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1.2 O “ESTADO-RELAÇÃO”: POR UMA PERSPECTIVA TEÓRICA DISTINTA

1.2.2 Poulantzas: O Estado como condensação material de uma relação de forças

conflituoso. Tais projetos políticos faziam-se representar no interior da instituição, digladiando-se ao longo do processo de tomada de decisões. Não se pode encará- los como elementos puramente concernentes à dinâmica de funcionamento do órgão; refletiam, na verdade, projetos mais amplos gestados no seio da sociedade civil. Um olhar para dentro da instituição, para seus instrumentos de poder, sua estrutura organizacional, deve ser necessariamente acompanhado por um outro mais abrangente, que torne possível a integração do primeiro a uma dinâmica mais ampla de forças que extrapolam as fronteiras institucionais e atingem o espaço privado em que as vontades coletivas se manifestam e se organizam visando fins estratégicos.

Não basta pensar o INPI, enfim, somente a partir de um ponto de vista institucional; é preciso enxergá- lo no universo social de que faz parte, integrado à dinâmica das forças que compõem o tecido do mundo concreto. A compreensão do papel exercido pela autarquia deve passar não somente pelo estudo de seus instrumentos de poder, mas também pelo exame da atuação dos atores sociais organizados em função de projetos específicos a partir de seus organismos de representação — “aparelhos privados de hegemonia” —, tais como as associações de classe, os órgãos de imprensa, as empresas, etc.

do funcionamento do Estado capitalista, e ainda mais precisamente, do Estado capitalista em sua fase oligopólica.31 Conforme anteriormente explicitamos, não é nossa intenção estabelecer maiores detalhamentos a respeito de sua obra, também extremamente rica e abrangente. A ênfase de nossa reflexão recairá sobre sua adequação à pesquisa proposta.

Para Poulantzas, qualquer teorização sobre o Estado capitalista deve buscar dar inteligibilidade às diferentes formas como ele pode se apresentar, tanto em relação às diferentes fases do desenvolvimento capitalista (Estado liberal-concorrencial, Estado imperialista-monopolista, etc.) quanto às feições particulares de que este Estado pode ser dotado nestas diferentes fases (democracias parlamentaristas, democracias presidencialistas, bonapartismos, ditaduras militares, etc.). A compreensão do funcionamento do Estado capitalista, portanto, passa necessariamente pela apreensão da dinâmica que permite estes tipos de diferenciação e suas transformações históricas. Tomando este problema como ponto de partida para sua reflexão, Poulantzas propõe resolvê- lo considerando “a inscrição da luta de classes, muito particularmente da luta e da dominação política, na ossatura institucional do Estado (no caso, a da burguesia no arcabouço material do Estado capitalista)”.32 É na perspectiva ampliada de Estado presente no pensamento de Gramsci que o autor vai fundamentar sua reflexão, direcionando, a partir disso, seu olhar para as formas concretas que assumem as relações entre as distintas classes sociais, que se “materializam” nos aparelhos do Estado, dando-lhe forma e substância. Assim como em Gramsci, o Estado é concebido não como “instrumento” ou “sujeito”, mas como uma relação, que, no entanto, não pode ser interpretada de uma forma puramente abstrata; esta relação é dotada de uma dimensão concreta, ou seja, materializa-se nas instituições. Nas palavras do próprio autor, o Estado seria

“[...] uma condensação material de uma relação de forças entre classes e segmentos de classes

31 Deve-se destacar que os conceitos aqui discutidos emergem em uma segunda fase de sua produção, em que o autor reformula algumas das concepções herdadas do estruturalismo althusseriano e se demonstra mais influenciado pelo pensamento gramsciano.

32 POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980. p. 144.

[...]”,33 e seus aparelhos — o arcabouço jurídico- institucional do Estado —, portanto, uma resultante da correlação de forças em disputa no sistema social.

É a partir desse conceitual que Poulantzas busca responder a sua pergunta inicial.

Sendo o Estado “o factor de coesão de uma formação social e o factor de reprodução das condições de produção de um sistema que, por si, determina a dominação de uma classe sobre as outras”,34 ele é dotado de instrumentos específicos que possibilitam o cumprimento de sua função, sendo constituído por um conjunto de aparelhos, ou seja,

[...] um sistema objetivo de ‘ramos’ especiais cuja relação apresenta uma unidade interna específica e obedece, em grande medida, à sua própria lógica. Cada forma particular do Estado capitalista é, pois, caracterizada por uma forma particular de relações entre os ramos e pela predominância de um ou alguns dos seus ramos sobre os outros: Estado liberal, Estado intervencionista, Bonapartismo, ditadura militar ou fascismo.35 [grifos do autor]

Em função de tal raciocínio, seria correto afirmar ? e Poulantzas o faz ? que as formas em que se apresenta o Estado capitalista, constituídas de acordo com a configuração de seus aparelhos e a proeminência de uns sobre os outros, estão ligadas, de uma maneira ampla, à dinâmica das lutas de classes. Entretanto, salienta também o autor, não se pode desconsiderar que os aparelhos de Estado são dotados de uma relativa “opacidade”, uma certa lógica própria de construção e funcionamento. Seria absolutamente incorreto e redutor conceber o arcabouço institucional do Estado como uma reprodução mimética e imediata das relações de produção, seu reflexo instantâneo, de tal forma que qualquer mudança na correlação de forças estabelecida no sistema social implique em transformações automáticas nos aparelhos de Estado. Obviamente, por não haver descolamento entre a máquina do Estado e a dinâmica social, sempre haverá efeitos mútuos entre ambos; tais efeitos, porém, não

