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Capítulo 1 Educação Médica no Brasil e seus caminhos, tendências e

1.2 Paradigma Flexneriano

1.2.1. O modelo educacional americano antes do Relatório Flexner: indefinições e disputas de modelo

Até a metade do século XIX, o ensino médico nos Estados Unidos era extremamente precário e desordenado. As escolas médicas eram pequenas, mantidas por particulares, não existindo requisitos para admissão dos alunos. Os cursos eram superficiais e breves, com o patamar do grau médico consistindo de dois períodos de 16 semanas de estudos, com instruções quase inteiramente didáticas, incluindo leituras, anotações de livros- texto e a memorização forçada de inumeráveis dados. Não se desenvolviam trabalhos

11 A influência do modelo de formação médica derivado desse Relatório, que levou à formulação do adjetivo

“flexneriano”, como definidor do tipo de ensino médico produzido no Brasil, é significativa e muito ampla, centralizando as discussões posteriores a ele, em tentativas de sua reforma ou transformação, que devemos discuti-lo com maior profundidade neste capítulo. Em verdade, o paradigma flexneriano é a grande referência da formação médica brasileira, perpassando o debate contemporâneo, tanto no sentido de sua afirmação e legitimação, como da sua crítica, em busca de rupturas e redefinições.

laboratoriais e/ou clínicos e as escolas médicas eram isoladas, sem filiação a universidades, sendo que nenhuma dessas faculdades estava envolvida em atividades de pesquisa.

As mudanças nesse modo de ensino começaram com o nascimento da medicina experimental na Europa e com a migração de médicos norte-americanos recém-graduados para a França e a Alemanha, visando a aquisição dos conhecimentos científicos mais recentes, que acabaram absorvendo e valorizando a compreensão da técnica e da metodologia científica.

Esse processo de reoxigenação culminou com a fundação da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, que se tornou imediatamente o modelo pelo qual as outras escolas médicas eram medidas. Nela, requeria-se diploma de ensino médio para admissão, foi adotado um currículo de quatro anos, as turmas eram pequenas, os estudantes eram frequentemente testados e o laboratório era o instrumento primário de ensino. E, neste contexto, pela primeira vez, a pesquisa e o ensino médico faziam parte de uma destacada faculdade de medicina, caracterizando uma revolução nas propostas e métodos da educação médica (LUDMERER, 1996).

Havia uma variedade de modelos de educação médica em acirrada competição, cada qual com teses e defensores responsáveis. Os sistemas de ensino da medicina, na época, compreendiam, em geral, três modalidades: um aprendizado quase artesanal, no qual os estudantes recebiam ensinamentos diretamente de um profissional mais prático e experiente; um sistema de escolas privadas, onde os alunos seguiam cursos de leituras com médicos, geralmente proprietários dessas organizações; e um sistema universitário, em que os estudantes recebiam um misto de aulas e treinamento clínico em escolas e hospitais ligados a universidades; essas escolas médicas ensinavam diversos tipos de medicina: científica, osteopática, homeopática, quiroprática, eclética, fisiomédica, botânica e thomsoniana. Os estudantes mais ricos, além disso, suplementavam sua formação médica com estágios clínicos e laboratoriais em hospitais e universidades da Europa, principalmente na Inglaterra, Escócia, França e Alemanha (BECK, 2004). Este foi o contexto em que surgiu o Relatório Flexner (1910/2009).

Abraham Flexner (1866-1959), que não era médico e, sim, um educador, com trabalhos publicados sobre o ensino superior americano, foi convidado pela “Fundação

Carnegie para o Desenvolvimento do Ensino” para conduzir uma avaliação das escolas médicas na América do Norte.

Ele o fez visitando pessoalmente todas as 155 escolas médicas existentes nos Estados Unidos e Canadá, em uma viagem de estudos, realizada entre novembro de 1908 e dezembro de 1909, que durou cento e oitenta dias. Seus métodos de avaliação e a curta duração das visitas a cada escola são atualmente criticados (HIATT, 1999), mas seu relatório, publicado em 1910, dirigido primariamente ao público, mudou a face da educação médica. Incide seu olhar crítico no cenário da formação médica americana no limiar do século XX, formulando duras críticas à mediocridade da maioria das escolas médicas, aos currículos inadequados e à abordagem não-científica da preparação para a profissão.

