• Nenhum resultado encontrado

PARTE I – REFORMA AGRÁRIA E MEIO AMBIENTE:

3. SUSTENTABILIDADE NO MEIO RURAL

3.1 PARADIGMA DA SUSTENTABILIDADE

O despertar de uma consciência sobre as limitações no uso dos recursos naturais, que antes eram tidos como infinitos, não aconteceu por um acaso. A magnitude dos desastres ecológicos passou a ser mais percebida a partir da década de 1960. A publicação do livro

A Primavera Silenciosa, de Rachel Carson, em 1962, teve papel preponderante nesse processo

e exerceu grande impacto na opinião pública. Nesse livro, são denunciados os malefícios dos agrotóxicos na cadeia alimentar (PIRES, 2003). Os debates sobre os riscos da degradação ambiental começam, de forma esparsa, na década de 1960 e se intensificam no final da década e no início dos anos de 1970 (BRÜSEKE, 1998).

Em decorrência da intensificação dos debates sobre a problemática ambiental, em 1972, aconteceu a grande discussão internacional sobre Meio Ambiente, durante a Conferência de Estocolmo (BRÜSEKE, 1998). Esse evento, organizado pelas Nações Unidas, contou com a participação de 113 países e foi a maior reunião mundial sobre meio ambiente até então realizada. Produtos importantes saíram dessa conferência, como o Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Pnuma) e a Declaração de Estocolmo

sobre Meio Ambiente. Essa declaração continha uma lista de vinte e seis princípios que

deveriam nortear as ações de governos e sociedades nacionais, a fim de reverter o ritmo de crescimento econômico desordenado (MARTINS, 2002). Esse documento “foi o primeiro grande passo dado, em nível internacional, para a tutela jurídica do meio ambiente, tendo a mesma importância que a Declaração dos Direitos do Homem” (LANFREDI, 2002:71).

No mesmo ano, foi publicado o estudo Limites do Crescimento, que defendia a tese do crescimento zero com o congelamento do aumento populacional e do capital industrial, a fim de alcançar a estabilidade econômica e ecológica mundial (BRÜSEKE, 1998). Esse estudo gerou muitas controvérsias e propunha a estagnação do nível produtivo sem considerar a necessidade de mudanças nas relações de produção. Ao não propor mudanças no padrão de desenvolvimento, as ações sugeridas nesse relatório apenas poderiam retardar, mas não impedir, a possibilidade de um colapso ambiental (PIRES, 2003). Os países do Sul foram fortes críticos desse relatório, pois visualizavam em seu discurso uma tentativa dos países desenvolvidos colocarem obstáculos ao crescimento dos outros países (MOURA, 1996).

A partir da realização da Conferência de Estocolmo e das controvérsias desse relatório, aprofundaram-se as discussões sobre a necessidade de encontrar outros caminhos para o

processo vigente de desenvolvimento (PIRES, 2003). Nesse contexto, no ano seguinte, o canadense Maurice Strong usou pela primeira vez o termo ‘ecodesenvolvimento’, para caracterizar uma concepção alternativa de desenvolvimento (BRÜSEKE, 1998). Por meio desse novo conceito, preconizava-se uma gestão mais racional dos recursos naturais e buscava-se integrar o crescimento econômico à preservação ambiental. Inicialmente, esse termo foi cunhado tendo em vista os desafios suscitados pelas áreas rurais de países em desenvolvimento (VIEIRA, 1995).

A versão inicial desse conceito foi reelaborada por Ignacy Sachs18. Em sua nova versão, o termo ecodesenvolvimento passa a ser aplicável não só a áreas rurais, como também urbanas. O conceito passa a integrar uma visão de planejamento participativo, adaptado a contextos socioculturais e ambientais específicos. A diretriz fundamental é buscar a harmonia das iniciativas socioeconômicas, da cultura política democrático-participativa, da distribuição eqüitativa dos bens materiais e da gestão adequada do meio ambiente (VIEIRA, 1995). De acordo com Sachs (1984:114), a opção pelo ecodesenvolvimento convida:

[...] a que se prospectem novas modalidades de crescimento, tanto no plano das finalidades como no dos instrumentais, procurando-se aproveitar as contribuições culturais das populações interessadas e transformar em recursos úteis os elementos do seu meio ambiente. O que se pretende é uma dupla abertura do horizonte do planejador à antropologia cultural e à ecologia.

Em 1974, foi elaborada a Declaração de Cocoyok, como resultado de uma reunião da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio-Desenvolvimento e do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (Pnuma). Essa declaração levantou as seguintes hipóteses: 1) uma das causas da explosão populacional é a falta de recursos, ou seja, a pobreza contribui para o desequilíbrio demográfico; 2) a pobreza também causa degradação ambiental na África, Ásia e América Latina, pois a mesma leva à superutilização do solo e dos recursos vegetais; 3) devido ao nível exagerado de consumo, os países industrializados contribuem para os problemas dos países subdesenvolvidos. Dessa forma, não existiria apenas um mínimo de recursos necessários ao bem-estar humano, mas também um máximo (BRÜSEKE, 1998).

