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4 CAPÍTULO 3 – XENOFONTE E A REPRESENTAÇÃO DE ESPARTA E

4.4 XENOFONTE E A REPRESENTAÇÃO DE ESPARTA

4.4.3 Vida cotidiana: os usos e costumes

A preocupação do legislador baseia-se no papel da mulher na procriação, no aumento da população. Xenofonte aqui destaca o caráter biológico da formação do futuro cidadão, da criança cujo ventre materno já se prepara para sua chegada. Outro dado interessante é o tom provocativo de Xenofonte: enquanto em outras cidades as moças recebem trabalhos leves, como fiar a lã, atividades que realizavam sem grande esforço físico, em Esparta as donzelas passam por um treinamento físico árduo tanto quanto o masculino. Este exercício de alteridade que se dá em diversas passagens, o de opor costumes de outras cidades gregas em oposição aos de Esparta traz consigo a tentativa de explicação quanto à superioridade espartana sobre as cidades gregas de então. Essa interpretação também traz consigo tentativa de entendimento sobre as

62 Há diversos debates sobre a noção de corpo para os gregos, ver. SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o

qualidades, as formulações culturais e políticas que levaram Esparta a tal posição na Hélade do final do século V e início do IV.

Já que a cidade é composta de cidadãos, importa que estes sejam bem preparados desde a tenra idade para exercer as atividades administrativas. A base familiar enquanto base do projeto educacional das reformas de Licurgo é para Xenofonte a chave para o desenvolvimento da cidade. Após destacar o papel da mulher, o estratego ateniense destaca o papel da formação familiar, mostrando que os celibatários, aqueles que por algum motivo não se casavam e, portanto não tinham filhos legítimos, poderiam ter direitos cassados, tanto da propriedade quanto o poderiam receber tratamentos desonrosos por partes de outros cidadãos.

As leis referidas por Xenofonte trazem algumas lacunas, por exemplo, a stásis, as recorrentes crises que se abatiam sobre Esparta principalmente através das intensas desigualdades sociais, inclusive entre os cidadãos, o que acarretava o acirramento das disputas internas principalmente pela posse das terras agricultáveis. Na perspectiva de dar vazão, mesmo que seja de uma maneira minimalista, a estas questões, Xenofonte chama a atenção para a imagem das Syssytias, a prática das refeições comunais, onde cada cidadão traria determinadas quantidades de alimento e ali, em conjunto, enquanto o corpo de cidadãos, os indivíduos comeriam juntos, de acordo com Xenofonte as quantidades corresponderiam a porções que não os deixariam fartos, entretanto não os deixa esfomeados(5.3). Ou seja, a quantidade de ração distribuída de maneira uniforme é capaz de saciar, de dar conta às necessidades. Sobre a distribuição da ração comum aos iguais, Humble destaca: Licurgo, notando uma tendência dos espartanos que viviam em suas próprias casas, como outros gregos, em relação ao estabelecimento das refeiçõesem comum acreditando que através da instauração de refeições públicas dos cidadãos, tornou tal prática em transgressão (5,2). Uma descrição da dieta nestas refeições é dada (5,3). Podemos perceber também que o cardápio dos iguais fora menos rigoroso que a dieta dos meninos (2,5). Por outro lado, Os membros do syssitia não deviam ser obrigados a permanecer ali, nem eraasua dieta completamente desprovida de luxos, os despojos de caça e pão de trigo dos ricos também eram repartidos entre os membros do grupo (HUMBLE, 1997).

Ainda segundo Noreen Humble, a syssitia seria um espaço privilegiado de sociabilidades extra-etário, onde adultos e crianças entrariam em contato, onde estes

últimos aprenderiam desta vez não por medo, mas através da conversa com os mais velhos.