Flexner recomendou uma drástica redução no número de escolas nos Estados Unidos e Canadá, de 155 para 31, propugnando que a grande maioria das instituições existentes deveria ser eliminada ou consolidada em unidades mais fortes. Todas as escolas sobreviventes deveriam ser de um único tipo: escolas ligadas a universidades e comprometidas com pesquisa médica e excelência acadêmica (HIATT & STOCKTON, 2003).

Em sua visão institucional, definiu as escolas médicas como um monopólio público, isto é, como corporações de serviço público a serem desenvolvidas em benefício da sociedade, não admitindo que elas fossem tratadas como negócios privados operados para o lucro de seus proprietários.

Com a publicação, em 1910, do “Relatório Flexner”, na verdade um estudo denominado “Medical Education in the United States and Canada” (FLEXNER, 1910/2009), Abraham Flexner assumiu o papel do mais proeminente educador medico americano e tornou- se o árbitro inquestionável da reforma educacional na América, ajudando a criar um sistema que ainda hoje é associado ao seu nome.

1.2.2. Bases Teóricas: princípios norteadores, delineamentos fundamentais e críticas O paradigma flexneriano, baseado na medicina experimental alemã (AMORIM, 2009), defende a relevância da excelência médica e a especialização. Funda-se nos delineamentos circunscritos no Relatório Flexner, consubstanciando uma concepção de

educação médica assentada na prática do método científico, com investimento preponderante do tempo dos estudantes em laboratórios e em hospitais. O relatório explicita com clareza:

No aspecto pedagógico, a medicina moderna, como todo o ensino científico, é caracterizado pela atividade. O Estudante não apenas observa, ouve, memoriza; ele faz. (FLEXNER, 1910/2009, p. 53)

Neste sentido, o modelo de educação médica flexneriano privilegia a pesquisa como dimensão básica na formação do médico. Para ele, os melhores professores eram aqueles engajados na pesquisa. Assim, sua escola médica ideal tinha de fazer parte de uma universidade forte, com um grande grupo de professores em tempo integral, distribuídos em departamentos clínicos e científicos.

Segundo Kenneth M. Ludmerer12 (LUDMERER, 2010), os principais componentes da visão educacional de Flexner, demarcados em seu Relatório, podem ser resumidos em determinados pontos essenciais: a) Positivismo Médico: Flexner descrevia a medicina como uma disciplina experimental, governada pelas leis da biologia geral; b) métodos rigorosos de seleção dos candidatos às escolas médicas; c) Método Científico: para Flexner, o diagnóstico clínico era equivalente à hipótese dos cientistas e ambos - diagnóstico e hipótese - necessitavam ser submetidos ao teste de um experimento; d) aprender na prática: na ótica flexneriana, só havia um método confiável para os estudantes aprenderem a realidade médica e o método científico de pensar - investir muito mais de seu tempo no laboratório e na clínica do que nas salas de aula; e) Pesquisa Original: na visão de Flexner, essa era a atividade básica da escola médica, concebendo a pesquisa como uma atividade crítica, não apenas pelos novos conhecimentos que ela poderia produzir, mas também pelo estimulo, pela excitação e pelo rigor critico que acrescentaria ao ensino.

Refletindo sobre as proposições e delineamentos flexnerianos em cotejo com as abordagens do ensino médico americano, constata-se que o Relatório Flexner refletiu idéias já vigentes nos meios acadêmicos de como os médicos deviam ser formados. No entanto, ele levou as preocupações sobre a educação médica para a atenção do público em geral, preocupações essas estavam restritas apenas ao interior da profissão médica. Em outras palavras, Flexner e seu relatório tornaram públicas as questões-chave da educação médica no

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Kenneth M. Ludmerer (1947), professor de história e bioestatística na Universidade de Washington, é autor de dois dos mais influentes e premiados livros sobre a história da educação médica nos Estados Unidos: “Learning to Heal: The Development of American Medical Education” (The Johns Hopkins University Press, 1996) e “Time to Heal: American Medical Education from the Turn of the Century to the Era of Managed Care” (Oxford University Press, 2005) – ambos ainda não traduzidos para o português.

início do século e no contexto americano. E mais, Flexner viabilizou uma dimensão inédita no âmbito da formação profissional em medicina: relacionar a discussão da educação médica com a discussão da educação pública.

