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2 SOBRE PATENTES E SEGREDOS INDUSTRIAIS: UMA INTRODUÇÃO

A discussão que pretendemos travar ao longo deste estudo é perpassada por um conjunto de objetos e conceitos próprios a algumas áreas específicas do conhecimento — principalmente o direito e a economia —, sendo, contudo, muito pouco conhecido em outras searas, incluindo-se o campo historiográfico. Neste sentido, pretendemos neste capítulo estabelecer, ainda que de uma forma primária, definições importantes sobre algumas categorias básicas que integram a esfera da propriedade intelectual e do comércio de tecnologia, acreditando que tal exercício possa se mostrar bastante útil para uma mais clara compreensão do tema abordado e da argumentação apresentada no desenvolvimento de nossas hipóteses de trabalho.

2.1 OS PRIVILÉGIOS DE INVENÇÃO: APONTAMENTOS HISTÓRICOS SOBRE A

de privilégios comerciais datam do século XII: um relato de um viajante denominado Benjamin de Tudela faz menção a um monopólio concedido em Jerusalém, referente à atividade de tingimento de tecidos.89 É provável que a partir dessa região os privilégios comerciais tenham gradativamente se espalhado por toda a Europa ocidental, difundindo-se especialmente nas regiões mais ligadas ao comércio com o Oriente, tais como o norte da península itálica. Ao longo do par de séculos seguinte encontram-se outros registros similares, principalmente em Veneza, Florença e algumas regiões da França e Inglaterra, todos eles concentrando-se particularmente nos ramos da fabricação de tecidos e vidros. Ressaltemos, porém, que, ainda que a lógica de proteção em muitos casos se aproxime, os primeiros tipos de privilégios comerciais não podem ser considerados como patentes em seu sentido moderno, uma vez que aqueles não envolviam específica e obrigatoriamente invenções. Tais monopólios, em geral, consistiam basicamente em instrumentos de atração, por meio da expectativa de lucro, de profissionais estrangeiros detentores de técnicas e artes de que algumas regiões não dispunham. Eram, enfim, mais instrumentos de introdução de atividades econômicas já existentes e conhecidas, porém ainda não dominadas e executadas em domínios territoriais específicos, do que incentivos e premiações à atividade inventiva propriamente dita, ou seja, a introdução de atividades e produtos realmente inovadores.

Ainda de acordo com informações levantadas neste primeiro conjunto de estudos a respeito do sistema patentário, apenas no século XV, mais precisamente no ano de 1421, seria registrada a primeira concessão de privilégio a um inventor. Estabeleceria esta primeira patente, concedida na cidade de Florença a Filippo Brunelleschi, uma exclusividade de três anos para a fabricação de um tipo de barca com engrenagens para levantar objetos.90 Outro grande centro comercial da região, a cidade de Veneza, passaria também a conceder

89 Ver CRUZ FILHO, Murillo. A norma do novo: fundamentos do sistema de patentes na modernidade. Rio de Janeiro: [S.n.], 1986. p. 129-30.

90 FABRICZY, C. von. Filippo Brunelleschi. Stuttgart: [s.n.], 1892. Apud CRUZ FILHO, Murillo. Op. cit., p.

131-2.

exclusividades a inventores pouco tempo depois, a partir do ano de 1443. Talvez seja nos monopólios venezianos que se possa notar mais facilmente a gradual diversificação da natureza das atividades protegidas por privilégios. Segundo Cruz Filho, seria esta República responsável pela concessão dos primeiros monopólios conhecidos a impressores já desde o início do século XV, como estímulo à introdução da arte tipográfica em seu território (patentes de impressão).91 Outros tipos de privilégios conhecidos na região estariam ligados às atividades de mineração, comércio e manufaturas. Desta forma, continua o autor, conforme o sistema de monopólios se desenvolve e consolida no decorrer do século XV, vai ocorrendo

“um lento mas coerente processo de encadeamento conceitual entre os diferentes tipos de privilégio [...]”.92 Embora criassem reservas monopolísticas sobre campos distintos (exploração de recursos naturais, comércio, manufatura ou atividade inventiva), paulatinamente as distintas formas de privilégios iam se integrando a uma mesma estrutura de funcionamento, um conjunto similar de conceitos e regras construídos à luz de uma mesma racionalidade, justificando-se, legitimando-se e sendo regulamentadas a partir de elementos lógicos comuns.

