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5 Relacionamentos íntimos amorosos da mulher adulta

5.4 Relacionamentos íntimos amorosos, animus e projeção

Jung ([1928] 2011e, [1948] 2011h) utiliza conceitos como projeção, anima e animus para descrever algumas das suas ideias sobre as relações. Como destacado anteriormente, os psicólogos analíticos criticam a atribuição de conteúdos específicos ao animus, mas reconhecem a importância dos processos estruturais e das experiências psíquicas que lhe são atribuídas, apresentando-o como um complexo contrassexual e com uma função psíquica. Neste capitulo aprofunda-se a associação que pode ser estabelecida entre animus e as relações íntimas amorosas, retomando os postulados de Jung e dos posjunguianos.

Para Young-Eisendrath (2002) a teoria da contrassexualidade é uma análise cultural dos opostos na qual Jung traz a noção de que cada um tem uma personalidade inconsciente, ou menos consciente, que precisa desenvolver-se. Como complexo psíquico contrassexual, o animus se manifesta em um conjunto de símbolos carregados afetivamente que são idealizados ou desvalorizados, mas também personifica atributos socialmente considerados como pertencentes ao outro sexo, compensando e sendo determinado pelos papéis sexuais. Assim, o animus define a relação da mulher com o “não eu” que se configura, em parte, pelos aspectos que são reprimidos porque representam o oposto que antagoniza, complementa e compensa o ego consciente

O conceito de complexo foi originalmente proposto por Jung ([1934] 1984) para definir um conjunto de

imagens, ideias e sentimentos que se mantém unidas através de uma carga emocional, possuindo autonomia. O complexo organiza-se em torno de um núcleo arquetípico, relacionando-se com algum aspecto típico da vida humana e motivando de modo não racional comportamentos e reações.

(JONES e MATTON 1987; SAMUELS, 1989; KOLTUV, 1996; BENEDITO, 1996). Como complexo relativamente autônomo, o animus pode ser projetado em uma pessoa, grupo e instituições, ou pode se personificar e aparecer na psique da mulher.

Os aspectos que são personificados ou projetados podem ser positivos ou negativos. Como potenciais positivos, apresentam-se com uma aparência masculina em sonhos e fantasias, ou podem trazer sentimentos e energias que permitem à mulher se concentrar em relações e projetos. Os aspectos negativos aparecem como forças destrutivas que a consciência não pode controlar e que, na verdade, são capacidades pouco desenvolvidas. Assim como Jung, Emma Jung ([1931] 2006) utiliza os sentidos da palavra grega logos para descrever esses aspectos. A autora utiliza a forca, o ato, o verbo e o sentido para explicar que o animus outorga significado, iniciativa, liderança, expressão e planejamento para atingir as metas, mas também pode se manifestar na dominação, nas ideias rígidas e nas críticas destrutivas. Se predominarem os aspectos negativos, encontra-se uma mulher crítica e agressiva ou que se sente inferior, deprimida, culpada, vazia e insegura.

Young-Eisendrath (1995) e Koltuv (1996) também propõem algumas imagens para compreender a experiência psíquica do animus como complexo e as vulnerabilidades e possibilidades geradas por sua projeção. Por exemplo, o animus poderia ser vivenciado como estranho, primitivo e abusivo. Como pai, deus ou patriarca, traz proteção e contenção, ou ideais que levam à mulher ao sacrifício para ter aprovação externa por meio da aparência ou realizações. O amante jovem atrai e inspira, permitindo investigação e criação, mas sua projeção dificulta o estabelecimento de uma relação real. Como herói oferece energia para realizar desejos e ser livre, ou pode aprisionar e paralisar como tirano. O homem sábio permite um direcionamento para o conhecimento, ou poderia transmitir ideias obsessivas. Como companheiro interior, a mulher percebe-se como competente, forte, com autoridade e autoestima, estabelecendo relações interdependentes, sentindo empatia e aceitando os conflitos e limitações inerentes à vida.

Quando essas imagens do animus são projetadas podem ser reconhecidos nas emoções, expectativas, fantasias, ideais, conflitos, opiniões, predições, suposições e valores que definem as relações com o oposto sexual. O encontro com esse oposto traz também o diferente, aquilo que não é aceito conscientemente. O homem que representa essa imagem é percebido como um enigma que fascina, atrai e seduz a mulher, caracterizando o

relacionamento por uma mistura de mistério, numinosidade, resistência e medo (JUNG, [1948] 2011g). Com a projeção do animus no parceiro, a imagem dele será reelaborada pelos aspectos subjetivos que se juntam aos atributos dele, e o vínculo ganha um matiz de admiração ou paixão, desejando uma relação erótica, única e íntima com esse homem.

