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3.2 DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E PROPRIEDADE INDUSTRIAL:

3.2.2 Um projeto alternativo: as multinacionais e os agentes da propriedade industrial

Torna-se necessário destacar que distintos eram os interesses em jogo no processo de construção de um modelo de desenvolvimento para os campos científico-tecnológico e industrial no Brasil. Se, de um lado, havia uma série de preocupações por parte do empresariado nacional, tanto provenientes dos setores “tradicionais” — menos dependentes da utilização intensiva de tecnologias de ponta — quanto, e principalmente, dos setores industriais mais dinâmicos — em geral, compostos por empresas privadas associadas ao capital estrangeiro e empresas estatais —, de outro, também devemos considerar as expectativas advindas de outro segmento importante da estrutura industrial brasileira, no caso, as empresas transnacionais que efetuavam investimentos diretos no país.196 Sendo estas as principais executoras de atividades de P&D e, por conseqüência, proprietárias do grosso da produção tecnológica a nível global,197 mostravam-se imediatamente interessadas em

196 Interesses análogos aos das multinacionais eram tamb ém expressos por alguns setores da indústria nacional, principalmente por um empresariado acionariamente ligado ao capital estrangeiro e ideologicamente identificado com práticas liberais de mercado. Estes grupos estavam geralmente concentrados em segmentos industriais dinâmicos, tais como o químico-farmacêutico, eletro-eletrônico, etc. Inseriam-se, portanto, no que convencionamos chamar de “bloco multinacional e associado”. Isto demonstra que a dinâmica de disputas no interior no bloco hegemônico era bastante complexa, impedindo qualquer interpretação dicotômica que coloque multinacionais de um lado e indústria nacional de outro. Optamos por identificar o que chamamos de “projeto alternativo” aos interesses das grandes empresas transnacionais por serem justamente estas as forças mais significativas a resistirem à construção de uma estrutura rígida de controle sobre as negociações tecnológicas.

Reiteramos, porém, que isto não significa que não houvesse grupos nacionais — “tradicionais” ou “modernos”

— com interesses e posicionamentos próximos ao grande capital internacional. Retomaremos esta discussão de forma mais aprofundada no capítulo 4.

197 Do total de invenções patenteadas em países em desenvolvimento como o Brasil, a esmagadora maioria é proveniente de pedidos depositados por empresas estrangeiras ou suas filiais estabelecidas no país. Isto se deve, obviamente, ao fato de serem estas grandes empresas os maiores investidores em atividades de P&D. Logo, dado que a patente é resultado de investimentos em P&D e que o grosso da estrutura mundial de inovação se concentra nos países desenvolvidos, a maior parte das patentes concedidas na periferia tem como titulares empresas estrangeiras. A disparidade entre o número de patentes depositadas no INPI por empresas estrangeiras e nacionais pode ser facilmente constatada nas estatísticas produzidas anualmente pela instituição, conforme poderemos constatar na seção 4.3.2 deste trabalho. Para uma análise sobre esta característica do mercado tecnológico, com dados atualizados até meados da década de 70, ver BARBOSA, Antônio L.F. Propriedade e

quaisquer alterações que pudessem ocorrer na estrutura de apropriação sobre bens intangíveis, bem como nas relações estabelecidas no mercado internacional de tecnologia. Neste sentido, possíveis flexibilizações no sistema de proteção patentária — o que se costuma chamar de

“enfraquecimento” dos direitos de propriedade industrial — configuravam-se como ameaças a sua lucratividade, uma vez que patentes constituem instrumentos poderosos de controle de mercado. De fato, a ação do capital internacional já vinha sendo submetida a alguns tipos de limitações e controles, como o caso da proibição de remessas de royalties por patentes entre filiais brasileiras e suas matrizes.198 Entretanto, ainda que determinadas medidas de regulação estivessem sendo empregadas desde o início da década de 60, o capital internacional vinha tendo sucesso em contornar os efeitos que lhe eram prejudiciais, preservando seus interesses de acumulação. Logo, pode-se dizer que, até o início dos anos setenta, as vantagens comparativas entre empresas estrangeiras e nacionais, no que dizia respeito ao campo tecnológico, vinham sendo mantidas e até recrudescidas, desempenhando o sistema patentário um papel de relevo entre os fatores propiciadores de tais vantagens. Isto não significa dizer que modificações na estrutura de proteção não fossem aceitas pelas multinacionais; ao contrário, estas constantemente procuravam efetuar pressões sobre o governo por mudanças na legislação, ainda que suas demandas se dessem em um outro sentido, a saber, o do

“fortalecimento” dos DPI.

