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CAPÍTULO 1 – LITERATURA DE VIAGEM: REPRESENTAÇÕES DO

1.3 Os viajantes como tradutores de culturas

Os viajantes do século XIX (e de outros tempos) foram de grande importância para a história do mundo, pois serviram como tradutores de culturas (que são dinâmicas e estão mudando constantemente) através dos seus escritos. Ao longo da história do Brasil, até o final do século XIX, a maior parte do conhecimento sobre o país foi construída através dos viajantes estrangeiros (BATISTA, 2009) que registraram o que viram e viveram em seus relatos. Cada um propôs sua própria visão sobre o Brasil, mas um ponto em comum nos registros foi “a exuberância da natureza (já encontrada na Carta de Caminha) como tema principal na definição de um caráter identitário do país” (BATISTA, 2009, p. 297).

Para Batista (2004), literatura de viagem e tradução literária são mecanismos importantes de representação, pois são disseminadores e criadores de imagens culturais, tendo em vista que o viajante propaga aquilo que vê e experencia, e o tradutor age como importante mediador cultural, transportando conhecimento entre uma cultura e outra. Essa ligação pode ser historicamente comprovada “através de sua atuação conjunta em diversos momentos da história cultural brasileira”, pois encontra-se presente “desde o momento fundador de nossa história, o descobrimento, representado pela Carta de Caminha, relato de um viajante que tenta traduzir na linguagem do velho mundo, o novo mundo que vislumbra” (BATISTA, 2004, p. 86), e pode ser visto também através do trabalho dos jesuítas que traduziam a língua indígena e exploravam territórios, comprovando que tradutores e viajantes estavam juntos presentes desde os

primórdios da história. Foi desde 1500, de acordo com Wyler (2003), que o Brasil se caracterizou por receber pessoas de diferentes línguas, e o aprendizado destas foi gradativamente sendo visto como algo necessário para a comunicação da colônia. O processo de tradução oral, então, se iniciou nesse período, com a presença dos chamados “línguas” que serviam como intérpretes e possibilitavam uma maior aproximação entre as culturas e a assimilação de novas ideias.

Consoante Pagano (1996 apud BATISTA, 2004, p. 86),

A presença da literatura de viagem e da tradução em nossa formação cultural é tão importante que podemos identificar a primeira como a origem de uma tradição descritiva que prevalece por um longo período em nossa história literária; enquanto a tradução tem sua teoria incorporada ao discurso cultural brasileiro e é tomada como paradigma para discutir certos aspectos de nossa especificidade cultural.

Como o Brasil era considerado uma terra ainda desconhecida e com diversos recursos naturais e fonte de riquezas (entre os séculos XVIII e XIX), era um local muito visado por exploradores, pois “incitava a curiosidade e interesse das potências europeias” (SILVA, 2009, p. 72). Os viajantes vinham em busca do ‘novo’, e com a Abertura dos Portos de 1808, o fluxo de exploradores que buscavam descobrir as potencialidades científicas e econômicas aumentou pela facilidade de entrada no país.

Consoante Souza (2014), a primeira literatura sobre o Brasil não foi grafada pelos portugueses, mas sim por franceses, na tentativa de fundar uma colônia na Baía de Guanabara, entre 1550 e 1560. O viajante e monge franciscano André Thevet8, que veio em uma expedição objetivando fundar um

colônia no Rio de Janeiro, ao retornar à França, publicou o primeiro livro acerca do Brasil escrito por um indivíduo proveniente da Europa: Les singularitez de la France Antarctique (Paris, 1557), que tratava da fauna e flora e descrevia não

8 Thevet foi um francês franciscano sacerdote, explorador, cosmógrafo e escritor que viajou ao Brasil no século 16. Nascido em Angoulême, França, no ano de 1502 e falecido em Paris em 1590. Em 1549 embarcou em uma viagem de exploração alargada a Ásia, Grécia, Palestina e Egito. Ele acompanhou o embaixador frânces Gabriel de Luetz para Istambul. Após seu retorno à França, em 1554, publicou um relato dessa viagem com o título de Cosmografia do Levante. Algum tempo depois dá um testemunho direto de sua viagem ao continente americano e a outras ilhas descobertas em sua viagem entre 1555 e 1556, enquanto acompanhava Nicolas Durand de Villegagnon, em sua tentativa de colonização francesa no Brasil. Publicou os relatos em 1557 "As singularidades da França Antártica", onde faz um impressionante relato descrevendo as peculiaridades do “Novo mundo”, os costumes “exóticos” do povo, a diversidade da fauna, etc. Disponível em: http://cronistaandrethevet.blogspot.com/2011/06/dados-sobre-biografia-de- andre-thevet.html. Acesso em: 08 mai. 2019.

