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Para além da aparência: conteúdo político e disputas ideológicas

2.1 As Manifestações de Junho de 2013 no Brasil

2.1.5 Para além da aparência: conteúdo político e disputas ideológicas

As Manifestações de Junho foram apresentadas como erupções sociais que brotaram “do dia para noite” nas ruas brasileiras, produto de um espontaneísmo político produzido em instrumentos de comunicação como as “redes sociais”. Para Zibechi (2013, p.16) essas “análises pecaram na generalização excessiva e, por vezes, atribuído um papel quase mágico as „redes sociais‟ para ativar milhões de pessoas” (tradução livre). Inicialmente protagonizado pelo MPL, encontraram-se nas ruas

partidos políticos como o PSOL e O PSTU e movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e o Sindicato dos Metroviários entraram como aliados nas manifestações, mas sem poder de decisão sobre questões cruciais como as datas dos ato, os trajetos das passeatas e a orientação da interlocução com o poder público. O MPL acreditava que isso ganharia autonomia em relação às demandas de partidos e outros atores políticos, as quais nem sempre coincidiam com os objetivos da campanha e com as estratégias de ação direta (KNIJNIK, LIMA E ORTELLADO, 2013, p.27).

Portanto, é fato que essas manifestações não ocorreram espontaneamente, mas tiveram em sua raiz movimentos sociais populares como protagonistas, e sindicatos de trabalhadores assim como partidos situados no campo da esquerda como colaboradores, portanto é de “impressionar a quantidade de opiniões que menosprezam ou simplesmente ignoram a atuação de militantes que não assistiram essas manifestações pela TV ou pelas „redes sociais‟, mas que estiveram nas ruas desde 2003” (BUZETTO, 2013, p.130).

O posicionamento e direcionamento ideológico das MJ refletem o variado perfil socioeconômico: diferentes juventudes, variadas classes ou frações de classe e, consequentemente, variadas posições ideológicas, nessas manifestações: “As tendências de centro e direita pegaram carona na corrente deslanchada pela nova esquerda, só que os caronistas foram tantos que, em certo momento, acabaram por mudar a direção do veiculo” (SINGER, 2013, p.33). A crescente inserção da classe média nas manifestações foi determinante para esses redirecionamentos:

O fato é que, a partir do momento em que importantes setores de classe média foram para a rua, o que havia sido um movimento da nova esquerda passou a ser um arco- íris, em que ficaram juntos desde a extrema-esquerda ate a extrema-direita. As manifestações adquirem, a partir daí um viés oposicionista que não tinha antes, tanto ao governo federal quanto aos governos estaduais e municipais (SINGER, 2013, p. 34).

Portanto, em contrapartida ao “esforço” do Governo Federal de responder às manifestações, a oposição ao governo, executando o habitual redirecionamento dos momentos de convulsão política, aproveitou a oportunidade para responsabilizar apenas o governo

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federal (petista) e afastar de si a responsabilidade em relação ao sucateamento dos serviços públicos e do relevante uso da violência policial (SILVA, 2014).

Nesse momento, a defesa por manifestações apartidárias transformou-se em gritos antipartidários. Para Fon Filho (2013, s.n),

a desconsideração do caráter de classe dos manifestantes iniciais [classe média] e mesmo avaliação equivocada das tendências de classes e setores de classes na atual conjuntura, levaram o esquerdismo a acreditar que seu inimigo principal naquele momento inicial seriam os partidos e forças que de algum modo apoiavam ou se relacionavam com o governo.

Essa foi a “deixa” necessária para que a hegemonia burguesa, utilizando principalmente sua mídia, inflasse a raiva contra os partidos (alinhados à esquerda), culminando nas cenas de agressão a manifestantes de esquerda e seus símbolos, como as realizadas por grupos de extrema-direita, como os skinheads.

Os dados sobre essas manifestações atestam que embora 61% dos brasileiros entrevistados durante as manifestações afirmassem muito interesse quando o assunto é política, 86% não são filiados a sindicatos, entidade de classe ou entidade estudantil, 89% asseguravam não se sentirem representados por político, 83% por partidos políticos e aproximadamente 30% apontaram o ambiente político84 como o principal motivo para as manifestações (IBOPE, 2013).