Uma categoria profissional específica, a dos agentes da propriedade industrial, constituía o segmento mais significativo a representar os interesses das grandes empresas estrangeiras. A legislação nacional previa a possibilidade de os usuários do sistema de propriedade industrial (demandantes de privilégios) serem representados junto ao órgão

quase-propriedade no comércio de tecnologia..., p. 144-169. Para análises baseadas em dados mais recentes, ver HASENCLEVER, Lia; MATESCO, Virene R. As empresas transnacionais e o seu papel na competitividade industrial e dos países: o caso do Brasil. In: VEIGA, Pedro da Motta. (Org.). O Brasil e os desafios da globalização. 11 ed. Rio de Janeiro, 2000, p. 161-192. CASSIOLATO, José Eduardo; ELIAS, Luiz Antônio R..

O balanço de pagamentos tecnológicos brasileiro: evolução do controle governamental e alguns indicadores. In:

VIOTTI, Eduardo B.; MACEDO Mariano de M. (Org.). Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação. Campinas: UNICAMP, 2003. p. 269-322.

198 Em função da Lei nº 4131/62, conforme comentado na seção 1.3.2.

oficial por procuradores — cujas atividades eram devidamente regulamentadas (e exclusivas da categoria) desde 1933. O procuratório era, em geral, exercido por grandes escritórios de advocacia, compostos por profissionais especializados na matéria. Sendo as multinacionais as maiores usuárias do sistema de patentes, compunham o grosso da clientela dos agentes da propriedade industrial, cujas responsabilidades consistiam na formulação e depósito dos pedidos de patentes, acompanhamento da tramitação dos processos e, obviamente, a efetuação de lobbies junto à instância estatal de decisão — o órgão oficial de propriedade industrial —, em favor de seus clientes. Era esta categoria profissional um grupo bastante influente, tendo participação destacada dentro da estrutura jurídico- institucional de funcionamento do campo da propriedade industrial. Entrincheirados em sua entidade representativa, a Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial (ABAPI), ocupavam espaços privilegiados no processo de tomada de decisões, estando estrategicamente posicionados junto a canais importantes de poder. Tinham amplo acesso, por exemplo, ao Conselho de Recursos da Propriedade Industrial, órgão colegiado criado em 1933 no qual eram debatidas e decididas as principais questões jurídicas concernentes ao campo da propriedade industrial.199 Mantinham também sólido posicionamento dentro do DNPI, com trânsito livre junto às principais instâncias decisórias do órgão. Eram distintas as formas pelas quais os agentes da propriedade industrial se imiscuíam no órgão estatal e participavam de suas atividades cotidianas, executando funções que o governo deixava de cumprir, tais como o fornecimento de recursos materiais (equipamentos e material de escritório), a cessão de profissionais para atividades burocráticas, a prestação de serviços (como efetuação e distribuição de cópias de documentos

199 Em sua origem o Conselho de Recursos era composto pelo ministro do Trabalho, Indústria e Comércio e mais três membros, geralmente integrantes da alta cúpula do DNPI e grandes expoentes do campo jurídico, principalmente os especialistas no tema da propriedade industrial, quase sempre ligados à ABAPI. Para maiores detalhes sobre o Conselho de Recursos, ver ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS AGENTES DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (ABAPI). Propriedade industrial no Brasil: 50 anos de história. São Paulo:

ABAPI, 1998.

produzidos pelo departamento durante os trâmites processuais, por exemplo), etc.200 Este tipo de inserção nos aparelhos de Estado obviamente concedia à categoria um forte poder de influência sobre o processo decisório, ao menos naquele nível específico da burocracia estatal.

O comentário feito pelo Deputado Lysâneas Maciel, do MDB do então estado da Guanabara, em meio aos debates parlamentares sobre a reformulação da legislação de propriedade industrial no início dos anos setenta, pode nos fornecer interessantes indícios quanto a isso.

Afirmou o parlamentar:

Devemos legislar para um país em desenvolvimento. Muitas vezes legislamos sob a influência de semelhanças, adotando fórmulas estranhas às nossas dificuldades e ao nosso meio, e que não atendem aos interesses nacionais. [...] Não sei se é do conhecimento de V. Ex.a, mas até os escritórios que tratam da propriedade industrial são sempre estrangeiros, o que demonstra que essa matéria vem sendo relegada. Antes da ascensão do atual dirigente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial [...] parece que a simples carimbagem de uma secretária determinava o envio de matéria da maior relevância para os canais competentes. Agora, felizmente, já se ouve dizer que isso não mais ocorre.201

