publicação de sua tese de doutoramento, Esquisse

d’une Dialectologie Portugaise, na qual o autor relata a história geral dos dialetos

portugueses, os diferentes dialetos e suas características gerais. Vale salientar que essa obra apresenta uma visão geral da língua portuguesa, além de um panorama da dialetologia.

O período que Barros Ferreira (1994) define como o início dos estudos dialetais encerra-se em 1942, após o que se inicia o terceiro período, caracterizado pela coleta ordenada de dados com objetivos predefinidos. Neste terceiro período, é Manuel de Paiva Boléo que ganha destaque, não somente por dar sistematicidade à pesquisa dialetal, mas

também pela natureza do trabalho que elaborou, o que o torna o principal dialetólogo do início desse período.

Manuel de Paiva Boléo, Professor da Universidade de Coimbra, 1940-1974, elaborou, então, duas importantes iniciativas no campo da Dialetologia: a primeira delas é a organização do Inquérito Linguístico Boléo (ILB)110; e a segunda é a orientação de várias teses sobre diversos aspectos da dialetologia portuguesa, além de criar, ainda, a Revista Portuguesa de

Filologia (RPF), um importante veículo de circulação de variadas pesquisas dialetais

portuguesas. Com o objetivo de fornecer uma visão geral dos falares portugueses, Manuel de Paiva Boléo assumiu a elaboração do Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal, projeto que não se concretizou por falta de condições. Anos mais tarde, esse projeto foi acolhido como uma das atividades do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, vindo, assim, a ter continuidade.

De acordo com Cardoso (2010, p. 117), é com o Atlas Linguístico da Península

Ibérica (ALPI) que se confere “uma nova perspectiva na recolha de dados, aperfeiçoando-se

qualitativamente a investigação que passa a ser realizada por equipes de especialistas na área” da Dialetologia. Segundo a autora, “o ILB e o ALPI vão fornecer os primeiros materiais recolhidos sistematicamente e capazes de permitir a intercomparação de dados em todo o território português”. Surgem, então, três propostas de delimitação dos dialetos portugueses.

A primeira delas, projetada por Boléo e Maria Helena Santos Silva, fundamenta-se na documentação do ILB. Essa proposta é alvo de críticas, visto que apresenta uma divisão dialetal com base em dados fonéticos coletados por meio de inquéritos por correspondência. A segunda, proposta por Pilar Vazquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, apresenta- se de forma simplificada, já que sugere apenas três grandes zonas dialetais (Norte, Centro e Sul), além de não apresentar a delimitação em cartas linguísticas. Por sua vez, a terceira proposta de delimitação é a mais completa, proposta por Lindley Cintra111. Segundo Barros Ferreira (1994, p. 113) “apresenta pela primeira vez uma visão simultaneamente histórica e estruturada”.

Cintra admite a importância de se considerar um traço fonético recorrente para o procedimento de divisão dialetal de um determinado território. Desse modo, Cintra seguiu a sugestão de Badía Margarit, a saber: “melhor é adotar um único traço distintivo, mas muito relevante” (apud Cintra, 1983a, p. 147). Assim, de acordo com Cardoso (2010, p. 118), Cintra

110 “O ILB foi um inquérito por correspondência – único viável, em 1942, quando a Europa estava mergulhada

na II Guerra Mundial –, enviado a professores e párocos de todas as freguesias, cujas respostas foram coletadas em 1942-1943” (CARDOSO, 2010, p. 115).

define como traço distintivo para a sua divisão dialetal “a realização da sibilante correspondente aos grafemas s e ss como apicoalveolar ao norte e como pré-dorsodental ao sul, vindo, após essa primeira delimitação, a proceder ao estabelecimento do que passa a constituir os subgrupos de cada uma das grandes áreas”. Conforme Segura e Saramago (2001), esse traço fonético foi selecionado por Cintra (1983b) para distinguir o grupo dos dialetos setentrionais do grupos dos dialetos centro-meridionais.

Além disso, Lindley Cintra elaborou estudos com base em dados de natureza lexical. Em 1958, apresenta o trabalho Áreas Lexicais no Território Português112, sendo que para essa pesquisa fundamentou-se em dados de 77113 dos 93 inquéritos do ALPI e estudou os materiais lexicais obtidos como resposta aos seguintes conceitos: “ordenhar, úbere da vaca, soro, fêmea estéril, cria da ovelha, cria da cabra, maçaroca e queixo” (CINTRA, 1983a, p. 60).

