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3 CAPÍTULO 2 – A CIDADE ENQUANTO CATEGORIA DE ESCRITA

3.1 PARA UM CONCEITO MODERNO DE PÓLIS

3.1.1 A Pólis Institucional

Ao longo dos séculos, pelo menos desde o século XIX, vários membros da intelectualidade ocidental têm se perguntado quanto à natureza da Pólis helênica, mas as respostas que foram produzidas dizem mais respeito à contemporaneidade das questões que à antiguidade das respostas. Ao traduzir a expressão Pólis por cidade-estado, a concepção da formação dos estados nacionais no ínterim do século XIX fica evidente. Também é neste intervalo de tempo que a História enquanto ciência galga seu espaço entre os saberes ditos modernos, afirmando-se através de aplicações de modelos e estudos empíricos. Através da padronização dos estudos de história por meio das fontes escritas, uma concepção de cidade acaba sendo gestada, mas que, como afirmamos, ligava-se muito mais à expectativa europeia que à realidade dos helenos milhares de anos antes.

Ao pensar a respeito da organização política das cidades gregas, durante principalmente os séculos IV e V antes da era Cristã, a historiografia elencou diversos critérios: religiosos, isto é, organizadas sob critérios religiosos como aponta, ainda no século XIX, Fustel de Coulanges; nas tensões sociais, no conflito entre escravos e senhores, no processo descritivo das instituições estatais, como destaca G. Glotz em sua obra sobre a Cité Grecque; cidades como centro de consumo como analisa M. Finley

26 Para ampliação do debate sobre a concepção de modelos analíticos ver: GUARINELLO, Norberto

Luiz. Uma morfologia da História: as formas da História Antiga. Politéia Hist. Soc. Vitória da Conquista. V. 3. n. 1. p. 41-61, 2003.

(1997), sob influência direta do pensamento de Max Weber; abordagens cujo centro está na questão filosófica do ser, do cidadão como apresenta Jean-Pierre Vernant (1990).

Em Fustel de Coulanges, a cidade é permeada enquanto comunidade dos crentes, unidos por parentescos e formas conjuntas de culto. Para ele, a concepção de cidade está flanqueada pela ideia de uma religiosidade que uniria os fiéis em torno do culto, seja ele familiar, no caso de práticas privadas de culto ou público, com festividades públicas que chamaram atenção de muitos dos membros da Pólis. Da mesma maneira, para Vernant (1990), o indivíduo faz parte de uma aliança prática entre ele mesmo, a cidade e o deus. O cívico, portanto, compõe uma necessidade aos cidadãos, que caso abandonem o culto religioso trazem o mal da infidelidade tanto sobre si quanto sobre a comunidade, a respeito da Pólis.

Para Gustave Glotz, a cidade é um espaço de disputa entre oligarcas e democratas, sua preocupação baseia-se na explicação destes modelos e suas mazelas. Assim, a leitura de Glotz compreende a cidade enquanto organização política dos cidadãos seja ela democrática ou oligárquica. Por outro lado, entendemos que a conformação da cidade grega como conhecemos tem outros aspectos a serem lidos. A história da Grécia Antiga deve muito à formação geográfica da península grega. O terreno acidentado possibilitou a formação, em regiões de vales, da proteção natural de várias cidades, como Esparta, por exemplo. Cercada pela cadeia montanhosa do Taigeto e pelo rio Eurotas, Esparta tornou-se uma comunidade isolada, tanto geograficamente quanto culturalmente.

Já para Moses I. Finley a cidade se configura enquanto centro de consumo da produção agrícola, a cidade, portanto, é um parasita do campo. Segundo o autor já mencionado, o campo sedimenta a cidade à medida que produz e suas riquezas são levadas ao centro mais densamente povoado, onde há o contato comercial, as cidades são apenas a sede da instituição, mas o poder das elites reside em seus domínios sobre as terras, e por isso, sobre a produção agrícola.

Atualmente, autores como Mogens Helman Hansen têm apontado a Pólis como a grande forma de construção urbano-social da Grécia, tanto no período Arcaico, como no Clássico. A Pólis é a comunidade que Sócrates, Platão, Xenofonte, Heródoto e Aristóteles viveram, e sobre as quais pensaram. Por outro lado, Hansen aponta a importância do estudo de outras póleis, de um universo de mil e quinhentas póleis,

apenas duas são mais estudadas, pautadamente Atenas e Esparta, mas e as outras 1498? Estas não nos têm algo a dizer?