As idéias defendidas pelos agentes da propriedade industrial eram geralmente expressas em órgãos de imprensa e em publicações de caráter jurídico. Apesar de termos encontrado poucos artigos expressivos produzidos no período abordado, utilizamos como fontes principais para nossa investigação dois textos significativos, um publicado em uma revista jurídica e outro encontrado no acervo de monografias da ESG, ambos elaborados por um dos expoentes daquela atividade profissional, o advogado Luiz Leonardos, ligado ao escritório Momsen, Leonardos & Cia — um dos maiores e mais influentes até os dias atuais

200 A confirmação da participação direta da ABAPI nas atividades cotidianas do DNPI pode ser encontrada em publicação da própria instituição. Ver ABAPI. Op. cit. Em conversas informais com funcionários e ex-funcionários do INPI, tivemos também a informação de que, ao final da década de 60, o extinto DNPI funcionava em um dos andares de um prédio do Ministério da Indústria e do Comércio, localizado no Rio de Janeiro, onde por sinal até hoje se encontra a sede do órgão oficial de propriedade industrial, atualmente o INPI.

Neste mesmo prédio, também funcionavam diversos escritórios de agentes da propriedade industrial, sendo que a proximidade física facilitava o exercício de influências sobre as decisões do órgão.

201 BRASIL. Congresso. Câmara dos deputados. Anais da Comissão que apreciou o Projeto de Lei que deu nova redação ao Código da Propriedade Industrial..., p. 145-6.

— e membro da ABAPI.202 Também os Anais da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que cuidou da reformulação do Código da Propriedade Industrial em 1971 nos forneceram importantes informações. Nesta ocasião, a ABAPI foi chamada a se pronunciar perante o Legislativo quanto às medidas propostas pelo governo militar, expressando, neste sentido, o posicionamento da classe que representava quanto ao papel dos DPI em um país em desenvolvimento.203

Um primeiro ponto a considerar a partir do estudo efetuado é uma forte defesa da necessidade de reformulação do órgão oficial de propriedade industrial. De fato, desde os anos cinqüenta a ABAPI vinha se posicionando publicamente contra as seriíssimas restrições orçamentárias a que o DNPI era submetido, tendo como conseqüência uma gritante ineficiência, tanto em termos produtivos quanto administrativos. O fato de o escritório oficial de patentes ser um órgão inexpressivo, marginal — despertando poucas atenções da cúpula do governo — era fortemente sentido pelos agentes da propriedade industrial, que desde cedo se mobilizaram de forma a proporcionar ao departamento os recursos de poder necessários ao pleno atendimento dos interesses que representavam. Uma primeira ação política mais contundente teria sido o “Memorial” enviado ao presidente Juscelino Kubitschek ao final dos anos cinqüenta. Este documento continha informações sobre o crescimento da demanda dos serviços de marcas e patentes no Brasil — em função da aceleração do crescimento industrial

202 LEONARDOS, Luiz. Royalties pelo uso de patentes de invenção, marcas e assistência técnica e transferência de tecnologia: situação brasileira. Separata de: Jurídica.— Revista da divisão jurídica do Instituto do Açúcar e do álcool. Rio de Janeiro: [IAA], 1974. ____. Estudar o papel das patentes de invenção como estímulo ao processo de desenvolvimento industrial. Rio de Janeiro: ESG: 1972.

203 Lançamos mão também, ainda que secundariamente, de textos produzidos recentemente tanto pela ABAPI quanto pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), uma associação que congrega acadêmicos, empresários e agentes de propriedade industrial, tendo como finalidade o desenvolvimento de estudos jurídicos sobre a propriedade intelectual em todos os seus aspectos, incluindo o direito da propriedade industrial, o direito autoral, o direito da concorrência, a transferência de tecnologia, etc. Fundada em 1963, com o nome de Associação Brasileira para a Proteção da Propriedade Industrial, a organização dedicou-se nestas quatro décadas à promoção de conferências, congressos, seminários, simpósios e grupos de estudo, semp re priorizando discussões sobre legislação, doutrina e jurisprudência desses ramos do direito. A entidade também se incumbiu de editar algumas publicações, sendo hoje a mais importante a Revista da ABPI. Ainda que este periódico particularmente só tenha começado a circular em 1992, é possível encontrar em alguns de seus artigos os mesmos argumentos presentes em textos produzidos no início dos anos 70. O fato é compreensível, pois no início dos anos noventa ainda vigorava a estrutura jurídico-institucional montada pelo regime militar.