O que se pode inferir disso é que a perspectiva apartidária e a crítica as instituições representativas refletem a crise de representatividade que ecoa nas ações políticas desde os anos 1970, considerando que a maioria dos representantes eleitos defende interesses e causas contrárias as perspectivas das classes subalternas. No entanto, esse discurso geralmente é “tomado de assalto” pela direita, que habilmente desqualifica apenas os partidos de esquerda.

Todo esse processo evidencia que, ao contrário do que pregavam as teses neoliberais sobre a morte das ideologias, elas estão mais vivas e pulsantes do que nunca, assim como a utilização da categoria classe social nunca foi tão útil para entender a complexidade de tais processos.

Essa multiplicidade de forças políticas foi unificada na esfera da cidadania, ou seja, cidadãos como sujeitos de direitos: “Foi essa condição de identificação de ser sujeito jurídico, sujeito de direitos e deveres [...] que permitiu uma primeira articulação discursiva entre

84 Nesse item foram sistematizadas as seguintes reivindicações: Contra a corrupção/ desvios de dinheiro público;

Necessidade de mudança; Insatisfação com governantes em geral; Insatisfação com políticos em geral; Contra partidos/ sistema partidários/ brigas partidárias; Saída de Renan Calheiros;Contra o Deputado Marco Feliciano/ Contra o projeto Cura Gay; Fim da impunidade dos políticos/ fim do fórum privilegiado/ ficha limpa.

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sujeitos plurais, ideologicamente bastantes diferenciados e, às vezes, opostos” (SCHERER- WARREN, 2014, p.426).

Esse sujeito de direito ou cidadão é demasiadamente cortejado pela Mídia, principalmente quando ajuda a “construir um mundo melhor”, com ações assistencialistas ou de caridade. Essa mesma responsabilidade foi novamente dirigida aos manifestantes de Junho, como na mensagem dos cartazes repetidamente apresentados nos telejornais: “Desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil” – sinalizando o protagonismo cidadão na construção de um país melhor, justo, igual, etc.

Para além das visões ideologicamente eufóricas deste momento, cidadania e cidadão (ou sujeito de direito) devem ser apreendidos a partir de uma visão crítica que exponha sua historicidade. São características inventadas pelo Estado capitalista que, ao atribuir igualdade aos homens (desiguais) transforma os agentes econômicos em sujeitos de direito e cidadãos para o plano político (MASCARO, 2013). Isto porque, “ao instaurar de modo generalizado – „universal‟ – a forma-sujeito de direito, o novo Estado criava condições não só materiais como também ideológicas, indispensáveis à implantação de uma estrutura econômica capitalista” (SAES, 2000, p.23).

Em meio às lutas sociais, esse elemento “cidadania” dissolve a noção de classe social, mascarando seus antagonismos, “unificando” interesses do proletariado e classe média, e todas as clivagens existentes à direita ou à esquerda.

A cidadania desenhada na Modernidade era, por definição, nacional (MARSHALL, 1967). Por isso, bandeiras do Brasil, camisas verde-amarelas da seleção brasileira, o slogan “O Gigante Acordou” e o hino nacional (em alto e bom som) nas ruas ou nos estádios de futebol (onde aconteciam os jogos da Copa das Confederações), com todo seu apelo nacionalista redirecionaram os protestos, atraindo pessoas com perspectiva mais conservadora (à direita) e também as menos politizadas.

A utilização ideológica desses elementos nacionais pelas classes dominantes não é inédita. Ao trabalhar a ideologia do verdeamarelismo85, Chauí (2001) verifica que foi desenvolvido ao longo dos anos, para enfatizar a imagem de país agrário e reforçar o que tinha sobrado do sistema colonial. No entanto, transitou por vários períodos históricos, como o Império, a República Velha e, surpreendentemente, ao período da industrialização (no qual aparentemente ele não teria mais sentido). Mas, a partir de constantes readaptações

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discursivas, tomam o Estado como o agente da grandeza ou da modernização, que juntamente com Deus e a Natureza formam o sujeito da ação triplo na perspectiva verde-amarela.