O Atlas Linguístico do Litoral Português (ALLP), de Gabriela Vitorino (1987), apresenta a linguagem dos pescadores e propicia uma visão linguística da costa litorânea portuguesa. Nos 23 pontos pesquisados, foi aplicado um questionário que abrange alguns aspectos gerais da morfologia de algumas espécies da fauna e da flora marinhas. O trabalho de análise dos dados resultou em 200 cartas linguísticas. Apesar de esse estudo abarcar dados de natureza semântico-lexical, a análise da transcrição dos resultados permite a identificação de algumas delimitações linguísticas na costa litorânea portuguesa.

Reúne-se, nessa breve visão de alguns dos estudos dialetais em Portugal, o Atlas

Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza (ALEPG), que teve a sua primeira proposta

de realização em 1957 com José Herculano de Carvalho e Luís Felipe Lindley Cintra. O ALEPG deveria (i) recobrir todo o território português, a fim de possibilitar a delimitação de fronteiras linguísticas; (ii) ser constituído de 300 a 350 pontos geográficos, selecionados levando em consideração a densidade populacional e as características linguísticas da localidade; (iii) ter somente um inquiridor; (iv) fundamentar-se no Atlas Linguístico-

Etnográfico da Itália e da Suíça Meridional (AIS) e no Inquérito Linguístico Boléo (ILB),

além da utilização de questionários de outros atlas linguísticos; e (v) não se deveria preocupar excessivamente com particularidades na transcrição fonética.

Apesar do ALEPG não ter tido êxito na sua execução por falta de condições, em 1970, Lindley Cintra, com sua equipe, retoma o projeto no âmbito das atividades do Centro de Estudos Filológicos, hoje Centro de Linguística, da Universidade de Lisboa. Nessa fase, o

112 Trabalho apresentado, em forma de comunicação, ao I Congresso de Dialetologia e Etnografia em Porto

Alegre (Setembro/1958).

Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza ganha impulso e conta com uma rede

de 212 pontos, assim distribuídos: 176 no continente; 12 na Espanha, na área fronteiriça; sete no arquipélago da Madeira; e 17 no arquipélago dos Açores. Em cada ponto geográfico selecionado há um informante principal e outros específicos que são classificados em diversas atividades profissionais. A coleta de dados foi iniciada em 1973, com a aplicação de um questionário lexical, de base onomasiológica, o qual foi reduzido pela metade, a partir de 1990, conforme Saramago (1994).

Figura 32 - Rede de pontos de inquérito (ALEPG)114

Fonte: Elaboração do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa115.

Atualmente, o projeto (ALEPG) vem sendo conduzido pelos dialetólogos João Saramago (coordenador), Gabriela Vitorino e Luísa Segura, que integram o Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.

114 Os pontos de inquéritos na Figura 32 são numerados de norte para sul e de oeste para leste.

115 A Figura 32 está disponível em: http://www.clul.ul.pt/en/researcher/205-linguistic-and-ethnographic-atlas-of-

De acordo com Segura (2008, p. 250), houve, em virtude de várias circunstâncias, “a necessidade de ajustar faseamentos no projeto global ALEPG com a possibilidade que, nessa altura, se apresentava de obter financiamento para projetos de curta duração”. Assim sendo, foi lançado, então, o projeto Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores (ALEAç), o qual respondia a tais demandas. O ALEAç insere-se, portanto, em um projeto mais amplo, o ALEPG, e, por isso, esse atlas não tem as características de um atlas regional, na medida em que não pretende abordar de um modo aprofundado as realidades linguísticas e etnográficas locais. O ALEAç é constituído, então, de um conjunto de mapas linguísticos de caráter lexical, além de possuir um conjunto de mapas de caráter morfofonológico.

O ALEAç abrange 17 localidades nas nove ilhas do arquipélago dos Açores. O questionário linguístico utilizado nas entrevistas é o do ALEPG, publicado em 1974, que se tratava, inicialmente, de um questionário com cerca de 4.000 perguntas de base lexical, abrangendo alguns aspectos fonéticos e morfofonológicos. A partir de 1990, entretanto, optou-se por fazer duas etapas de recolhas, reduzindo-se o questionário, numa primeira fase, para cerca de metade das perguntas, que contemplavam variados campos semânticos. Para a escolha dos informantes adotaram-se os seguintes critérios: o informante deveria pertencer à localidade; ter baixo nível de escolaridade; ter idade superior a 40 anos; e ausência de defeitos de pronúncia, além de um bom conhecimento dos assuntos inquiridos. Fizeram parte da coleta de dados, para a realização do ALEAç, os investigadores Celeste Augusto, Gabriela Vitorino, João Saramago, Luísa Segura e Manuela Barros Ferreira116.