As posições defendidas na Declaração de Cocoyok foram aprofundadas em 1975, no relatório final de um projeto da Fundação Dag-Hammarskjöld, que contou com a participação de pesquisadores e políticos de 48 países, além da contribuição do Pnuma e de mais treze entidades da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse relatório chama a atenção para a

18

Vieira (1995) assinala que a versão inicial do conceito de ecodesenvolvimento foi trabalhado por Ignacy Sachs num texto hoje considerado como um clássico do referido autor: “Environnement et styles de développement”. Annales 3:533-570, 1974.

interligação do abuso de poder com a degradação ambiental. Além disso, destaca que o sistema colonial concentrou os melhores solos nas mãos de uma minoria social e dos colonizadores europeus, enquanto a maior parte da população nativa foi marginalizada e ficou com os solos de menor aptidão agrícola (BRÜSEKE, 1998).

Tanto o Relatório Dag-Hammarskjöld como a Declaração de Cocoyok defendiam um desenvolvimento baseado nas próprias forças (self-reliance) e exigiam mudanças nas estruturas de propriedade no campo, para que os produtores pudessem ter o controle dos meios de produção (BRÜSEKE, 1998). Ambos os documentos, embora não contenham expressamente o termo ecodesenvolvimento, de alguma forma reatualizam o modelo elaborado por Sachs e usam outras denominações como ‘um outro desenvolvimento’ ou ‘desenvolvimento endógeno’. Esses termos eram preferidos pelas organizações internacionais à época, por apresentarem “conotações supostamente menos radicais em termos ideológicos e mais coerentes relativamente a uma diretriz de experimentação politicamente cautelosa com a idéia de uma nova ordem econômica internacional” (VIEIRA, 1995:55).

Em 1983, foi instituída pelas Nações Unidas a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento com o propósito de elaborar uma “agenda global para a mudança” (CMMAD, 1988:XI). Os resultados dos trabalhos dessa Comissão foram compilados em um relatório que foi apresentado à Assembléia Geral da ONU em 1987, com o título de Nosso

Futuro Comum. O documento também ficou conhecido como Relatório de Brundtland, como

referência ao sobrenome da Presidente da Comissão Gro Harlem Brundtland.

Esse documento representou um avanço em relação à Conferência de Estocolmo, pois situou a questão ambiental num marco mais amplo das relações entre países e demonstrou a interação entre a problemática ambiental e a estrutura socioeconômica do desenvolvimento (PIRES, 2003). Em relação às discussões dos anos de 1970, em particular o Relatório Dag-

Hammarskjöld e a Declaração de Cocoyok, esse relatório apresenta um elevado grau de

realismo. Traz uma visão complexa das causas dos problemas socioeconômicos e ecológicos, destaca a interligação entre economia, tecnologia, sociedade e política, e conclama para uma nova postura ética de responsabilidade com as gerações presente e futura (BRÜSEKE, 1998).

O referido relatório tem como ponto de partida as preocupações e os desafios comuns existentes entre os países e como ponto de chegada os esforços comuns que devem ser empreendidos pelas nações. Aponta também uma série de diretrizes políticas como, por exemplo, o controle populacional, a busca da segurança alimentar, a preservação da biodiversidade e o uso de fontes renováveis de energia (MOURA, 1996).

O conceito de desenvolvimento sustentável apresentado por esse documento tornou-se popularmente conhecido e é amplamente utilizado (MOURA, 1996): “O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades” (CMMAD, 1988:46).

Embora tenha sido com o Relatório de Brundtland que a expressão “desenvolvimento sustentável” popularizou-se, Stahel (1995) afirma que esse conceito surgiu na década de 1970 e apareceu no início dos anos 1980 em relatórios da União Internacional para Conservação da Natureza. De acordo com o autor, hoje esse conceito encontra-se no centro do discurso ecológico oficial, mas falta um consenso mínimo quanto ao seu significado.

Pires (2003) assinala algumas das disputas conceituais a respeito do paradigma da sustentabilidade. Afirma que há os que pretendem torná-lo apenas um complemento ao padrão tradicional de desenvolvimento e fazem um arranjo de forma a compatibilizar a demanda ambiental e o capitalismo. Nessa visão, busca-se incorporar a temática ambiental, sem contestar o status quo, mantendo a mesma racionalidade. Por outro lado, há aqueles que buscam uma mudança mais radical, com um desenvolvimento direcionado a buscar a eqüidade social e a respeitar os limites ecossistêmicos.

Dessa forma, o desenvolvimento sustentável ora é visto como uma ruptura com o paradigma anterior, ora é visto como uma simples reforma. Independente disso, Pires (2003) destaca que é possível visualizar um avanço: o reconhecimento da noção de limite que os problemas ambientais trazem e que está presente em ambas as visões. “Embora o conteúdo possa não coincidir, quando esses atores utilizam-se do conceito de desenvolvimento sustentável, há um grau de consenso, pelo menos no plano formal, a ponto de ser difícil encontrar pessoas que se digam contrárias a ele” (PIRES, 2003:384).

