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CAPÍTULO 2 – VIAGENS AO NORDESTE DO BRASIL: OBRA, AUTOR E

2.1 Travels in Brazil: um retrato do Nordeste brasileiro do século XIX

2.1.1 Viagens ao Nordeste do Brasil: elementos paratextuais e impressões

O livro Viagens ao Nordeste do Brasil (1942), traduzido por Câmara Cascudo, também é composto por elementos paratextuais, que segundo Cherobin (2011), são textos que acompanham uma obra, guiam o leitor sobre o texto, contribuem com o conteúdo textual e dão informações sobre o autor, glossário, notas de edição, prefácios, posfácios, bibliografias, notícias de

14Quando os portos do Brasil foram abertos para o comércio internacional em 1808, uma intensa mudança nas elites nascidas no Brasil ocorreu. Entre 1808 e 1824, o Brasil se submeteu a experiência – sem precedentes no Novo Mundo – de ser sede de sua própria metrópole imperial, após ter sido uma colônia fechada durante a maior parte de sua história [tradução nossa].

apresentação, referências e citações. São responsáveis por tornar a leitura mais produtiva, uma vez que ilustram as intenções iniciais do autor e/ou editor, assim como os objetivos a serem atingidos através da publicação, já que o paratexto apresenta uma extensão da obra. Além do mais, é uma obra repleta de características de tradução cultural, visto que o autor, por diversas vezes, se propõe a traduzir a cultura nordestina para o público inglês através da explicação detalhada de componentes típicos apenas dessa região, às vezes através de notas de rodapé, outras vezes no próprio corpo do texto. Conforme Polezzi (1998), o viajante é um tradutor de culturas, e por assim dizer, o escritor de viagens é tradutor de um tradutor. Dessa forma, a experiência do leitor é a leitura de uma leitura que já houve antes, a interpretação de um texto produzido através de outra interpretação, ou seja, a tradução cultural

Involves what has been described as the process of extracting 'implicit meaning' from the verbal as well as the non verbal signs of a culture via a hermeneutic process carried out by an observer whose ultimate goal is to represent that culture to a different audience: the home readers, for whom the written text is produced and who will ultimately determine its success or failure15 (POLEZZI, 1998, p. 176).

No prefácio do tradutor, juntamente com uma ‘biografia impossível’, Câmara Cascudo discorre sobre a vida de Koster, embora as informações sejam escassas. Esclarece que o viajante nasceu em Portugal, já que alguns trabalhos o trazem como inglês, a partir de uma afirmação contida no livro: “a Inglaterra é a minha patria mas o meu país natal é Portugal” (KOSTER, 1942, p. 418); apresenta também particularidades da viagem desde o momento que o autor deixou Liverpool em um navio, até sua chegada no Brasil, discorrendo detalhadamente todos os lugares que aqui visitou, as viagens pelo interior, pessoas que conheceu, situações que vivenciou. Além disso, Câmara Cascudo inclui nas edições de Viagens ao Nordeste do Brasil (1942), o relacionamento entre Henry Koster e o amigo Robert Southey, o envolvimento do escritor com a Revolução Pernambucana de 1817 e um texto que Cascudo chama de

15 Envolve o que tem sido descrito como o processo de extrair o ‘significado implícito’ dos sinais verbais e não-verbais de uma cultura através de um processo hermenêutico realizado por um observador, cujo objetivo final é representar essa cultura para um público diferente: os leitores domésticos, a quem o texto escrito é produzido e quem vai finalmente determinar o sucesso ou fracasso [tradução nossa].

‘Depoimento de Koster’, mas que na realidade foi escrito pelo próprio tradutor em outubro de 1941.