Na projeção é difícil identificar e compreender os conflitos porque conscientemente a mulher só percebe ou apresenta os aspectos ideias e convencionais, e outros aspectos íntimos e conteúdos inconscientes dela e do parceiro ficam ocultos na escuridão. Jung ([1925] 2011c, [1946] 2011f) explica que quando predominam as projeções existe um estado de identidade com o inconsciente, operando entre os parceiros uma relação caracterizada pela dinâmica do envolvente e do envolvido. O envolvido projeta a imagem anímica no envolvente, dependendo dele e criando ilusões. O envolvente não se basta no vínculo e mantém uma busca que o leva para fora dele.

Segundo Benedito (1996), Reis (2007) e Alvarenga (2010) a projeção do animus facilita a entrega entre os parceiros, a paixão, a comunicação e a aceitação do desconhecido e do diferente. Nesse processo, as defensas da psique são quebradas e a mulher se abre a um campo de vivências criativas e prospectivas ou redutivas e destrutivas, tais como desenvolver caminhos para viver suas experiências amorosas, ou favorecer a autonomia dos complexos e as ilusões e os conflitos. A projeção é um processo natural e espontâneo, possuindo um valor que depende do que se faz com ela ao reconhecê-la porque coloca o individuo diante das obscuridades e contradições inconscientes.

Quando as mulheres retiram as projeções, diferenciam o parceiro dos aspectos do animus que são colocados nele, e pode estabelecer-se, segundo Jung, um relacionamento psicológico ([1925] 2011c; [1928] 2011e; [1948] 2011i). Nessa relação, existe uma escolha consciente baseada no conhecimento das motivações e fantasias pessoais e do parceiro, identificando o que os une e separa. Assim, a mulher reconhece os elementos reprimidos ou separados, integrando aspectos da psique e da relação humana, como aspectos inseparáveis, porque é na dinâmica entre eles que se produz a transformação e que ela pode ser criativa e valorar suas diferenças. Aqui o animus é dirigido para o mundo psíquico, funcionando como psychopompos, guia ou intermediário que abre caminhos e destaca para a mulher tarefas que precisa realizar para sua individuação.

Como foi destacada, a integração do animus também se acompanha de novas percepções sobre o relacionamento amoroso. Para Byington, o amor se transforma em um “processo gnóstico iniciativo” (2010, p. 86), buscando sempre o conhecimento pessoal e do parceiro. O amor é inseparável da inteligência racional e da atração erótica, precisando de sentimentos profundos e expectativas reais que trazem dúvidas e implicam aceitar a liberdade do outro. Na intimidade amorosa, precisa-se coragem para viver e expor o que é profundamente interior, tornando-se vulneráveis e acolhendo o parceiro emocionalmente para que também expresse seus segredos (VON KOSS, 2000). Assim, desenvolve-se uma dialética amor–paixão (ALBUQUERQUE, 1989), na qual se passa da paixão à desilusão para atingir o amor, e volta-se à paixão para encontrar os aspectos novos trazidos pelas projeções, reconhecendo as diferenças, as fantasias, os anseios e os temores.

Na relação íntima, o animus permite uma iniciação no mistério próprio, do outro e do amor, porque sua projeção e o conhecimento próprio e do parceiro, traz algo significativo do inconsciente, permitindo a ampliação da consciência. O amor possui aspectos arquetípicos que servem como base de mitos e contos, tais como: a dualidade e as diferenças dos parceiros, e a busca eterna da natureza humana pelo encontro afetivo. No entanto, cada vínculo é único porque permite elaborar símbolos individuais de aspectos psíquicos que se concretizam na experiência amorosa. Especificamente na primeira metade da vida, o relacionamento amoroso permite reconhecer aspectos sombrios e opostos, complementando o desligamento da família por meio de um apoio emocional.

O relacionamento psicológico não exclui o conflito e o sofrimento, mas os reconhece como tentativas de diferenciação, nas quais o fracasso e os obstáculos permitem um crescimento que busca desenvolver um potencial inconsciente (REIS, 2007). Flaiszman (2006) e Saldívia (2013) apresentaram esta mesma percepção em uma visão mais ampla do conceito de eros. Embora eros tem a função de unir, relacionar, e criar, ele possui natureza sombria responsável pelo conflito, confusão, possessão e curiosidade que emergem no encontro com os complexos e com os opostos rejeitados.

Young-Eisendrath (1997 e 1998) explica que existem outros mecanismos para lidar com esses aspectos negativos das relações. Por exemplo, a inveja leva a um desejo de destruir

aquilo que não se pode possuir do parceiro, exprimindo um ódio que busca esvaziar o outro do seu valor, minimizando suas metas e capacidades. O ciúme é um desejo de dominar o companheiro, acreditando que se pode possui-lo ou gerando uma competição e uma iniciativa para desenvolver algo novo. Com a identificação projetiva busca se provar que alguns aspectos, geralmente elementos reprimidos e não aceitos como próprios, pertencem ao parceiro, fazendo dele um refém de papéis e valores atribuídos.

