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Feitas todas essas considerações acerca do domínio da história e dos conceitos que norteiam o nosso trabalho, é importante expormos, nesse momento, alguns dos princípios que fundamentaram os procedimentos metodológicos adotados durante o desenvolvimento da pesquisa. De acordo com o historiador espanhol Julio Aróstegui (2006, p. 92), o método deve ser considerado como um conjunto de prescrições que devem ser respeitados para que, ao longo da pesquisa, as decisões tomadas possam garantir, na medida do possível, uma compreensão racional e sistemática acerca do objeto estudado. Na verdade, todas essas prescrições tornam-se concretas a partir de um conjunto de regras e ordens que, ao mesmo tempo em que determinam o processo de conhecimento, regulam e garantem a cientificidade do pensamento histórico (DIEHL, 1993, 50). Na medida em que se conecta com a teoria, o método, diferentemente da técnica, articula-se diretamente com a epistemologia. No caso específico da história enquanto disciplina científica, os procedimentos metodológicos associam-se à epistemologia da história. Essa interconexão entre teoria e prática é o que garante ao historiador programar, previamente, as operações que o auxiliarão a alcançar determinados resultados (ARÓSTEGUI, 2006, 92).

Nesse sentido, o historiador francês Roger Chartier nos ajudou bastante a pensar os procedimentos de pesquisa que devem ser adotados em uma abordagem disposta a utilizar suportes impressos enquanto fonte. Em um pequeno livro composto por alguns ensaios, ele atenta para um dos aspectos primordiais na historicidade dos suportes impressos, dentre os quais se inserem os periódicos – a compreensão dos princípios que governam a ordem de um discurso24. Segundo Chartier, o entendimento dessa dimensão ocorre quando os pesquisadores da área se propõem a decifrar, rigorosamente, os elementos que “fundamentam os processos de produção, de comunicação e de recepção dos livros” ou qualquer outro objeto que veicule

24 Trata-se da obra: CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tradução de Mary Del Priore. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

textos escritos. A bem da verdade, tal orientação expressa por Chartier objetiva ressaltar os efeitos que as “formas materiais” produzem na ordenação de um determinado discurso (CHARTIER, 1999, p. 8).

Ante essas preocupações expressas pelo autor em questão, é importante questionarmo- nos acerca do significado que o mesmo confere à expressão “formas materiais”. Esse termo, que conserva, simultaneamente, orientações teóricas e metodológicas, parece ter um duplo sentido, pois permite pensar tanto os “dispositivos técnicos, visuais e físicos” quanto o processo de produção que se relaciona a um determinado suporte impresso. Portanto, as anotações de Chartier permitem observar que dois aspectos devem se sobressair diante das pretensões que objetivam considerar os mais diversos tipos de periódicos: a materialidade e o lugar social daquilo que é escrito. Ambas as dimensões, em um processo sincrônico, materializam, organizam e determinam a leitura e a escrita. Dessa forma, as “formas materiais” de uma ordem discursiva podem ser observadas, sobretudo, a partir do exame da materialidade e do processo produtivo desse mesmo discurso.

Longe de fundamentar-se apenas em aspectos estritamente lingüísticos, os discursos fixados em textos alicerçam-se em processos e fenômenos sócio-culturais concretos. Nesse contexto, convém analisarmos a RH a partir de um ponto de vista que considere seus dispositivos materiais (aspectos técnicos, visuais e físicos). Além disso, é importante atentarmos para o fato de que os textos selecionados para análise qualitativa devem ser observados a partir de uma perspectiva que considere o conjunto dos outros textos responsáveis por compor um determinado exemplar ou uma seção específica disposta no interior do próprio periódico. Da mesma forma, o exame em torno de uma documentação dessa natureza deve avaliar os aspectos que se relacionam ao projeto intelectual e editorial da

RH. Sem dúvida, a atenção em torno de todas essas proposições teóricas e metodológicas

permitirá que avancemos no trabalho, visto que proporcionarão uma visão ampla e sistemática do nosso objeto de estudo.