Flexner, que estudou filosofia e psicologia, tinha familiaridade com a obra de John Dewey (1859-1952) e suas idéias no campo da educação. Assim, compreendeu que Dewey estava defendendo para o ensino elementar a mesma abordagem que os educadores médicos estavam tentando levar para o ensino da Medicina e, quando descreveu os modernos princípios do ensino médico, citou Dewey como sua principal influência. Em verdade, como estudioso dos processos educativos, percebeu que a educação pragmática defendida por Dewey envolvia conceitos que podiam ser generalizados para todos os níveis educacionais, inclusive o ensino médico (LUDMERER, 2010).

A influência do Relatório Flexner na medicina americana foi avassaladora, transformando completamente o cenário da educação médica neste país e produzindo influências profundas e duradouras nos sistemas de ensino médico em todo o mundo. Entre essas modificações positivas, encontramos o estabelecimento da passagem de tempo parcial para o de tempo integral na jornada de trabalho dos professores, que constitui uma marca histórica na moderna escola médica norte-americana (AMORIM, 2009).

No entanto, a análise crítica do relatório e de suas conseqüências aponta para o desenvolvimento de vários problemas surgidos a partir das recomendações flexnerianas.

Uma das principais críticas ao Relatório Flexner centra-se em seus aspectos elitistas e preconceituosos, responsabilizando-o por efeitos devastadores sobre as escolas médicas para negros (SAVITT, 2006)13 e sobre as escolas médicas de base alternativa.

O Relatório, entre outros pontos, anunciava a existência das escolas médicas negras que formavam médicos negros, até então um assunto pouco tratado oficialmente pelas organizações médicas e educacionais americanas, e refletia uma visão negativa sobre a educação médica negra, que a Associação Médica Americana (AMA) aceitou prontamente e aplicou em suas formulações de política educacional.

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Abraham Flexner and the Black Medical Schools”, publicado inicialmente em: Barzansky B.; Gevitz, N. (org). “Beyond Flexner: Medical Education in the Twentieth Century” (1992), sendo, posteriormente, republicado em livro do próprio Todd Saviit, “Race and Medicine in Nineteenthand Early-Twentieth-Century America” (2006) e em um número especial do Journal of the National Medical Association, de setembro de 2006, que é a fonte de nossas referências.

Flexner fez, também, uma opção radical pela medicina alopática, tarefa que considerava necessária para a viabilização da medicina científica, condenando definitivamente as escolas que transmitiam formas alternativas de medicina, como a Quiropraxia, a Homeopatia e a Osteopatia. Os termos do Relatório utilizados para descrever essas escolas variam de “totalmente impossíveis” e “absurdamente inadequadas” até “irremediavelmente defeituosas”. Considerou “indefensáveis” as concepções alternativas na era da nova medicina científica (FLEXNER, 1910/2009). Realmente, devido à enorme influência do Relatório Flexner, as escolas e os médicos alternativos passaram a ser vistos pelo mundo médico e, em certo grau, pelo grande público, como incompetentes ou, no pior dos casos, como fraudes.

No entanto, apesar de seu caráter elitista e cientificista e dos interesses embutidos em suas propostas, o Relatório Flexner contribuiu decisivamente para alicerçar, pelo menos, três pontos essenciais sobre a educação médica: a pouca tolerância que se deve ter com a formação deficiente dos médicos; que o ensino da Medicina deve ser visto como um bem público; e que a pesquisa científica deve, obrigatoriamente, fazer parte da estrutura organizacional dos centros de formação médica.

O modelo flexneriano sofre, atualmente, duros ataques, sendo rotulado como o principal responsável pela consolidação de um modelo de formação de médicos que nunca conseguiu atender às necessidades de saúde das sociedades onde foi implantado (PAGLIOSA & DA ROS, 2008), e cognominado por alguns pesquisadores de modelo da medicina positivista, modelo unicausal ou modelo da medicina do capital (DA ROS, 2004). No entanto, Rego (2000, p.9) argumenta que:

O equívoco é deixar de compreender o momento em que esta Reforma aconteceu e as circunstâncias que a determinaram. Em meu entendimento ela foi absolutamente crucial para o desenvolvimento científico da profissão. Até então, o ensino médico era caótico, com faculdades que formavam em um ano, dois anos, que não exigiam ensino prático. Houve uma regulamentação e disciplinarização do processo de formação, já iniciadas no século passado, mas que tiveram um ápice com a publicação do Relatório Flexner em 1910.

