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5 Relacionamentos íntimos amorosos da mulher adulta

5.2 Papéis sexuais e cultura

A reflexão sobre os papeis é fundamental considerando os fatos que marcaram a história dos séculos XX e XXI e que levaram Lipovetsky (2000) a considerar que essa época esteve caracterizada por uma revolução profunda e rápida. Entre esses fatos são relevantes: o ingresso das mulheres às empresas e universidades, a autonomia diante dos pais e do esposo e a possibilidade oferecida pela pílula para decidir sobre a maternidade. Aos poucos, os efeitos desses eventos chegaram às famílias de diferentes classes sociais. Em muitos lares, as mulheres começaram a sair, mas não para casar, elas estavam deixando as suas famílias para viver sua jornada pessoal (GIDDENS, 1992). Arrumando suas malas, empreenderam viagens para outras cidades, buscando a formação profissional e a independência econômica. Suas histórias podem ser lidas como processos de iniciação que nos contos e mitos antigos quase sempre eram vivenciados por heróis masculinos.

Para a mulher, estabelecer-se em uma nova moradia implicou resolver algumas perguntas sobre seu lugar na sociedade, a aquisição e o uso do dinheiro, e as expectativas sobre as relações, a profissão e a politica. Ela se depara com a liberdade, a autonomia e com um mundo caracterizado por padrões ou modelos de competitividade, racionalidade e consumismo, que estabelecia demandas fortes para quem desejasse ter sucesso. Com uma responsabilidade pessoal, a mulher tinha a possibilidade de reformular ou fortalecer sua escala de valores, acrescentando experiências a sua história e novos aspectos a sua identidade. A vida apresentou-se para ela como um projeto próprio e aberto que traz novidades, demandas e ansiedades (GIDDENS, 1992).

Nesse processo de profunda mudança, a compreensão dos papéis sexuais é uma questão fundamental para entender os relacionamentos. Os papéis sexuais estão ligados à imagem que a mulher tem de si mesma, imagem esta que também se configura em um contexto

cultural específico. Embora cada mulher possa realizar uma construção individual, a psicologia pode achar alguns temas em comum, reconhecendo os aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais que definem as histórias pessoais e o gênero.

Por exemplo, Erikson (1987) propõe uma compreensão da identidade feminina a partir da experiência que as mulheres têm dos potenciais oferecidos pelo corpo e o sexo. Para o autor, os papéis sexuais são definidos em uma combinação entre anatomia, personalidade e história, existindo a possibilidade de experimentar as tarefas, preocupações e interesses do outro sexo, adaptando-as como expressão da própria psique. Embora o psicólogo caracterizasse tradicionalmente esses potenciais, sua proposta poderia ser considerada como um esforço que valora a diferença. O autor destaca a relação com o corpo como um elemento fundamental para refletir conscientemente sobre a construção da identidade, as possibilidades biológicas e sociais, e o estabelecimento de relacionamentos afetivos.

Rose Marie Muraro (1971) questiona as ideias tradicionais sobre feminino e masculino, postulando que eles não estão predeterminados, mas são realidades em desenvolvimento que dependem da cultura. Hime (2008) e Maroni (2011) mantém a mesma perspectiva postulando que existe uma diferença entre sexo e gênero. O gênero é uma interpretação cultural das diferenças sexuais, que serve para estabelecer diferenças psíquicas e sociais. Assim, o discurso social sobre as diferenças elabora critérios que outorgam status e papéis sexuais opostos e complementares aos homens e às mulheres.

Meroni (2011) explica que o gênero, como categoria social, foi construído em três lutas. A primeira luta buscou a igualdade e autonomia para libertar à mulher da submissão. Depois as pesquisadoras ressaltaram as diferenças entre os gêneros. Finalmente, a luta moderna faz um destaque das “mulheres”, em plural, explicando que o gênero é uma construção subjetiva que inclui a cultura e a biografia individual. Essa nova conceptualização permite repensar os significados de feminino e de masculino, os papéis sexuais nos vínculos afetivos, e as relações das mulheres com a carreira e o poder.

Os papéis tradicionais das mulheres nos vínculos afetivos estavam relacionados com a ideia de que elas eram emotivas, caprichosas, irracionais e voltadas para as questões da intimidade. Porém, essas imagens foram criticadas e ampliadas nos últimos séculos. Giddens (1992) considera que, com a igualdade sexual, as mulheres ganharam uma

consciência sobre a finitude do vínculo amoroso, reconhecendo uma ampla variedade de motivos para se relacionar e gerando a fragmentação do amor romântico. Entre as novas descobertas nas histórias afetivas e sexuais das mulheres, o autor destaca a busca de um prazer momentâneo e a vontade de ficar com um homem sem envolver-se afetivamente.