A partir das declarações contidas nesse depoimento, percebe-se uma certa admiração de Cascudo em relação a Koster, pois segundo o tradutor, o viajante “é uma criatura humana, vivendo humaníssima e logicamente” (CASCUDO, 1942, p. 9) que “não ridicularisa hábitos e tradições brasileiras” (CASCUDO, 1942, p. 24). Era uma pessoa de fácil acesso, percorreu várias cidades e por onde passava fazia amizade; não parecia necessitar de dinheiro para viver, nem tinha dinheiro fácil, “é, mais ou menos, na situação financeira dos personagens de Machado de Assis” (CASCUDO, 1942, p. 11). Segundo o tradutor (1942), em parte alguma Koster foi monótono ou imponente; lançou o livro pois, ao retornar à Inglaterra, foi incentivado já que carregava tanta notícia única sobre o Brasil. Eram anotações raras, que testemunhavam o país no século XIX e abordavam temas como:

Alimentação, indumentaria, organisação social, aspecto das ruas e das cidades, caminhos e povoações, pretos, brancos, mamelucos, cafusos, curibócas, quilombolas, comerciantes, mulatos, escravos robustos ou senís, padres, donos de engenhos, vaqueiros, palhaços, dansarinos de corda, festas de Igreja, Semana-Santa, viagens, devaneio, cismas, anedotas, comentarias, estatísticas, comercio, politica, diplomacia, religião, profecia, tudo apareceu como indispensavel aos olhos de Koster. E ficou no livro (CASCUDO, 1942, p. 23).

Cascudo também fala com admiração do tratamento do viajante para com os escravos e acredita que seus comentários servem de aporte para o estudo da escravidão no Brasil: “Koster amou, defendeu e estudou o escravo com precisão e nitidez” (CASCUDO, 1942, p. 23). O tradutor se refere ao autor sempre com elogios e termina seu depoimento declarando que “é esse Henry Koster que sonhei restituir á circulação intelectual do Brasil, no seu livro claro, ensopado no leite da ternura humana” (CASCUDO, 1942, p. 27).

O final do livro é composto por um apêndice que “inclui a tradução de dois estudos sobre plantas da região escritos pelo Dr. Manuel Arruda Câmara, os quais foram resumidos e traduzidos para o inglês por Koster” (MARSON, 1995, p. 220), com o intuito de divulgar ainda mais a cultura brasileira. Manuel Arruda Câmara não se conformava com o quadro de injustiça social presente no Brasil,

lutava pela igualdade de classes e trabalhava a favor da população mais humilde, vítima de um sistema patriarcal. Fundou a Sociedade Maçônica, onde foi planejada a Revolução de 1817. Se dedicou ao estudo da botânica, sendo um dos mais conhecidos naturalistas da época, e deixou uma importante biografia, entre elas, esses estudos que Koster utilizou para compor seu livro16.

A obra conta também com algumas imagens, além de um mapa, que representam situações experimentadas pelo viajante e hábitos típicos da região. Como na época não havia fotografia, as gravuras encontradas ao longo do livro foram feitas por um parente próximo, a partir de detalhes e descrições fornecidos por Koster. Já o mapa foi adaptado e “delineado pelo grande mapa do Sr. Arrowsmith. Corrigi os nomes e a situação de alguns lugares e juntei outros, de acôrdo com os meus conhecimentos pessoais” (KOSTER, 1942, p. 7). Essas imagens são importantes para compreender melhor como funcionava o engenho de açúcar, como se dava o transporte de algodão, entender os caminhos percorridos pelo viajante, os meios de transporte e como o sertanejo realmente se vestia, ou seja, perceber como se dava a cultura e economia da época; o mapa, por sua vez, esclarece os pontos que Koster percorreu, dando uma ideia da ordem dos lugares visitados.

Figura 1

A figura 1 acima, representa o funcionamento de um engenho de cana- de-açúcar, onde a cana era transformada em açúcar, processo que se iniciava normalmente entre setembro e outrubro, período no qual a cana já estava pronta

para colheita. Koster descreve esse método detalhadamente, explica que tanto homens quanto mulheres trabalhavam nessa função que era “repetida cinco e seis vezes até o sumo ser todo retirado” (KOSTER, 1942, p. 430).