Percebemos em Xenofonte a exposição da instauração e conseguinte manutenção de uma ordem social que inibisse a desigualdade entre os cidadãos, através de um critério que pode soar como ingênuo, a divisão de porções iguais de refeição, mas segundo Xenofonte só é base do igualitarismo, já que além das refeições comum em Esparta seria vedada aos cidadãos toda atividade que não estivesse ligada à administração da cidade, assim não poderiam administrar seus negócios e, portanto enriquecer a si mesmos, portanto todos permaneceriam iguais, inclusive financeiramente:

Por sua vez, Licurgo estabeleceu as seguintes normas legais contrárias ao resto dos gregos. Nas demais Póleistodos enriquecem como podem: um trabalha a Terra, o outro é armador, alguns se dedicam ao comércio e outros ao Artesanato. Em Esparta, Licurgo proibiu aos cidadãos livres fazer qualquer coisa que se relacionasse com o lucro, ordenando que só se considerassem próprias as atividades de liberdade cívica (CL VII, 1-2).

Deve, portanto, haver uma uniformidade inclusive financeira entre os cidadãos, para que a estabilidade social possa gerar seus frutos. Na tentativa de demonstrar a seu grupo de leitores os frutos de uma sociedade sem disputas econômicas, não há disputas, pois cada um só pode tomar como profissão assuntos referentes à liberdade da cidade, são portanto obrigados a prestar este serviço de ordem pública. Por outro lado, Xenofonte aponta que em Esparta não há a necessidade de ter dinheiro, já que não há a prática do consumo, pois ainda segundo Xenofonte não há fornecimento de roupas, por exemplo, e quando querem se adornar usam flores ou mesmo sua boa aparência física (7. 3). Mais até, segundo Xenofonte, Licurgo teria proibido a entrada de ouro e prata na cidade, pois acredita que os males do espírito são resultado das malícias geradas por lutas de origem econômica. O que vemos aqui não é somente a exposição de um ideal, mas a pregação, o proselitismo deste mesmo regime governamental.

Há outras lacunas aqui, Xenofonte não cita que os espartanos estavam livres de atividades comerciais, pois tinham ao seu dispor uma massa de trabalhadores, que

ocupados das atividades com fins lucrativos, liberavam seus mestres para a organização política da cidade, assim como para o treinamento físico e militar.

Até o momento explicitamos como Xenofonte, de maneira sistemática, expõe os costumes espartanos como sendo de origem legislativa, as leis organizam não somente a vida política da cidade, mas todas suas esferas de vivências e relacionamentos entre os cidadãos. Tentando fazer ver uma sociedade igualitária em diversos aspectos como na obrigatoriedade da participação no exército regular e apartilha dos alimentos nos refeitórios em comum. Essa prática por outro lado parece ter sido exercida em um determinado grupo da sociedade, pois outro, que ele chama de  os estadistas, que também nomeia por  que pode ser traduzido por ―os velhos‖, chamando a atenção para o conselho de magistrados. Esta categoria diferente de cidadãos tem tanto poder que para que Licurgo pudesse por em prática suas reformas legislativas tiveram suas opiniões recebidas (8.1). Como aristocrata Xenofonte acredita na idéia de uma sociedade temente às leis, leis reguladas e propostas por um grupo de cidadãos, que através de critérios que não explicita se tornaram os mais poderosos, os melhores, .

Apesar da aparente igualdade exposta até aqui, existiam em Esparta abismos sociais gritantes, não somente viventes entre os cidadãos e outros, mas entre os próprios espartanos, divididos entre Esparciatas, Hypomeiones, e Neodamodeis. Aqueles que de fato tinham os direitos políticos tinham as melhores terras e, por isso, acumulavam as riquezas produzidas no fértil vale do Eurotas; os indivíduos que por certos fatores não puderam partilhar o pão nas syssitias, que possivelmente perderam suas terras, isto é, lhes foram retiradas por parte do estado, e que por isso tem seu estatuto social rebaixado; e por fim, aqueles que por algum motivo deixaram de ser hilotas, ou periecos ocupando uma dignidade superior, eram ―novos na comunidade‖. Estes grupos estão em conflito pela dominação da cidade, Xenofonte não deixa tão claro assim estas disputas.