É no contexto apresentado, de grande diversificação dos privilégios concedidos e de unificação dos fundamentos do sistema de concessão de prerrogativas econômicas, que surge a primeira lei de patentes de que se tem notícia. Seria a lei veneziana de 1474 a primeira sistematização formal do processo de concessão de monopólios aos inventores; até então, todos os “sistemas” de privilégios conhecidos consistiam em mercês concedidas pelos poderes constituídos em espaços territoriais específicos, atos extraordinários, portanto, totalmente submetidos à subjetividade da autoridade concessora. A partir deste estatuto a natureza das concessões seria modificada, uma vez que se passava a estabelecer objetivamente as funções a que se prestavam as patentes, sua duração, o espaço territorial em que se aplicaria, bem como

91 CRUZ FILHO, Murillo Op. cit., p.132-4.

92 Ibid., p.135.

os requisitos a serem preenchidos por seus postulantes. Passava-se a tratar o privilégio não mais como um ato dependente da graça do poder local, mas como uma decisão impessoal, extensiva a qualquer pessoa que atendesse às condições estabelecidas por lei. Em seu texto ficariam explícitos os princípios fundamentais da proteção patentária, os conceitos legitimadores do oferecimento de monopólios temporários aos inventores: o estímulo à atividade inventiva; a compensação ao inventor pelos esforços despendidos no processo de criação; o direito do inventor sobre a criação espiritual; a utilidade social da invenção.

Estabelecia também a lei de 1474 as condições necessárias para que um determinado invento pudesse gozar da prerrogativa monopólica: novidade (ineditismo da obra, ou seja, seu não englobamento no estado das artes);93 engenhosidade (sua originalidade e capacidade de apresentar soluções a problemas específicos); exeqüibilidade (sua capacidade de execução e utilização); publicidade da informação técnica (descrição pormenorizada da técnica utilizada e dos detalhes práticos para se chegar ao objeto inventado).

Os conceitos fundantes da lei veneziana de 1474 seriam gradativamente disseminados e consolidados em todo o Ocidente, formando uma espécie de estrutura genérica de patenteamento que seria adotada ao longo dos séculos seguintes, ainda que os “sistemas” de concessão de privilégios de invenção permanecessem, na esmagadora maioria dos países, geralmente atrelados ao tradicional estatuto de mercês, não sistematizados, portanto, na forma de leis especificas, como no caso veneziano. O patenteamento era fundamentado em um tipo de relação específica entre o inventor e a sociedade: esta última concedia uma licença a um de seus membros para que atuasse exclusivamente em um determinado campo econômico, gozando privadamente, por um tempo limitado, das vantagens oferecidas pela atividade

93 Deve-se destacar que no caso da primeira lei de patentes o ineditismo era exigido apenas nos limites do território veneziano. Desta forma, mesmo que já fosse conhecida ou usada em outros lugares, uma invenção seria considerada nova se ainda não tivesse sido introduzida naquela república. Este é um conceito de novidade que posteriormente seria denominado pelos especialistas na matéria como “novidade relativa”, em contraste com a exigência de um total ineditismo, no tempo e no espaço, conhecido como “novidade absoluta”. Para maiores detalhes sobre tais conceitos ver DI BLASI, Gabriel, GARCIA, Mário, MENDES, Paulo P. A propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 124-6.