Para Lipovetsky (2000), a revolução sexual das mulheres esteve acompanhada da atenção aos próprios sentimentos e da busca por uma intimidade maior nas relações, idealizando o encontro do grande amor como a real expressão da sua individualidade. O autor considera que a mudança nos papéis sexuais encontra-se na atribuição de um lugar ativo de heroína à mulher, o qual contrasta com as donzelas passivas do amor romântico. Nesta avaliação destaca-se um novo ideal feminino, mas se reconhece a independência e a coragem que a mulher tem para amar, conquistando o parceiro e dissolvendo sua indiferença. Com ideias semelhantes, Erikson (1987) vê as mulheres jovens como criadoras, musas e enigmas, e Giddens escreve: “A heroína amansa, suaviza e modifica a masculinidade [...] possibilitando que a afeição mútua transforme-se na principal diretriz” (1992, p. 57). Essa mulher que tem maior possibilidade de viver seu corpo mantem o compromisso com a busca do amor, e também sacrifica menos os estudos e a profissão. Ela disputa diversos papéis nas estruturas hierárquicas e reivindica seu poder em igualdade com o homem, reconciliando-se com o prazer de ganhar e com o espírito de competição. Porém, persiste o isolamento e a reprodução social do poder masculino (LIPOVESKY, 2000), porque as relações entre os gêneros no âmbito profissional ainda se caracterizam por vínculos de domínio que levam à opressão e a submissão da mulher (MERONI, 2011).

Considerando esses conflitos e ganhos gerados pela entrada da mulher no mundo do trabalho, Muraro (1971) opina que é muito perigoso igualar ou separar os gêneros, e que a competição e a solidão que caracterizam os encontros de homens e mulheres são os primeiros passos na busca do equilíbrio. Barbosa (2011) descreve que a mulher pode desejar, ao mesmo tempo, uma carreira, reconhecimento, poder, amor e sexualidade. Coletando dados de diferentes pesquisas, a autora deu um destaque ao dinheiro, à autoridade e à autonomia que a mulher tem, mas estes ganhos são contrastados com um sentimento da perda da liberdade e de uma vida sem “cor”. Segundo a autora, o trabalho para uma mulher, por mais apaixonante que seja, não pode substituir o amor, embora possa compensar a frustração de perdê-lo ou diminuir a inferioridade de quem é rejeitado.

Assim, Barbosa (2011) e Favia Arantes Hime (2008) explicaram que a nova mulher que aspira estruturar sua identidade na ocupação, não abriu mão de seus desejos de vinculação com um parceiro ideal, e por isso a busca pela igualdade e a realização profissional acumulou funções e ampliou as dificuldades para conciliar todos os papéis. Autonomia, autoridade e cuidar são valores criados pela sociedade, que a depender do contexto, são vinculados a um gênero. Os estudos citados por Giddens (1992) e Lipovetsky (2000) destacam a coexistência desses valores e papéis sexuais opostos na mulher jovem.

Embora muitos papéis tradicionais do feminino fossem questionados, eles perduram misturando-se com as funções modernas. Assim, segundo o discurso social o homem continua ligado ao poder, ao sucesso e aos papéis públicos, e a mulher aos papéis familiares, íntimos e afetivos. Hime (2008) também considera que persiste a feminização do amor e a masculinização do sexo, destacando no homem a paixão sexual, a busca da sobrevivência e o sexo ativo e dominador, enquanto a mulher valoriza a partilha de sentimentos, a dependência emocional, o cuidado e o diálogo. No entanto, a entrada da mulher no domínio público e o reconhecimento de que o homem deseja estabelecer relações íntimas, traz novas possibilidades para definir masculino e feminino, experimentando o amor e o sexo em vínculos democráticos, flexíveis e plurais.

Nesse processo de integração do antigo e do novo nos papéis sexuais, Lipovetsky (2000) descreve a figura social do feminino que emerge como a terceira mulher, um personagem que possui o poder de criar sua identidade, sua vida e seu destino. Para ela, tudo se tornou escolha e objeto de interrogação. Isso não implicou o desaparecimento dos gêneros, porque as diferenças são recompostas sobre novos traços, tornando-se menos visíveis e mais maleáveis, mas com distâncias que produzem divergências em comportamentos, prioridades, motivações, exigências e gostos que determinam as identidades e os vínculos.

Historicamente, o feminino foi desvalorizado, mas considerava-se que tinha poderes ocultos. Com o romanticismo, a mulher foi enaltecida em uma tentativa de colocar o seu poder e mistério sob o controle das normas e estruturas sociais. No entanto, a modernidade a percebe como um ser indeterminado e com as possibilidades de realizar-se na profissão e no amor. A mulher, anteriormente considerada como diferente, estranha e caótica (LIPOVETSKY, 2000), é hoje compreendida como um ser complexo e diverso que pode contar sua história, descobrindo-se a si mesma e escolhendo e caracterizando

seus papéis sexuais de acordo com suas necessidades e desejos em uma jornada que não estará isenta de dificuldades. A pergunta pela essência da mulher tem bases ontológicas e filosóficas e é uma questão que cada mulher deve responder individualmente. A sociedade lhe oferece possibilidades, mas elas trazem contradições e conflitos próprios das culturas capitalistas e líquidas descritas por Lipovesky (2000) e Bauman (2004).