Figura 2

A gravura 2 ilustra o transporte do algodão, produto não menos precioso para Pernambuco que a cana-de-açúcar, “devido aos grandes pedidos de algodão desta provincia para as vizinhas e para os mercados britanicos“ (KOSTER, 1942, p. 451); era carregado no lombo de um cavalo e uma pessoa, que seguia a pé, ficava responsável por conduzir o animal até o destino.

Figura 3

A ilustração 3 demonstra como Koster fazia a travessia pelo mar. “O transporte foi feito em jangadas. A sela e o passageiro vão na embarcação enquanto o cavalo, seguro pelas redeas, nada perto da jangada. O jangadeiro

usa remo se ha profundeza ou vara se o trecho é razo“ (KOSTER, 1942, p. 88- 89).

Figura 4

A quarta foto mostra um fazendeiro e sua esposa em viagem. Dois escravos tinham a missão de carregar a patroa em uma espécie de tenda que era fixada em um pau comprido no qual os negros carregavam no ombro; outra escrava carregava a mala dos seus senhores sobre a cabeça, e o fazendeiro ia na frente montado a cavalo, determinando o percurso da viagem.

Figura 5

A figura 5 esboça um meio de transporte da época: a jangada. Koster (1942, p. 31) narra sua impressão ao ver esse objeto de locomoção:

Nada do que vimos nesse dia excitou maior espanto que as jangadas vogando em todas as direções. São simples balsas, formadas de seis peças, duma especie particular de madeira leve, ligadas ou encavilhadas juntamente, com uma grande vela latina, um pagaio que serve de leme, uma quilha que se faz passar entre as duas peças de pau, no centro, uma cadeira para o timoneiro e um longo bastão bifurcado no qual suspendem o vaso que contem agua e as provisões. O efeito que produzem essas balsas grosseiras é tanto maior e singular quanto não se percebem, mesmo a pequena distancia, sinão a vela e os dois homens que as dirigem. Singram mais proximos do vento que outra qualquer especie de embarcação.

Figura 6

A imagem 6 retrata o sertanejo, um típico vaqueiro nordestino, descrito pelo autor (KOSTER, 1942, p. 134) da seguinte maneira:

A côr do sertanejo é morena, e mesmo os que nascem brancos se tornam depois, com a diaria exposição ao sol, completamente taninados, como as roupas que usam A gravura anexa dará uma ideia de qualquer sertanejo, tal qual é visto todos os dias no Recife. A côr do couro representado na gravura é mais brilhante que a roupa vestida comumente porque o desenho foi feito sobre modelo ainda não muito usado.

Figura 7

E, por fim, o mapa (figura 7) representa os lugares percorridos pelo viajante ao longo do “[...] Sertão do nordeste, do Recife a Fortaleza, em época de sêca, viajando em ‘comboio’, bebendo agua de ‘borracha’, comendo carne assada, dormindo debaixo das árvores [...]” (KOSTER, 1942, p. 22). Koster morava em Recife, mas sentindo-se bem da doença que tinha, resolveu fazer uma viagem pelo Nordeste brasileiro que levou cerca de quatro meses: de Pernambuco seguiu pela Paraíba e adentrou o Rio Grande do Norte até alcançar o Ceará; depois retornou à Pernambuco seguindo aproximadamente a mesma rota.

2.2 Henry Koster – autor e tradutor cultural

A vida de Henry Koster é relativamente conhecida se considerarmos que sua obra passou a ser referência obrigatória em outros estudos sobre o Brasil e a escravidão da época, pois conforme Anjos (1994), o autor foi citado em trabalhos como The Problem of Slavery in Western Culture (1969), O Escravismo Colonial (1978) e Casa Grande e Senzala (1933). Farei, nessa parte da pesquisa, uma apresentação, ainda que breve, de alguns aspectos da vida do autor, visto que no Brasil, ao que parece, apesar de não ser totalmente