33 Ibid., p.147.

34 POULANTZAS, Nicos; MILIBAND, Ralph. Debate sobre o Estado capitalista. Porto: Afrontamento, 1975.

p.20

35 Ibid., p.24

seriam mecânicos, diretos ou imediatos, mas “só se cristaliza[riam] no Estado sob sua forma refratada e diferencial segundo seus aparelhos”.36

É o Estado, enfim, tomado como o espaço de organização da classe dominante (a burguesia, no caso do Estado capitalista, e este é o objeto específico de sua análise) a partir da hegemonia de uma de suas frações, que sobre as outras impor-se- ia em um jogo de conflitos-alianças. Ele constituiria a unidade política das classes dominantes, organizaria seus interesses mais amplos, bem como fragmentaria e enfraqueceria os interesses das classes antagônicas.

Contudo, esse Estado não pode de maneira nenhuma ser tomado como um bloco monolítico, único, homogêneo, que organizaria a hegemonia de um grupo de forma harmônica, impondo-se imediatamente aos demais. Esimpondo-se conjunto de aparelhos extremamente multifacetado e fragmentado nada mais é do que uma condensação de um sistema de relações contraditórias, em que os diferentes interesses de classe manifestam-se de forma específica em cada um de seus aparelhos, onde se concentram e se cristalizam. “Cada ramo ou aparelho de Estado [...]

constituem muitas vezes a sede do poder, e o representante privilegiado, desta ou daquela fração do bloco no poder [...] de tal ou qual interesse ou aliança de interesses particulares”.37 Daí a complexidade da aparelhagem estatal, cuja dinâmica de funcionamento se estabelece baseada em uma série de contradições (intra e interaparelhos) que reproduzem as contradições sociais (intra e interclasses), mas que ainda assim é dotada de um papel organizador mais amplo (da hegemonia burguesa).

A partir de tais pressupostos, pode-se pensar na política estatal como um “resultado das contradições de classe inseridas na própria estrutura do Estado”,38 em sua própria materialidade institucional, que muito mais do que perpassada pelas lutas de classe, é por elas constituída. Ela seria o resultado das lutas sociais, o efeito das relações contraditórias entre classes e suas frações constituídas no interior dos aparelhos. O Estado não contém as lutas, na

36 POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p.150.

37 Ibid., p.152-3.

38 Ibid., p.152.

verdade está nelas contido, uma vez que elas o perpassam e o extrapolam; porém, as cristaliza de uma forma específica e em função de tal cristalização é delineado seu papel na tomada de decisões (ou também não-decisões).

Na tentativa de aplicar essas idéias, tentaremos centrar nossa análise em alguns aspectos determinados. É preciso compreender o INPI como uma face da aparelhagem burocrática do Estado, uma das peças que compõem esta intrincada engrenagem que constitui sua materialidade institucional. O órgão deve ser entendido, enquanto aparelho de Estado, como a condensação de uma complexa relação de forças entre distintos grupos sociais, frações da classe dominante, no caso, segmentos do grande capital internacional e do empresariado nacional a ele associado. A política desenvolvida pela autarquia é a resultante de um embate entre diferentes projetos, em que um, especificamente, impõe-se aos demais, tornando-se hegemônico. Tal embate, que é construído e desenvolvido desde o espaço da sociedade civil, cristaliza-se na materialidade institucional do Estado; cada um dos aparelhos de Estado constitui-se em espaço de conflitos entre forças sociais, e, a partir da definição dos resultados destes embates, torna-se locus de poder do(s) segmento(s) que se impõe(m) como vencedor(es). Tomaremos o INPI, portanto, como um espaço de disputas entre projetos políticos de secções do empresariado, que, de diferentes formas, faziam representar seus interesses no interior da instituição: setores da indústria nacional em desenvolvimento que necessitavam de uma inserção menos onerosa no mercado internacional de tecnologia e, para isso, demandavam políticas que regulassem suas relações com os capitais estrangeiros, resguardando margens seguras de manobra para o capital nacional; grupos industriais cujas relações se mostravam mais estreitas com o capital internacional (principalmente empresas com participação acionária estrangeira) que defendiam políticas mais adequadas a suas atividades, em consonância com aatuação no Brasil das grandes empresas transnacionais;

setores do grande capital internacional que também se faziam representar nas disputas

políticas no campo da propriedade industrial, através da atuação dos grandes escritórios de propriedade industrial, procuradores dos titulares estrangeiros de patentes concedidas no Brasil; etc. O INPI será interpretado, portanto, como um amplo espaço estratégico onde os núcleos e as redes de poder se entrecruzavam, explicitando suas contradições, estabelecendo conflitos e tendo como resultado final sua materialização em forma de política institucional.

Cabe-nos investigar, agora, as organizações e os agentes envolvidos nos projetos em disputa;

os mecanismos de representação dos interesses de classe no interior instituição; e, por último, as relações de forças estabelecidas entre as frações da classe dominante, bem como suas conseqüências no processo de tomada de decisões.