exercida. Entretanto, não seria primordialmente o beneficio do interesse individual do detentor do privilégio o objetivo final da proteção patentária, mas o atendimento mais amplo do bem-estar coletivo, que seria promovido pela aceleração do desenvolvimento econômico da sociedade. Logo, e isso fica claro no texto da primeira Lei de Patentes e nas cartas de monopólio concedidas a inventores entre os séculos XV e XVIII, era o atendimento dos interesses da sociedade que justificava e legitimava a existência da proteção patentária. Em suma, o oferecimento, por parte do poder público, de uma posição privilegiada ao titular dos direitos no mercado — monopólio — durante um determinado período pressupunha uma contrapartida social, ou seja, que o detentor da patente explorasse efetivamente o objeto protegido — introduzindo-o no mercado ou dele se utilizando para obter outros bens, novos ou não —, bem como que houvesse a divulgação das informações técnicas necessárias para se chegar ao invento, de tal forma que, após a expiração do tempo do privilégio (que geralmente variava de acordo com a importância e a utilidade da invenção), o objeto da patente se tornasse de domínio público, podendo ser explorado por qualquer pessoa.94 O privilégio justificar-se-ia, assim, tanto por premiar o esforço do inventor quanto por suscitar um efetivo incentivo à atividade inventiva, permitindo seu incremento quantitativo e qualitativo e, conseqüentemente, promovendo o progresso material da sociedade. No entanto, a despeito da dualidade de objetivos, entre o atendimento do interesse individual do inventor e o interesse coletivo, este último sempre deveria prevalecer. O direito exclusivo do inventor sobre sua criação só se aplicaria na medida em que esta efetivamente fosse útil à sociedade, desenvolvendo atividades novas ou aprimorando as já existentes. Para se criar as condições

94 A divulgação obrigatória do conteúdo tecnológico da invenção, ou seja, a informação técnica que permitiu ao inventor desenvolver sua criação, é um elemento central na rationale do sistema de proteção patentária. Sua função é propiciar a plena absorção e disseminação de uma dada tecnologia entre os agentes produtivos, impedindo que o inventor mantenha em segredo o conhecimento por ele produzido. Doravante iremos nos referir a este pré -requisito para a concessão do privilégio patentário na forma como é conhecido no âmbito da propriedade intelectual, isto é, através do termo disclosure. Para informações adicionais, ver CRUZ FILHO, Murillo. Op. cit., p. 163. BARBOSA, Antônio L. F. Propriedade e quase-propriedade no comércio de tecnologia. Brasília: CNPq, 1981. p. 61-3.

necessárias ao bem-estar da coletividade, enfim, contemplar-se-ia o inventor com um proveito particular, ainda que este só ganhasse sentido em função do primeiro.

Pouco a pouco, novos conceitos vão sendo incorporados à lógica da proteção patentária, refletindo as mudanças em andamento no seio do pensamento ocidental. No século XVII seria formulada, na Inglaterra, a segunda legislação conhecida sobre patentes, o

“Estatuto dos monopólios”. Este diploma legal, datado de 1623, ainda que em muito inspirado nas disposições da lei veneziana de 1474, inauguraria alguns conceitos novos, como, por exemplo, “o princípio de que somente ao verdadeiro e primeiro inventor de uma manufatura ou objeto [...] dever-se-ia outorgar um monopólio de patente”.95 Prevalecia neste estatuto, ainda, a concepção veneziana do uso efetivo da invenção (sua realização como instrumento ou mercadoria) como essência do sistema de concessão de privilégios; porém, nele já se começava a esboçar um novo tipo de relação entre o individual e o coletivo na lógica do privilegio patentário. Na medida em que o Estatuto destacava que apenas ao “sujeito, o inventor, autor e mentor da idéia inventiva”96 seria lícito o desfrute das vantagens econômicas do objeto inovador por um tempo pré-determinado (no caso, um máximo de 14 anos), enfatizava-se a importância da iniciativa individual no processo de desenvolvimento material da sociedade, sendo esta considerada também, em certa medida, tributária dos serviços prestados pelo inventor, a quem o monopólio temporário serviria como um tipo compensação.

É certo que a invenção deveria estar a serviço da coletividade, porém esta última também teria a obrigação de recompensar o esforço do inventor. O privilégio deixava de ser interpretado apenas como prêmio ou incentivo, passando a se constituir também em um dever da sociedade para com o indivíduo.