Por sua vez, todos esses comentários acerca das fontes, bem como das teorias e metodologias empregadas nessa pesquisa, levaram-nos a questionar o lugar que a historiografia reserva às revistas enquanto documento. Nesse sentido, uma observação mais acurada em torno da história da historiografia brasileira permite-nos constatar o quanto é recente a utilização desses materiais enquanto fonte para elaboração de pesquisas no campo do conhecimento histórico. Embora se tenha iniciado, ainda na década de 1970, um lento e pequeno movimento nesse sentido, foi somente nas décadas de 1980 e 1990 que houve um aumento considerável do número de trabalhos que incorporaram as mais diversas revistas

enquanto objeto de preocupação. Esse tipo de suporte, aos poucos, passou a ser visto como uma fonte capaz de ajudar os historiadores a enxergarem determinados fenômenos, sob ângulos que, dificilmente, poderiam ser oferecidos da mesma forma por outro tipo de documentação. Essa mudança de orientação teórica e metodológica provocou deslocamentos significativos na pesquisa histórica, na medida em que possibilitou não apenas um maior alargamento acerca da noção das fontes, mas também porque permitiu uma ampliação dos problemas e, conseqüentemente, dos temas elaborados a partir de tal material. A partir desse instante, estudiosos das mais diversas áreas das ciências humanas não cessaram de demonstrar o quanto podem ser frutíferas as pesquisas que elegem revistas enquanto objeto de estudo. De fato, a investigação em torno desses suportes, que tiveram funções e objetivos diferentes ao longo do tempo e do espaço, permite aos historiadores examinarem problemas que interessam aos mais diversos domínios da história.

Nessa perspectiva, Sérgio Miceli oferece, em um trabalho intitulado Poder, Sexo e

Letras na República Velha, amostras de como o estudo de jornais e revistas podem ser úteis

para entender determinados aspectos da constituição do campo intelectual no Brasil. As condições de produção da escrita, a profissionalização do trabalho intelectual e o universo dos homens de letras são algumas das dimensões analisadas pelo autor, que demonstra, de forma notável, como os periódicos podem ser um tipo de documentação proveitosa para os historiadores que se dedicam à história social e intelectual. Da mesma forma, Carla Bassanezi Pinsky demonstrou, em sua obra Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-mulher (1945-1964), a possibilidade de utilizar uma documentação como essa para discutir questões de gênero. A autora analisou, a partir de uma perspectiva comparativa, os suportes impressos Querida, O Cruzeiro, Jornal das Moças e Cláudia, com o intuito de evidenciar as mudanças e as permanências que marcaram as relações homem- mulher. Por fim, a historiadora Angela de Castro Gomes ilustra, de forma categórica, a riqueza documental de matérias como suplementos e revistas. Tendo como fontes o suplemento literário Autores e Livros e a revista Cultura Política, a autora apontou, na interessante obra História e Historiadores, como tal documentação permite refletir, simultaneamente, acerca de aspectos que se relacionam à cultura historiográfica e política.

De uma forma mais modesta, mas seguindo os mesmos rumos dos trabalhos descritos acima, pretendemos fundamentar nossa pesquisa com esse mesmo tipo de documentação, outrora tão pouco usual entre os historiadores. Todavia, se, por um lado, há uma aproximação com esses e outros trabalhos, pelo fato de usarmos revistas enquanto fonte, por outro, não deixamos de nos distanciar dessas obras naquilo que se refere ao tema e à proposta analítica.

Nesse sentido, a opção por discutir a apropriação e a difusão da historiografia dos Annales, a partir do exame da produção historiográfica publicada durante a primeira década de circulação da RH, faz com que a nossa abordagem se diferencie do conjunto dos trabalhos que fizeram uso das revistas enquanto corpus documental. Nessa perspectiva, é importante destacarmos que, mesmo as pesquisas que utilizaram a RH enquanto fonte, seja para discutir a receptividade dos Annales seja para debater qualquer outro assunto, não consideraram em suas análises aspectos como a materialidade e a produção historiográfica desse suporte.

Em se tratando, particularmente, dos trabalhos preocupados em avaliar a repercussão da historiografia dos Annales no Brasil, podemos verificar que foi comum, entre os autores que se serviram da RH, utilizar o material impresso por essa publicação sem levar em consideração a totalidade do suporte. Em outras palavras, muitas dessas pesquisas acabaram, por motivos diversos, usando os trabalhos que denunciavam essa receptividade em torno dos

Annales, sem considerar o conjunto dos outros textos que compõem os mais diversos

fascículos da RH. Nessas condições, a revista em questão foi tratada apenas como fonte, mas não enquanto fonte e objeto de pesquisa simultaneamente. Na grande maioria dos casos, tal opção foi plenamente legítima e justificada, pois nem todos os autores que se utilizaram dessa documentação, tinham por objetivo estudar a recepção da historiografia dos Annales, a partir da RH.