O verdeamarelismo no Brasil aciona mais uma característica do Estado capitalista: a ideologia nacional. Esse tipo de ideologia está diretamente associado às relações ideológicas que legitimam o Estado burguês. Nesse sentido, o despertar desse sentimento nacional de pertencimento auxilia na desorganização do proletariado. Portanto, essa ideologia nacional seria relativamente autônoma: “É autônoma no sentido de que o igualitarismo dos nacionais configura uma esfera de igualdade formal que se opõe e [...] articula-se à dominação de classe à „escravidão assalariada‟. E relativamente autônoma porque o caráter dessa igualdade depende da relação político-ideológica entre as classes sociais” (ALMEIDA, 2014, p.85-86).

Acrescentando-se o argumento ideológico atualmente mais explorado, a corrupção86 (especificamente a dos governos de esquerda), as manifestações são moldadas em um único corpo social: “todos aqueles que querem um Brasil melhor”. Assim, reduzem-se os problemas estruturais ao nível moral, e o seu combate solucionaria todas as mazelas denunciadas nas ruas:

A vantagem da bandeira anticorrupção é que ela penetre em todas as camadas sociais, pois flui com facilidade pelo senso comum. Quem pode ser a favor da corrupção? As camadas médias tradicionais nutrem o preconceito de que a falta de instrução das camadas populares as levaria a aceitar a corrupção (o que é duvidoso) em troca de benefícios. Em todo caso, o “rouba, mas faz”, com o qual se procurou caracterizar nos anos 1940 a ação de Adhemar de Barros, na última quadra, mais ou menos sutilmente, tem servido para enquadrar o lulismo. Ao mesmo tempo, a direita estabelece uma relação entre corrupção e as carências sociais, buscando convencer os setores populares de que se ela fosse varrida para fora da casa haveria recursos para todos viverem bem. Trata-se de um argumento falacioso, mas intuitivo (SINGER, 2013, p.35).

A difusão desse discurso é habilmente utilizada pelo interesse geopolítico norte- americano, evidenciando a relação entre as manifestações e o contexto global através das investidas imperialistas. Sobre essa questão, Nassif (2016) realiza interessante análise que relaciona as Manifestações de Junho de 2013 ao processo de desestabilização do governo brasileiro (petista) – lembrando que nos últimos três anos desestruturar governos latino- americanos progressistas tem sido uma constante tática imperialista na região.

86 O Brasil ocupava a 72ª posição no ranking dos 177 países avaliados pela Transparência Internacional no ano

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Para o autor, é nesse cenário que se iniciam as duas grandes operações mundiais de combate à corrupção do período recente: a Lava Jato87, que investigava a corrupção na estatal na Petrobrás (uma das “meninas dos olhos” dos EUA); e a segunda contra a FIFA (e também CBF) – coincidentemente essas organizações coordenavam dois megaeventos esportivos que aconteceriam no Brasil nos anos de 2013 e 2014.

Nassif lembra que, ainda durante as Manifestações, observou-se uma parceria entre a rede Globo e o MPF, fazendo com que a emissora de televisão induzisse em suas reportagens e comentários que os manifestantes se posicionassem nas ruas contra a aprovação da PEC-37. O MPF é instituição fundamental na condução da Lava Jato.

Como se observa, moralismos (principalmente em relação à corrupção), elementos de cidadania e da ideologia nacional, a atuação da Mídia tradicional (e social) e a intensa violência policial são argumentos que indicam a necessidade de se observar as MJ como expressões das lutas sociais na sociedade capitalista e sua relação com o Estado. Portanto, para Viana (2013) analisar qual classe deteve a hegemonia é mais importante que a composição social. Em sua visão há uma hegemonia da classe dominante e as classes intermediárias, embora estas não tenham alcançado todos os aspectos e nem se apresente de modo consistente.