Alguns desses mecanismos e dos conceitos apresentados podem ser utilizados para compreender as relações que enfatizam “ficar”, a sedução, o corpo e a sexualidade, ou aquelas que privilegiam os ideais românticos. A junguiana Silvia Graubart (2006) propõe o conceito da “ética do provisório”, destacando o empobrecimento do encontro íntimo e a fuga do envolvimento afetivo. Sob a desculpa de que a liberdade e as experiências oferecem um aprendizado, os jovens realmente estão tentando evitar a frustração, o medo da rejeição e a percepção do parceiro como um ser livre para escolher, identificando-se com os estereótipos sociais do sexo sem compromisso. Segundo Sanford (2002), o modelo que descreve o “estar apaixonado” como meta afetiva reforça a busca do parceiro perfeito que alimentaria um desejo egoísta, narcisista e superficial. Nesses modelos, as projeções e os ideais não são questionados, esperando que o companheiro outorgue a satisfação almejada ou trocando-o quando ele não cumpre com a imagem idealizada.

Noely Moraes e colaboradores (2012) consideram que esses modelos espelham um narcisismo ou inflação do ego que busca preservar a persona e o amor próprio projetando conteúdos da sombra e do animus. A tendência narcisista oculta uma personalidade insegura que teme sofrer, depender, ser abandonada, perder sua imagem ideal e expor sua vulnerabilidade e fragilidade. Embora os diversos encontros podem ser experiências frutíferas que permitem aprimorar os valores pessoais, o não reconhecimento dos aspectos psíquicos rejeitados dificulta o auto-reconhecimento através do parceiro e do animus como foi descrito anteriormente. Segundo os pesquisadores junguianos, a eclosão do narcisismo, como dominante psíquico contemporâneo, seria uma etapa necessária para passar do mito do amor romântico ao mito do amor na alteridade. Para conseguir essa transição, é necessário aceitar os aspectos negligenciados e retirar as projeções.

Assim, para aquelas mulheres que valorizavam demais o amor romântico ou a expectativa, pessoal ou social, de se julgar pela capacidade de atrair e manter um parceiro,

é muito importante trabalhar o amor próprio e buscar outras áreas de realização. Na busca de outros espaços para o desenvolvimento da personalidade, Koltuv (1996) acredita que o conflito experimentado entre o amor e o poder-liberdade reflete uma ansiedade de separação. Para esta autora, as mulheres acreditam que a realização individual implica o isolamento e a perda da relação, ou que os vínculos criam uma dependência, limitando-as para participar de outras atividades. Nesses casos, Moore (1996) considera fundamental aprofundar os sentimentos de vulnerabilidade e as qualidades das mulheres.

Quando a mulher se relaciona com seu animus e separa essa experiência da relação amorosa, ela pode desenvolver uma imagem própria mais livre e independente, trabalhando os potenciais inconscientes e diferenciando aquilo que concerne ao vínculo e aquilo que concerne às fantasias pessoais e aos ideais sociais. A diferenciação se opera através da mudança dos velhos esquemas para adaptá-los às novas experiências afetivas, possibilitando uma “dialética do desejo” (YOUNG-EISENDRATH, 1998, p. 199). Nessa dialética, o parceiro e o encontro são reconhecidos como presenças singulares que permitem valorizar a solidão. O homem e a mulher precisam expressar suas emoções e necessidades, possibilitando um vínculo entre dois seres autônomos e responsáveis.

O encontro com o homem, como imagem do outro sexo e do animus, é um grande perigo e uma grande aventura que gera medo pela proximidade do oculto e das contradições, mas também a ruptura que permite o nascimento de algo novo. Para as mulheres modernas que anseiam tanto um relacionamento quanto a realização profissional existiriam dois tipos de amor: um amor próprio e um autoconhecimento que se desenvolve com a integração dos aspectos personificados pelo animus como companheiro interno, e um amor humano que cresce nos vínculos afetivos com o parceiro. Porém, a conquista de ambos os desejos tem respostas individuais e originais que incluem provas, dor e paradoxos (KOLTUV, 1996). Individuação e intimidade estão entrelaçadas, são inseparáveis, embora muitas vezes seja necessário se aprofundar mais em um desses aspectos. Como explicava Thomas Moore (1996), a dinâmica e os dramas da psique se exteriorizam no mundo, existindo uma dialética ou dança entre pessoas concretas e a vida da alma.