somente o litoral, mas os sertões paraibano e pernambucano, sendo talvez o primeiro relato sobre o interior nordestino redigido por um europeu. “Thevet foi acusado por diversos eruditos da época de falsidade ideológica, incompetência geográfica e desonestidade intelectual” (SOUZA, 2014, p. 422), além de denunciado por contratar escritores-fantasma para escrever seus livros, de mentir cosmograficamente por inventar uma cidade, Henriville, por fabular algumas viagens e por descrever as amazonas brasileiras como reais, numa época que já se sabia que eram seres imaginários.

Muito embora Souza (2014) defenda a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500) como um informe curto e superficial, que ficou esquecido durante vários anos e só foi publicado no século XIX, vale salientar que é dela que saem as referências das primeiras escritas a respeito do Brasil do período da colônia, e é essa epístola que é utilizada como guia para a história do descobrimento do país e literatura colonial. Diante do relato interpretado pelo olhar do viajante Pero Vaz, criam-se representações sobre a natureza, sobre a figura do índio, arquitetura das casas, importância da mãe e hábitos da população.

Conforme Batista (2009), a conjunção entre relato de viagem e tradução já se encontrava claramente presente na Carta de Caminha:

Além de descrição da terra descoberta e dos índios que a habitavam, originando uma imagem que vai se propagar através dos séculos, a Carta também nos apresenta as primeiras dificuldades trazidas pelo desconhecimento linguístico mútuo entre os europeus e os nativos, e as estratégias buscadas para enfrentar a situação. (BATISTA, 2009, p. 297)

Desde essa época já é possível ver a imagem do Brasil que foi construída através do olhar dos viajantes e se faz presente no exterior até os dias atuais: a ideia de um país paradisíaco, de exuberante espaço natural e geográfico, com características selvagens e primitivas e de natureza única e preservada. Consoante Alves (2017, p. 36), essa imagem se conservou ao longo dos séculos, “de forma que, no século XIX, várias foram as incursões que envolviam a pesquisa científica em terras brasileiras, movidas tanto pelo interesse na expansão dos territórios, como pela busca pelas riquezas” relatadas nas diferentes narrativas de viagens.

Tais impressões, com certo caráter que hoje definiríamos como preconceituoso e sem nenhuma consideração pela diversidade e diferença

presentes em grupos sociais, são costumeiras em textos de viagens; são registros responsáveis por criar uma visão de país atrasado, no qual o viajante se posicionava como o civilizado, valorizando a Europa como berço da civilidade diante do primitivismo do nosso país. Os jesuítas, por exemplo, buscavam o desenvolvimento do conhecimento através de um processo de tradução linguística e cultural: estudavam a língua e hábitos dos índios, para, a partir daí, impor regras da cultura europeia e tornar os costumes indígenas esquecidos diante dos nativos, usando elementos do comportamento aborígine para vincular a ensinamentos da fé católica (BATISTA, 2009).

Diante dessas reflexões, percebemos que os viajantes foram responsáveis por grande parte do conhecimento de mundo que se tinha até o século XIX, servindo como mediadores interculturais que promoviam a disseminação das culturas e integração entre os povos, e a cultura apresentava papel fundamental na construção e tradução das realidades, possibilitando a comunicação e interação dinâmica entre as nações.

Após ter exposto algumas teorias acerca do gênero ‘literatura de viagem’, relevantes para a compreensão do contexto temporal de Travels in Brazil (1816) e da forma que Koster representa o Nordeste para o público inglês, o capítulo que segue abordará o conteúdo da obra e a vida do autor e tradutor, essenciais para a compreensão da análise de termos culturais característicos do Nordeste do Brasil, descritos minunciosamente por Koster para se fazer compreensível aos olhos do público alvo, leitores ingleses, já que a cultura europeia era tão distinta da cultura brasileira e vários elementos encontrados pelo viajante no Brasil não existiam em sua terra natal.