—, bem como sobre as precárias condições em que se encontrava o DNPI, além de algumas sugestões para a solução dos problemas mais imediatos.204 Uma das principais propostas era a transformação do DNPI, até então um órgão da administração direta, em uma autarquia, ou seja, uma instância administrativa dotada de alto grau de autonomia. Logo, sendo o DNPI o espaço específico de atuação de uma dada categoria profissional — a dos agentes da propriedade industrial —, representante dos interesses das grandes multinacionais, a concentração de recursos institucionais, financeiros e de poder205 no órgão era também um caminho para a consolidação das forças políticas nele instaladas.

Para além das questões puramente institucionais, também se pode perceber na documentação analisada uma recorrente (e contundente) defesa do sistema de patentes, tomando-se o estatuto como um poderoso instrumento de fomento ao desenvolvimento de uma dada estrutura produtiva. Segundo a argumentação apresentada, esta seria uma constatação já bastante difundida entre os países “desenvolvidos”, sendo que os resultados apresentados nestas economias avançadas derrubariam quaisquer argumentos contrários provenientes dos países ainda em fase de industrialização. Ressaltava-se a função exercida pelas patentes na disseminação de informação tecnológica de ponta, na medida em que um dos pré-requisitos para a concessão de privilégios era o disclosure, ou seja, a divulgação da informação técnica que proporciona a obtenção de um bem novo, uma invenção. Não se desprezava a possibilidade — aberta pela exclusão de terceiros da exploração dos bens patenteados — de imposição ao empresário nacional de severas barreiras de acesso a determinadas tecnologias. Contudo, procurava-se ressaltar que era justamente este direito de exclusão (monopólio) um fator poderoso de atração de investimentos estrangeiros, uma vez que impedia a obtenção indevida dos benefícios proporcionados pela invenção por concorrentes desleais (imitadores). Além disso, identifica-se também o argumento muito

204 Ver ABAPI. Op. cit., p. 69-70.

205 Nos termos definidos por Sérgio Abranches, conforme descrito na seção 1.3.2.

comum na produção acadêmica militar, de que a proteção patentária também oferecia vantagens ao produtor nacional, proporcionando- lhe garantias quanto ao retorno dos investimentos efetuados em atividades de P&D. Neste sentido, quanto maiores as margens de proteção aos inovadores, maiores as possibilidades de engendramento de progresso econômico. Era admitido que, muitas vezes, a apropriação privada de bens intangíveis poderia suscitar abusos por parte de seus beneficiários, eventualmente gerando entraves ao processo de desenvolvimento industrial em países periféricos. Todavia, o próprio sistema de patentes, na forma como se apresentava internacionalmente, já conteria em si mesmo instrumentos de controle sobre tais abusos, sendo tais instrumentos amplamente aplicados pelas principais potências econômicas. Não seriam justificáveis, por conseguinte, medidas de controle adicionais, conforme propunham alguns setores do empresariado nacional. Os excessos e restrições existentes em determinadas transações tecnológicas não seriam fatores inerentes ao sistema de patentes, independendo, portanto, de sua existência. Para o tratamento de tais questões já estaria disponível um amplo leque de legislações específicas, sendo nelas estabelecidos suficientes procedimentos preventivos e repressivos. Logo, se o objetivo de qualquer nação era o desenvolvimento e este poderia ser proporcionado de forma mais rápida e segura através da participação do capital estrangeiro, seria preciso criar condições para que os fluxos de investimentos externos recrudescessem. Neste sentido, controles sobre os DPI até poderiam ser aplicados, desde que dentro dos padrões internacionais, ou seja, limitando-se aos mecanismos claramente previstos na CUP. Ir além deste patamar de regulação poderia ameaçar o modelo de desenvolvimento industrial associado, tornando o país pouco atrativo a investimentos externos.

Em suma, o grande capital transnacional estabelecido no país — cujos interesses no campo tecnológico eram representados por uma categoria profissional específica, a dos

agentes da propriedade industrial206 — mostrava-se francamente favorável à construção de uma estrutura “forte” e desburocratizada de proteção patentária, de modo a intensificar suas vantagens comparativas no mercado em função de sua superioridade tecnológica em relação aos concorrentes locais. Desta forma, era refratário a muitas das iniciativas desenvolvimentistas que vinham sendo gestadas no seio do empresariado nacional e sistematizadas por instâncias robustas dentro da máquina estatal, nas quais os interesses desenvolvimentistas se faziam representar. A polarização entre as perspectivas desenvolvimentista e multinacional ficaria flagrante no início do governo Médici (1969-1974), mantendo-se firme, a despeito de eventuais convergências de opiniões entre os distintos segmentos de classe envolvidos, até o contexto de intensificação da internacionalização da economia, no último decênio do século passado. Este, contudo, é um assunto em que não pretendemos nos aprofundar neste trabalho.207