O projeto Atlas Linguarum Europae (ALE) engloba todas as línguas da Europa e a maioria dos respectivos dialetos. Instituído oficialmente na Holanda, em 1970, a sua fase de publicação foi iniciada em 1975. O ALE é constituído por dois volumes, um de mapas e outro de comentários. A abordagem das denominações obtidas para os itens lexicais do ALE, nas 2.631 localidades europeias selecionadas, foi de caráter etimológico e motivacional. A colaboração portuguesa no ALE foi iniciada em meados de 1974 pelo Grupo de Estudos de Dialetologia do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, hoje Instituto de Linguística, que teve como investigadora responsável, para a realização do ALE, a pesquisadora Manuela Barros Ferreira. Para esse projeto foram feitos, em 1975, inquéritos em 53 aldeias portuguesas, segundo o questionário, de cerca de 550 perguntas, que foi utilizado nos demais países europeus. Depois de elaboradas as sínteses nacionais das denominações de

116 Essas informações complementares sobre o ALEAç estão disponíveis em:

cerca de 300 conceitos, passou-se à fase de conjugação de sínteses a nível românico e, posteriormente, à elaboração de mapas e comentários a nível europeu.

O Atlas Linguistique Roman (ALiR) originou-se em 1987, por iniciativa de Gaston Tuaillon e Michel Contini, primeiros Presidente e Diretor, respectivamente, tem a sua sede no Centre de Dialectologie da Université Stendhal de Grenoble e conta com o apoio financeiro da União Europeia. Atualmente é presidido por Joan Veny. O ALiR está estruturado em 10 comités (português, galego, espanhol, catalão, francês, valão, suiço, italiano, romeno e moldavo) que integram especialistas de 31 universidades ou centros de investigação dos vários países participantes117. Portugal está representado por uma rede de 110 pontos de inquérito, dos quais 10 são no arquipélago dos Açores e quatro no arquipélago da Madeira118. Os dados dialetais do português foram coletados e são tratados a nível nacional pelo comitê português que participa desse projeto, desde o seu início, em 1987, através do Grupo de Estudos de Dialetologia do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa que teve como investigadora responsável, para a realização do ALiR, a pesquisadora Luísa Segura, bem como a participação de Gabriela Vitorino, Manuela Barros Ferreira, João Saramago, Maria Lobo, Ernestina Carrilho e Celeste Augusto (Universidade de Utrecht).

O Atlas Linguistique Roman trata-se de um empreendimento científico coletivo que propõe, a um grande número de dialetólogos dos países românicos, uma reflexão à escala de todo um domínio linguístico. Para o estudo lexical foram selecionados 592 conceitos que recobrem os principais domínios semânticos. Para os aspectos fonéticos foram escolhidos 284 dados representativos da evolução do vocalismo e do consonantismo latinos, no pressuposto de que a delimitação das áreas geográficas de todos os resultados permitirá caracterizar os falares atuais. Finalmente, a descrição das estruturas morfossintáticas foi limitada a 43 traços, dado que os atlas linguísticos já existentes atribuíram, no conjunto, um lugar restrito a esse aspecto da língua. Cada mapa do ALiR é acompanhado de um comentário que propõe, de modo sucinto, uma análise e uma classificação dos dados recolhidos, na dupla perspectiva diacrônica e sincrônica. O ALiR, segundo Cardoso (2010, p. 130), é considerado um atlas de segunda geração, já que é interpretativo e traz “comentários que aprofundam o conhecimento da área não só na perspectiva sincrônica como também na linha da história”. Com base nisso, podemos encontrar, para cada item cartografado, informações complementares sobre as realizações fonéticas, bem como estudos de natureza linguística.

117 Em 1998, Portugal organizou o XIº Colóquio Internacional do Atlas Linguistique Roman (ALiR) que ocorreu,

de 6 a 11 de Outubro, na Foz do Arelho e que contou com a participação de representantes dos diversos comités nacionais.

Com base no que foi exposto nessa seção, podemos dizer que os estudos dialetais, em Portugal, iniciaram-se efetivamente no final de século XIX, porém foi somente no século XX que a concretização de um atlas linguístico do território português ganhou força. Além disso, os dados coletados em Portugal, até o presente momento, permitem um conhecimento areal do PE não só no que diz respeito ao nível fonético-fonológico, como também no que tange os níveis semântico-lexical e morfossintático.

4.4 ALGUNS ESTUDOS DIALETOLÓGICOS E GEOLINGUÍSTICOS