Assim, é importante mencionarmos alguns desses pesquisadores que fizeram uso dessa revista enquanto fonte para desenvolver propostas analíticas diversas. O professor Raimundo Barroso Cordeiro Júnior (2000, p. 219-227), por exemplo, não deixou de citar alguns dos trabalhos publicados na RH quando considerou, em um dos pontos da sua tese, a recepção reservada ao pensamento de Lucien Febvre no Brasil. Naturalmente, como o objetivo do trabalho não era discutir, propriamente, a recepção da historiografia dos Annales no Brasil, mas sim o projeto historiográfico desse historiador francês, o autor selecionou apenas as publicações que foram escritas por e sobre L. Febvre. Da mesma forma, Mário José Dias (2006, p. 106-112), em sua dissertação de mestrado, acaba por utilizar a RH enquanto uma de suas fontes, com o intuito de compreender a influência que a USP teve na formação de um pensamento histórico e na legitimação de um saber. Nesse contexto, a relação que a revista estabeleceu com a concepção historiográfica dos Annales foi vista, em apenas um dos pontos do trabalho, como algo fundamental na estruturação do pensamento historiográfico uspiano.

Outras obras de menor fôlego, como é o caso do livro de ensaios publicado por Carlos A. Aguirre Rojas, também ressaltaram essa articulação que o periódico fundado por Eurípedes S. de Paula manteve com a historiografia dos Annales. Todavia, como a preocupação desses

ensaios era discutir a obra e a trajetória intelectual de Fernand Braudel, esse pesquisador mexicano acabou por utilizar a RH como uma espécie de indicador, capaz de medir a relação e a influência que esse historiador francês manteve com o Brasil e a América Latina (ROJAS, 2003, p. 95-128). Longe de encerrar-se nessas referências apresentadas, o número de trabalhos que acentuaram os vínculos entre essa revista e a concepção histórica dos Annales, foi bastante considerável, por isso, tornar-se-ia reiterativo mencionar a vasta bibliografia comprobatória. Antes, é importante destacarmos, nesse instante, o fato de que nenhuma dessas publicações procurou discutir essa relação tomando esse suporte enquanto um todo, ou seja, atentando tanto para a sua materialidade quanto para a o conjunto da produção historiográfica impressa em suas páginas. De acordo com o nosso ponto de vista, é justamente nesse sentido que a nossa pesquisa se especifica em relação aos demais estudos, que assinalaram a receptividade da historiografia dos Annales utilizando a RH enquanto fonte.

Sendo assim, para tornar inteligível essa abordagem, optamos por dividir o trabalho em três capítulos, que se acompanharam de uma introdução e das considerações finais. Na parte introdutória, apresentamos e delimitamos o tema a ser discutido, bem como nos esforçamos para estabelecer as fontes e um recorte coerente. A discussão teórica e metodológica, que nos auxiliou nas definições em torno dos campos, dos conceitos e dos procedimentos responsáveis por orientar essa pesquisa, também foi disposta nesse segmento do trabalho. Na seqüência, no segundo capítulo, iniciamos o debate acerca da receptividade da historiografia dos Annales, atentando para as condições de produção da RH e, conseqüentemente, do discurso historiográfico impresso em suas páginas. Para cumprirmos esse objetivo, dividimos o capítulo em três pontos, que procuraram abordar as condições de produção em questão, a partir da historicidade, da materialidade e do perfil dos colaboradores da revista. Tal exame ajudou-nos a estabelecer alguns dos condicionantes que pesaram nas elaborações discursivas veiculadas por aquela publicação. Nessa perspectiva, procuramos, sobretudo, demonstrar até que ponto o diretor-fundador, o meio intelectual paulista e os lugares sociais e institucionais – ocupados pelo suporte e por seus colaboradores – influíram na produção daquilo que foi impresso pela revista.

