• Nenhum resultado encontrado

FAMÍLIAS PARTICIPANTES DO PROGRAMA FOMENTO

3 CONTRIBUIÇÕES PARA COMPREENSÃO DAS DINÂMICAS SOCIAIS DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

3.3 OS QUILOMBOS NO CONTEXTO DA ZONA SUL DO RS

A constituição e conformação agrária do atual estado do RS podem ser compreendidas pelo condicionamento aos processos de colonização dos países ibéricos a partir do século XVI, tendo suas primeiras atividades econômicas fortemente dependentes da lógica exportadora e extrativa do sistema colonial português (PRADO JÚNIOR, 1987).

No século XVII e XVIII, dentro da estratégia político-militar de controle e ocupação do território, sob o domínio da colonização portuguesa, em constante disputa com os espanhóis, se estabeleceu o que se considera como espaço estancieiro.

Através da concessão de terras devolutas (sesmarias), posteriormente se estabeleceram as grandes e médias propriedades rurais, conhecidas como estâncias, e seus senhores, os estancieiros, em sua maioria militares e tropeiros. A extração de couro do gado, o transporte de rebanhos por tropeiros até o sudeste do país (para alimentar os trabalhadores das minas e servir como força de tração) e a produção de charque demarcam as principais atividades desenvolvidas por estes ocupantes até o início do século XX (PESAVENTO, 1985).

A participação de trabalhadores escravos na dinâmica do espaço estancieiro ao longo dos séculos XVIII e XIX é uma questão polêmica e de traços particulares a serem considerados. Osório (2006) destaca que houve utilização de mão de obra escrava desde o início do processo de colonização do estado, com a presença de escravos campeiros e roceiros, assim como de peões livres e também de lavradores que detinham a posse de pequenas unidades de produção.

Com a estruturação da indústria charqueadora em Pelotas (Vila de São Francisco de Paula na época - século XVIII), estas estâncias passam a abastecer as charqueadas, tornando-se a principal atividade da região. Também baseada no escravismo, caracterizavam-se pelo trabalho de longa e intensa jornada, com uma racionalidade fortemente orientada para extração de sobre trabalho do negro

escravizado (MAESTRI, 2009). Nesse sentido, Osório (2006) destaca que as charqueadas envolveram diversos municípios e setores produtivos, apontando os municípios de Canguçu e São Lourenço, que além da criação de gado tinha seus campos utilizados como caminho das tropas de gado vindos de outros estados.

Além das charqueadas houve outras atividades com expressivo emprego de escravos, nas estâncias, tanto no trabalho pastoril como outras relacionadas à agricultura, manufatura e atividades domésticas, o que exige uma atenção sobre suas particularidades (MAESTRI, 2009). Este autor considera que havia maior dificuldade para exercer a vigilância sobre o escravo negro na produção pastoril, exceto quando as relações se tornavam tendencialmente patriarcais. Por conta disso, sua presença nas estâncias pode ser também entendida pelos trabalhos relacionados à agricultura e manufatura, seja em estâncias mais direcionadas à produção pastoril, seja naquelas propriedades mais ligadas à agricultura mercantil, principalmente nas proximidades dos aglomerados de população como cidades e vilas.

O beneficiamento dos cereais; a produção doméstica de charque; o preparo da farinha de mandioca e de milho; a conservação dos caminhos; o abastecimento em água e lenha; o fabrico de tecidos rústicos, sapatos, velas, artefatos em couro; os trabalhos em madeira, etc. eram atividades dos trabalhadores escravizados (MAESTRI, 2009, p. 13).

Para o autor, estes trabalhos eram os que se davam em condições de aplicar uma maior vigilância, eram também os trabalhos mais penosos e concentrados. Consequência disso é que a fuga de escravos se dava neste tipo de atividades e não nas pastoris, onde se estabeleciam relações servis e condições de trabalho menos degradantes, sem que se veja nisso uma flexibilização dos meios de coação física (MAESTRI, 2009).