95 CRUZ FILHO,Murilo. Op. cit., p. 136.

96 Ibid.

A consolidação da matriz jusnaturalista de pensame nto ao longo do século XVIII inspiraria reconceituacões mais significativas na lógica do sistema patentário.97 À medida que se fortalece a interpretação da invenção como o resultado de um trabalho criativo individual, a materialização da atividade intelectual do inventor, que em sua função despende tempo, esforços e recursos, recrudesce o argumento de que justo seria ao homem dispor plenamente do fruto de seu trabalho, ou seja, que a propriedade sobre o resultado de seu trabalho intelectual seria um direito natural. A faculdade de usufruir da maneira que bem lhe conviesse do produto de sua própria engenhosidade, algo inerente à própria natureza do indivíduo, legitimava a apropriação privada dos inventos, o gozo por parte do inventor de uma exclusividade sobre o uso de sua criação, resultado de seu próprio gênio. Neste sentido, a concessão de privilégios era tomada dentro desta concepção jusnaturalista como uma eficiente forma de garantir a propriedade do trabalho intelectual, uma vez que impediria que terceiros se utilizassem daquilo que não lhes pertencia, que tirassem proveito indevidamente do fruto do esforço alheio. A patente passava a ser vista fundamentalmente como um instrumento de reconhecimento de um direito natural e particular. Ela não era encarada como os demais tipos de monopólios, tidos como elementos de contenção das iniciativas e de limitação das liberdades individuais; ao contrário, era uma salvaguarda ao direito individual de dispor exclusivamente da propriedade. Inverte-se, desta forma a relação entre o coletivo e o

97 Para efeitos deste trabalho, definiremos o jusnaturalismo moderno como uma matriz de pensamento fundamentada na interpretação da realidade e ordenação do mundo a partir de uma metodologia racional e de uma referência antropocêntrica e individualista, contrapondo-se aos fundamentos ontológicos e teológicos da filosofia escolástica. Sob o ponto de vista do direito, influenciados por pensadores como Locke, Hobbes e Russeau, os jusnaturalistas modernos reformularam a concepção de direito natural consolidada por Thomás de Aquino, desatrelando os princípios e valores superiores que regem a vida em sociedade da vontade divina. Desta forma, tomavam o direito natural como um sistema construído pelo homem — a partir do desvelamento das

“leis” que regem as relações sociais através de processos racionais de análise —, dotado de validade universal e perpétua. Para discussões mais aprofundadas, consultar TEIXEIRA, Antônio Braz. A Justiça no Pensamento Contemporâneo. Revista Jurídica, Campinas, v. 14, p. 29-60, 1998. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca;

ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001. CHORÃO, Mário Bigotte. Temas Fu ndamentais de Direito. Coimbra: Livraria Almedina, 1991. XIMENES, Julia Maurmann.

Reflexões sobre o jusnaturalismo e o direito contemporâneo. Cadernos de direito, Piracicaba, v. 1, n. 1, p. 157-165, 2001. Para uma discussão sobre as bases jusnaturalistas presentes na concepção liberal de Estado, ver MONDAINI, Marco. O socialismo liberal de Norberto Bobbio. [S.n.: s.l.], 2000. Disponível em:

<http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=75>. Acesso em: 08 jan. 2006.

individual presente na lei veneziana: se pela concepção tradicional o privilégio criava o direito de uso, que só se consumava na medida em que a sociedade (por meio de seus poderes constituídos) o considerava como um interesse geral, pelo pensamento jusnaturalista o privilégio apenas viabilizava e garantia o exercício de um direito que não era criado pela sociedade, mas era anterior a ela, era inerente à própria natureza humana. O efeito sobre o bem-estar social far-se- ia como uma conseqüência, uma vez que o impedimento de uma apropriação, tida como indevida, da invenção por terceiros incentivaria o indivíduo a produzir mais, na certeza de que gozaria exclusivamente dos benefícios oferecidos por sua atividade.

Desta forma, diferentemente da proposição tradicional, seria o interesse individual o objetivo principal a ser atendido pela patente, pois apenas a partir da plena satisfação das expectativas particulares dos agentes econômicos poderia ser devidamente promovido um efetivo progresso material, contemplando os interesses mais gerais de uma dada sociedade.

O direito natural, enfim, inauguraria um novo tipo de razão para o sistema de concessão de monopólios por patentes de invenção. “O que podemos concluir...”, resume Cruz Filho,

... é que o centro de referência e fundamentação do direito patentário amplia -se historicamente a partir do século XVIII, podendo--se falar mesmo de um deslocamento da ênfase na concessão por uma autoridade constituída (estrutura clássica tradicional), para a de uma autonomia absoluta do sujeito [...] no exercício de seu “direito natural”.98

Neste contexto de ampliação da concepção patentária é que são criadas as legislações específicas para patentes na esmagadora maioria dos Estados modernos. A formulação da primeira lei norte-americana, o Patent Act, data de 1790.99 A primeira lei francesa sobre a