Hansen tem, nos últimos anos, inundado o mundo acadêmico com diversas leituras sobre a Pólis. O autor esteve à frente do Copenhagen Polis Centre, da Universidade de Copenhagen, de 1993 a 2005, e neste intervalo produziu anualmente um encontro com especialistas de todo o mundo para que se debatesse sobre a ―cidade‖ grega. A cada meeting, foi produzido um texto, compondo uma série de leituras sobre a Pólis. Sobre sua obra, devido à vastidão, deveremos nos ater a duas, especificamente: A Inventory of Archaic and Classical Poleis (2004), cuja organização se deu em parceria com Thomas H. Nielsen; e Polis An Introduction to the Ancient Greek City-State de 2006; e o capítulo  as the Generic Term for State (1997).

Em A Inventory of Archaic and Classical Poleis, Mogens Hansen encabeça um ambicioso projeto de levantamento de dados sobre dezenas de cidades que existiram na Bacia Mediterrânica e se autointitulavam gregas. De acordo com Hansen, não faz sentido que se produza um inventário, uma coletânea sobre diversas cidades da Grécia sem que se discuta a ideia conceitual de Pólis. Para ele, os estudos sobre a origem da Pólis grega são possíveis através de três critérios, três tipos de evidências: a evidência linguística; informações a partir das fontes literárias e epigráficas; e os restos físicos de assentamentos antigos. A evidência linguística é possibilitada através de estudos comparativos, de palavras relacionadas, em outros ramos de línguas de origem indo- europeia; já a cultura literária, de textos como Tucídides e Heródoto, e finalmente, através da produção de dados advindos da arqueologia.

Hansen nos demostra uma análise através de dados numéricos que apontam informações interessantes. Por exemplo, em evidências dos períodos Arcaico e Clássico o termo Pólis aparece em torno de 11.000 vezes (2004, p. 13). Da mesma forma, derivados Polites, Polisma, Politikos, Politeuein/Politeuesthai, entre outros. Grande parte dos documentos analisados é de origem ateniense, mas através de estudos sobre outras póleis, encontrou-se mais de 2.000 elementos de origem não-ateniense. Ainda no ponto de vista de Hansen, a ocorrência destas expressões nos permite visualizar o apego e a utilização dos helenos por estas palavras, tolerando a ideia da utilização de termos políticos em outras cidades. Nesta perspectiva, Mogens Hansen escapa das críticas impostas a este tipo de análise sobre a cidade que privilegiam as fontes escritas,

principalmente pelo fato da preferência por Atenas. Finalizando, Hansen defende ainda a ideia da composição de uma identidade cívica ―um sentido de identidade comum, baseada em tradições, cultura, cerimônias, símbolos e às vezes (presumido) descendência comum‖ (p.11).

Já em Polis An Introduction to the Ancient Greek City-State, Hansen define a cidade enquanto uma comunidade política, uma espécie de estado, que difere da ideia de estado moderno, mas que concebe elementos essenciais à formação de um estado, como um território, um exército e um sistema de instituições que governam a comunidade, além de certo grau de autonomia. Outra noção importante defendida pelo autor é a posição de concordância da tradução de Pólis por cidade-estado, tendo em vista que, sempre que ocorre a expressão Pólis, poder-se-ia encaixar a expressão estado. Hansen defende ainda que as instituições da Pólis são amplas e suficientes para sua administração, e são elas: o Prytaneion, espécie de edifício onde os magistrados recebiam convidados ilustres e ali realizavam seus banquetes; os templos religiosos e outros santuários; as construções de defesa, os portões da cidade e a muralha; o mercado; ginásios e instalações destinadas aos jogos.

Em Polis a generic term for state, Mogens Hansen defende o pensamento de que Pólis é, na verdade, um termo genérico, generalizante, utilizado pelos gregos para classificar o que nós contemporâneos chamaríamos de estado, país, ou nação. Na visão de Hansen, a palavra é utilizada para descrever um determinado tipo de comunidade autônoma. Para realizar sua empresa ele passa à análise de um grupo de pequenas cidades, e após isso, retoma aos textos clássicos para perceber quais delas são, no termo estrito da palavra, póleis.

Esta compreensão, gerada principalmente através da óptica aristotélica, produziu uma imagem limitada da Pólis, configurando-a explicitamente como o lugar dos cidadãos, deixando de lado toda uma massa de elementos transeuntes, que habitavam a cidade, mas que excluídos da vida política, não atraíam os interesses dos catedráticos europeus. Esta leitura não se esgotou, e durante o século XX, por seu turno, foram vários os autores que perscrutaram tal problemática. No entanto, com o passar dos anos, principalmente a partir dos anos de 1950, com o trabalho de Giulio Schmeidt e R. Chevallier em Caulonia e Metaponto: applicazioni della fotografia aerea in ricerche di topografia antica nella Magna Grecia (1959) foi que a cidade passou ser entendida

também através dessa estrutura física (FLORENZANO, 2011), abrindo um frutífero viés analítico por meio das observações feitas por estudos arqueológicos.