É deste tipo de relação, a escravidão permeada pela servidão, que se pode depreender uma diversidade nos processos de formação dos territórios de quilombos. Rubert (2008) aborda a complexidade relacionada à gênese do que vem a ser entendido como quilombo, de “intrincadas relações entre dependência e antagonismo por parte das famílias negras para com os setores com os quais interagiam e ainda interagem” (p. 169). Consequentemente, diferentes estratégias de territorialização aconteciam:

[...] o tradicional esconderijo/refúgio; doação testamental por parte do antigo(a) senhor(a)/estancieiro(a); compra com pagamento não só em dinheiro, mas também com trabalho e/ou outros bens, especialmente gado; simples apossamento de terrenos impróprios às atividades produtivas dominantes; recompensa por participação em revoluções (RUBERT, 2008).

Ainda no século XVIII a Serra dos Tapes se caracterizou como local de fuga de escravos e aquilombamento, como também de rota de deslocamentos e de posse de lavradores nacionais, agregados, posseiros, indígenas e negros, que já ocupavam por acesso livre e costumeiro à terra (ZARTH, 2002; RUBERT; WOLFF, 2011).

Diferentes processos estavam relacionados com as possibilidades/limitações para constituição de territórios negros, entre eles a própria redução da demanda do trabalho escravo ao final do século XIX. Por isso, é notável que estes processos de constituição de territórios negros em relação às estâncias ocorreram em grande parte por “doação” ou “herança”, o que predomina no RS (RUBERT, 2008), e se intensificaram ainda antes de 1888 na abolição da escravatura. Um dos motivos era o alto custo econômico de um escravo nesse último período, sendo preferível um trabalhador livre de baixo salário, mas que não era disponível na quantidade exigida (ZARTH, 2002).

Tendo como elementos constitutivos nas estratégias de territorialização e reprodução social diversas formas de “resistência”, como a interação entre grupos étnicos, reconstruindo suas fronteiras a partir dessas relações (casamentos interétnicos, relações de compadrio, presença de “filhos de criação” (negros em famílias brancas) (RUBERT; SILVA, 2009; DOS SANTOS PINHEIRO, 2014).

Dentre os processos ligados à reprodução social aos “quilombos”, entendidos não apenas como as áreas por eles ocupadas, mas como atos de resistência, permitiram, mesmo que limitadamente, a reprodução social destas populações. A resistência nos quilombos se associa com uma identidade comunitária, se agrupando, também, com indivíduos ligados à mesma condição. Este fato faz com que o quilombo não se limite apenas às populações negras rurais, mas todas aquelas ligados ao que se reconhece como “identidade quilombola”, entendendo “raça” como seu sinônimo na expressão de identidade social (SCHWARCZ, 2002; LEITE, 1999 apud BUCHWEITZ et al., 2010).

A noção de identidade étnica aqui colocada não se restringe unicamente ao aspecto racial, mas através do sentimento de pertencimento, das afinidades de

hábitos, costumes, condições de vida, portanto uma identidade enquanto “ato político”, socialmente construída (OLIVEIRA, 1998; WEBER, 1983 apud DOS SANTOS PINHEIRO, 2014).

Em pesquisa realizada no Rio Grande do Sul foram identificadas 58 comunidades, onde todas apontaram ascendência negra, não necessariamente escrava, mas também indígena, brasileira, espanhola, portuguesa e polonesa, o que revela um pouco da relação destas comunidades com uma condição, não apenas uma etnia (RUBERT, 2005).

Não se limita quilombo ao conceito de comunidade como espaço isolado, visto que se adapta melhor a um entendimento de território, já que as relações são de constantes visitas, trocas e matrimônios entre indivíduos de diferentes quilombos, constituintes de um mesmo “território-rede”, mas também com um conjunto de processos que afetam a sociedade, principalmente os grupos subordinados (RUBERT, 2008; 2012).

3.4 A PERSPECTIVA ORIENTADA AO ATOR – A AGÊNCIA DOS ATORES E