98 CRUZ FILHO,Murilo. Op. cit.,. p.158.

99 Deve-se ressaltar que já no texto da Constituição norte-americana havia uma cláusula alusiva à proteção dos inventores e dos autores de obras artísticas e literárias. Além da formulação de uma lei específica para patentes logo após sua independência, a importância atribuída pelos norte-americanos à matéria fica também evidenciada pelo pronto estabelecimento de uma estrutura institucional específica para o tratamento das questões concernentes aos privilégios de invenção. Sobre alguns aspectos históricos da estrutura jurídico-institucional

matéria surgiria um ano depois, seguindo conceitos similares aos das leis inglesa e norte-americana. Inserir-se-iam ainda nesta tendência várias outras nações, sendo adotadas ao longo do século XIX diversos estatutos de proteção aos inventores: Brasil (ainda sob a condição de colônia, em 1809); Áustria (1810); Rússia (1812); Prússia (1815); Países Baixos (1817);

Espanha (1820); Bavária (1825); Sardenha (1826); Vaticano (1833); Suécia (1834); Portugal (1837); Hannover (1847); Saxônia (1853); Japão (1871); Suíça (1890);etc.100 Observando o conteúdo destas legislações pode-se constatar que a característica fundamental da formação do sistema de patentes na modernidade consistiu na controvérsia entre os fundamentos tradicionais e o direito natural, em seus antagonismos e congruências, em sua coexistência pacífica ou conflituosa. Estas duas linhas conceituais influenciaram de formas distintas o direito patentário ocidental, e como conseqüências de seus entrechoques, absolutamente singulares para cada contexto nacional, decorrem as relevantes disparidades que marcaram o desenvolvimento do sistema de patentes de país a país durante os séculos XIX e XX.101

A utilização do sistema de patentes como instrumento de premiação e incentivo à atividade inventiva também se constitui em uma prática bastante antiga no Brasil. Embora sejam escassos os registros anteriores ao período joanino, têm-se notícias de concessão de privilégios de invenção no país desde o início do século XVIII. Data de 1705 o primeiro

norte-americana sobre patentes, ver DI BLASI, Gabriel; GARCIA, Mário Soerensen; MENDES, Paulo Parente M. Op. cit.,. p. 4-6.

100 MACHLUP, Fritz; PENROSE, Edith. The Patent Controversy in the Nineteenth Century. The Journal of Economic History, New York, Economic History Association, v. 10, n.1, p.1-29, may. 1950.

101 Para além do embate individual x coletivo, enfatizado em nossa interpretação, as disputas entre diferentes projetos para o campo da proteção patentária poderiam apresentar naturezas e feições as mais variadas possíveis, de acordo com cada contexto nacional. Desta forma, Fritz Machlup e Edith Penrose, em sua obra supracitada, chamam a atenção para outras manifestações da controvérsia sobre os privilégios patentários no século XIX:

livre-cambismo x protecionismo, difusão x exclusão (do conhecimento), etc. Pelo fato, entretanto, destes elementos constantemente se imbricarem, tais dicotomias devem ser tomadas sempre com muito cuidado. Um exemplo disso é o fato de grandes expoentes do liberalismo clássico, como Adam Smith, na Inglaterra, e Jean Baptiste Say, na França, francos opositores de estruturas econômicas monopolísticas, mostrarem-se abertamente favoráveis ao privilégio patentário, considerado como o único tipo de monopólio tolerável, posto que benéfico à atividade produtiva. Sobre as posições de Smith e Say sobre o sistema de patentes, ver SMITH, Adam. An Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Indianapolis: Liberty Fund, 1981. SAY, Jean Baptiste. Tratado de Economia Política. [S.l.: s.n], 1803. Para um exemplo da penetração das idéias destes dois pensadores no Brasil, ver CAIRU, José da Silva Lisboa, [Visconde de]. Observações sobre a franqueza da indústria, e estabelecimento de fábricas no Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999. A edição original é de 1810.