Após esses apontamentos em torno do processo de produção, voltamos a nossa atenção, no terceiro capítulo, tanto para a produção historiográfica quanto para as demais produções científicas e literárias publicadas na RH. Para levarmos adiante essa abordagem, procuramos examinar a organização e a estruturação temática dos trabalhos veiculados por esse suporte. Assim, com intuito de empreender essa análise, agrupamos as publicações impressas de acordo com as suas respectivas áreas do conhecimento. Nessa perspectiva, as

colaborações classificadas nos domínios do conhecimento histórico sofreram um exame mais acurado, sendo, por isso, reagrupadas de acordo com critérios que levaram em consideração o campo e a temporalidade desses trabalhos. Como se não bastasse, catalogamos os autores e as obras citadas enquanto referência nessas publicações, classificando-as a partir da procedência do escritor. A investigação em torno desses aspectos permitiu-nos observar as culturas científicas, literárias e historiográficas que foram mais difundidas pela RH. Assim, todo esforço revelou-se bastante importante, pois possibilitou estabelecer, de forma mais exata, o lugar que essa revista reservou ao grupo dos Annales e à cultura historiográfica francesa. Além disso, os dados levantados, somados à análise qualitativa acerca dos temas, permitiram determinar que tipo de obras, autores e conceitos contribuíram para a difusão da historiografia

annaliste no periódico fundado por Eurípedes S. de Paula.

No quarto capítulo, por sua vez, preocupamo-nos em discutir os motivos capazes de justificar o interesse, por parte dos responsáveis pela RH, em difundir as concepções historiográficas dos Annales. Para contemplarmos essa inquietação, retrocedemos até a fundação da FFCL-USP, com intuito de estabelecer as circunstâncias que caracterizaram os primeiros processos de difusão e recepção das formulações annalistes em nosso país. A análise acerca dessa questão completou-se com um levantamento em torno dos índices das revistas dos Annales. As discussões elaboradas em torno dessa catalogação demonstram o interesse que o grupo dos Annales manifestou em difundir sua perspectiva historiográfica na América Latina e, especialmente, no Brasil. Assim, todos esses debates mostram-se indispensáveis, pois nos permitiram perceber que a difusão da historiografia dos Annales nas páginas da RH não deixou de ser alimentada por uma série de práticas, que objetivavam, sobretudo, demarcar posições no campo intelectual. Longe de envolver apenas um dos lados dessa relação, pudemos constatar que a legitimação de práticas, através dessa transferência de idéias, interessou não apenas os responsáveis pela RH, mas também o grupo dos Annales. Ao final, nas considerações finais, fizemos uma espécie de apanhado dos aspectos e elementos discutidos, ao mesmo tempo em que atentamos para a importância que os dados catalogados têm para o desenvolvimento de outras pesquisas. Os resultados a que chegamos, foram, também, apontados, na medida em que discutimos as interinfluências oriundas das trocas culturais entre franceses e brasileiros.

Por fim, é necessário apontarmos, antes do encerramento desse debate preliminar, alguns dos condicionantes que influenciaram nosso olhar e escolhas acerca desse tema. Nesse sentido, não podemos deixar de situar o lugar no qual nos situamos para observar os processos de apropriação e difusão da historiografia dos Annales. Assim, é importante esclarecermos,

desde já, que o olhar lançado por nós em torno desse tema se caracteriza pelo fato de ser exterior. Dito de outra maneira, a pesquisa em torno desse objeto foi elaborada por alguém que observa de fora do estado de São Paulo e da USP o desenrolar desses acontecimentos. Se, por um lado, tal distanciamento em relação a esses espaços físico-institucionais-sociais pode trazer alguns tipos de desdobramentos negativos, por outro, ela também não deixa de ter a sua positividade, pois esse deslocamento, certamente, proporcionará um olhar diferente em relação às fontes e aos fatos. Com isso, queremos dizer que, dificilmente, um paulista ou um uspiano olharia para esse tema da mesma forma que um paraibano, situado em outro estado e em outra universidade. Essa diferença no que concerne à observação do tema não quer dizer, todavia, que o olhar de um se sobreponha ao outro, em qualquer sentido valorativo. Quer dizer simplesmente, que ambos os olhares são diferentes.

Além disso, é importante assinalarmos, ainda, que esse trabalho guarda relações estreitas com a área de concentração do PPGH-UFPB (Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba), definida em torno das categorias de História e

Cultura Histórica. Nesse mesmo sentido, também não podemos deixar de ressaltar as

influências que as conversas de orientação, juntamente com as aulas e discussões suscitadas ao longo das disciplinas cursadas, tiveram na elaboração dessa pesquisa. Sem dúvida, todos esses fatores, associado ao interesse e às escolhas que fizemos em relação a essa investigação, influenciaram diretamente na articulação das idéias e, conseqüentemente, no trabalho elaborado em torno da difusão e apropriação da historiografia dos Annales.