Segundo Becker (1997:22), a noção de desenvolvimento sustentável abrange:

(...) uma série heteróclita de concepções e visões de mundo, sendo que a maioria daqueles que se envolve no debate em torno da questão são unânimes em concordar que a mesma representa um grande avanço no campo das concepções de desenvolvimento e nas abordagens tradicionais relativas à preservação dos recursos naturais. Nesse ‘guarda-chuva’ do desenvolvimento sustentável se abrigam desde críticos das noções de evolucionismo e modernidade a defensores de um ‘capitalismo verde’, que buscam no desenvolvimento sustentável um resgate da idéia de progresso e crença no avanço tecnológico, tendo a economia como centro-motor da reprodução das sociedades. Esse ‘guarda-chuva’ também abriga atores ‘alternativos’, que buscam ‘inventar’ um novo modelo de desenvolvimento que seja ‘socialmente justo, economicamente viável, ecologicamente

sustentável e culturalmente aceito’, recuperando técnicas, valores e

Apesar de haver todas essas diferentes visões a respeito do desenvolvimento sustentável, Stahel (1995) destaca que a crise ecológica é resultado do caráter insustentável do capitalismo. Esse sistema se caracteriza por estar focado na racionalidade econômica, em detrimento de outras racionalidades, apoiando-se em estratégias que conduzem à criação contínua de necessidades, para que não cesse o processo de acumulação. De acordo com o autor, a busca da sustentabilidade exige que se faça a discussão dos fundamentos materiais, institucionais e culturais de nossa sociedade. Sem haver uma reflexão e uma contestação das contradições do atual sistema econômico, o desenvolvimento sustentável “corre o risco de tornar-se um conceito vazio, servindo apenas para dar uma nova legitimidade para a expansão insustentável do capitalismo” (STAHEL, 1995:104). Com preocupação semelhante, Moura (1996:21) afirma:

Desenvolvimento Sustentável é, de fato, uma declaração de bom senso que diz ‘faça a coisa certa’ – já que assim não é possível continuar. Mas, a questão é que a ‘coisa certa’ para mantermos a nós mesmos e o nosso ambiente saudáveis, varia enormemente de acordo com o modo de pensar de cada indivíduo. Se não soubermos como tornar a vida sustentável, concretamente, continuaremos a fazer apenas um uso retórico do termo. Entretanto, este uso não é apenas inócuo: ele pode ser enganoso e mesmo perigoso por levar a crer que algo vem sendo feito enquanto, sem que se perceba, as coisas caminham em direção oposta.

Para Sachs (2004), o desenvolvimento sustentável obedece a um imperativo ético com as gerações presentes e futuras. Exige soluções que considerem não somente à viabilidade econômica, mas também os critérios sociais e ambientais. Em sua opinião, alternativas que não levam em conta esses três elementos não podem ser chamadas de desenvolvimento. Para tanto, o autor destaca cinco pilares para o desenvolvimento sustentável: 1) social: necessário

em virtude da situação de “disrupção social” existente em vários lugares do planeta; 2) ambiental: fundamental por ser o sistema de sustentação da vida; 3) territorial: relativo à

distribuição espacial dos recursos, das pessoas e das atividades humanas; 4) econômico: referente à necessidade de viabilidade econômica; 5) político: tendo a governança democrática como valor fundador.

O conceito de sustentabilidade relaciona-se à idéia de manutenção do sistema de suporte da vida. Pressupõe um comportamento que busca obedecer às leis da natureza (CAVALCANTI, 1998). Entretanto, o desenvolvimento sustentável não pode ser encarado como uma fórmula pronta para ser aplicada pela sociedade ou pelo governo. A sua utilidade, enquanto um conceito que trouxe avanços importantes, aumentará, na medida em que o

mesmo se tornar gradativamente parte da visão de mundo de um número cada vez maior de pessoas (MOURA, 1996).

Segundo Becker (1997:25-26), não há um caminho único para o alcance da sustentabilidade:

O caminho que me parece ideal a ser seguido é aquele em que as necessidades dos grupos sociais possam ser atendidas a partir da gestão democrática da diversidade, nunca perdendo de vista o conjunto da sociedade. A direção, pois, do desenvolvimento sustentável deixa de ser aquela linear, única, que assumiu o desenvolvimento dominante até nossos dias; não mais a marcha de todos numa só direção, mas o reconhecimento e a articulação de diferentes formas de organização e demandas como base, sustentáculo a uma verdadeira sustentabilidade. O ‘modelo’ de desenvolvimento buscado seria então um modelo rico em alternativas, capaz de enfrentar com novas soluções a crise social e ambiental. É preciso conceber um desenvolvimento que tenha nas prioridades sociais sua razão- primeira, transformando, via participação política, excluídos e marginalizados em cidadãos. Esta me parece uma verdadeira chance para a reorganização conseqüente da sociedade, visando a sustentação da vida e a manutenção de sua diversidade plena.