registro conhecido de favorecimento a um inventor: a proibição do uso por terceiros, a não ser mediante pagamento previamente estabelecido (no caso, quatrocentos mil réis) ao inventor, de um “maquinismo para fazer subir água a toda distância que se quiser levar [...]”.102 O pedido de privilégio foi apresentado ao Senado da Câmara da Bahia por Bartolomeu Lourenço de Gusmão, sendo acatado e encaminhado à apreciação do Real Conselho Ultramarino, que se pronunciou favoravelmente à concessão em seu parecer de 18 de novembro de 1706. Sendo a concessão de privilégios em Portugal e suas colônias prerrogativa exclusiva do monarca, uma mercê real, conforme praxe em quase todo o Ocidente à época (com exceção da República de Veneza e da Inglaterra, que já contavam com leis específicas sobre a matéria), a exclusividade só seria efetivamente ratificada pela Provisão Real de D. João V, de 23 de março de 1707.103 Outros registros, embora escassos, podem ser encontrados ao longo do século XVIII, o que sugere que a concessão de monopólios a inventores, embora não muito significante quantitativamente, não era uma prática absolutamente incomum.

Dentre as várias providências tomadas pelo Príncipe Regente após a instalação da Coroa na colônia deve-se destacar o papel exercido pelo Alvará de 28 de abril de 1809.

Instrumento legal de incentivo ao desenvolvimento às atividades fabris no Brasil, na medida em que fixava direitos e favores a serem atribuídos aos agentes econômicos inseridos em tais atividades, estabelecia o Alvará de 1809, em meio a suas diversificadas disposições, as primeiras regulamentações específicas para a concessão de privilégios patentários na Colônia, desatrelando-os da subjetividade do esquema de mercês reais, sendo considerado como o primeiro ato oficial sistematizador dos direitos do inventor no Brasil. No que diz respeito às invenções, estabelecia o novo estatuto joanino, em seu parágrafo VI:

102 CRUZ FILHO, Murillo. Bartolomeu Lourenço de Gusmão: sua obra e o significado fáustico de sua vida.

Rio de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox, 1985. p. 7-13.

103 Ibid.

Sendo muito conveniente que os inventores e introdutores de alguma nova máquina e invenção nas artes gozem do privilégio exclusivo, além do direito que possam ter ao favor pecuniário, que sou servido estabelecer em benefício da indústria e das artes, ordeno que todas as pessoas que estiverem neste caso apresentem o plano de seu novo invento à Real Junta do Comércio; e que esta, reconhecendo-lhe a verdade e fundamento dele, lhes conceda o privilégio exclusivo por quatorze anos, ficando obrigadas a fabricá-lo depois, para que, no fim desse prazo, toda a Nação goze do fruto dessa invenção. Ordeno, outrossim, que se faça uma exata revisão dos que se acham atualmente concedidos, fazendo-se público na forma acima determinada e revogando-se todas as que por falsa alegação ou sem bem fundadas razões obtiveram semelhantes concessões.104

Este parágrafo concernente aos privilégios de invenção expressava, de uma forma simples, direta e condensada, toda a lógica do privilégio patentário, suas funções, objetivos e sua estrutura de funcionamento. Do ponto de vista formal, determinava o estatuto:

a) os requisitos necessários à concessão do privilégio — apresentação de uma descrição do invento (no texto do Alvará definido como “plano”) à Real Junta de Comércio, que avaliaria o objeto da invenção quanto a sua novidade e veracidade;

b) o período da exclusividade — 14 anos ;

c) as obrigações do privilegiado — utilizar efetivamente o monopólio, fabricando o produto.

Assim, o funcionamento do sistema de proteção patentária constituiu-se, do período joanino ao final do Primeiro Reinado, da seguinte forma: os interessados em obter privilégios faziam um requerimento à Junta de Comércio no qual obrigatoriamente deveriam constar informações a respeito do objeto da sua invenção, tais como sua utilidade, a descrição de seu funcionamento, sua superioridade em relação a artes ou máquinas já existentes, etc. A Junta de Comércio era dotada de um Tribunal, composto por Deputados, que avaliaria o mérito do requerimento de acordo com as determinações legais, ou seja, novidade, utilidade e veracidade do invento. Um dos membros do Tribunal do Comércio, após ser designado por Portaria específica como “Inspetor das Fábricas”, ficaria com o encargo de realizar um exame

104 Alvará do Príncipe Regente, de 28 de abril de 1809. Apud RODRIGUES, Clóvis da Costa. A inventiva brasileira. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973. p. 534-5.