Tomey (2002, p.160-1610), ao analisar a herança flexneriana, reflete que:

A medicina mudou e, consequentemente, a educação médica deverá adequar-se a estas mudanças; no entanto, apesar do tempo transcorrido, muitas das idéias de Flexner mantêm sua vigência e devem ser objeto de reflexão por aqueles que têm a responsabilidade de conduzir as mudanças necessárias; [...] em uma área tão dinâmica como o ensino da medicina seria

absurdo esperar que depois de transcorrido um século, as concepções deste destacado educador pudessem manter-se inalteráveis; porém é justo reconhecer suas contribuições, sua influência e, até certo ponto, a atualidade de suas idéias.

Na sua época, o modelo educacional postulado por Flexner, centrado na busca da excelência acadêmica, representou uma ruptura com as práticas arcaicas e tradicionais hegemônicas nas universidades e escolas médicas nos Estados Unidos. No entanto, esse modelo, que desafiou práticas conservadoras do seu tempo e defendeu mudanças que introduziram concepções renovadas na educação americana, tornou-se, com o tempo – o que é historicamente compreensível -, um símbolo da tradição do sistema de educação médica, contra o qual se batem, hoje, os novos reformadores do ensino médico.

Em 2010, a mesma entidade (Fundação Carnegie para o Desenvolvimento do Ensino) responsável pelo Relatório Flexner, patrocinou outro amplo estudo sobre a educação médica americana (COORKE, IRBY & O’BRIEN, 2010), com o objetivo de discutir uma nova crise do sistema de formação médica, causada fundamentalmente pela expansão vertiginosa do conhecimento e da tecnologia nas ciências biomédicas e pelo aumento exponencial da demanda por assistência médica. No entanto, a impressão da leitura do trabalho é que, apesar de apresentar uma análise crítica e profunda da realidade do ensino médico nos Estados Unidos e da necessidade de novos currículos, abordagens pedagógicas e formas de avaliação baseados nos conhecimentos contemporâneos sobre aprendizagem e desenvolvimento individual, ao contrário do Relatório Flexner, não propõe um modelo concreto de mudanças, acenando com propostas amplas (padronização dos resultados do ensino e individualização dos processos de aprendizagem; integração do conhecimento formal e da experiência clínica; desenvolvimento de hábitos de pesquisa e inovação; foco na formação da identidade profissional), mas sem a cuidadosa operacionalização que se encontra no estudo original.

1.2.3. A formação médica brasileira sob a inspiração do modelo flexneriano: redefinições em meio a reformas educacionais

O Brasil adentrou o século XX com três faculdades de medicina, de cunho federal: a da Bahia e a do Rio de Janeiro, criadas no inicio do século XIX, e a do Rio Grande do Sul, no final do século XIX.

No contexto das duas primeiras décadas do século XX, as escolas médicas então existentes no país, seguiam o modelo francês, fundamentado na clínica, sem ênfase na pesquisa, nos exames pré-clinicos e na prevenção. A escola estadual de São Paulo, instituída em 1913, que estava a iniciar suas atividades acadêmicas, apresentava-se como a melhor alternativa para inovações na educação médica, em consonância com as tendências em curso nos Estados Unidos, no âmbito dos delineamentos do Relatório Flexner.

Desse modo, a Fundação Rockfeller14 que, no cenário norte-americano, apoiava financeiramente a implantação do paradigma flexneriano, quando da visita de sua comissão ao Brasil, em 1915, escolheu a escola estadual de São Paulo – hoje, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) - para implantar, com seu respaldo financeiro, o referido paradigma de educação médica (MARINHO, 2001). Esse apoio da Fundação Rockfeller foi fundamental para o desenvolvimento da Faculdade de Medicina da USP, que, na primeira metade do século XX, alcançou grande reconhecimento institucional, tornando-se referência mundial.

Assim, em meio às reformas educacionais desenvolvidas na primeira metade do século XX, o paradigma flexneriano tornou-se a principal referência da educação médica brasileira nos seus processos de estruturação e expansão. Uma das concepções básicas desse modelo era de que a doença constituía um processo individual, natural e biológico. Em coerência com tal concepção, o paradigma flexneriano propunha a constituição dos cursos de medicina em dois ciclos: o básico e o profissionalizante, voltados, prioritariamente, para o estudo de sistemas e órgãos, por disciplinas, segundo especialidades, ministradas de forma independente. O referido modelo definia os hospitais universitários como os locais estratégicos e de excelência para a implantação do binômio ensino-pesquisa.

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A Fundação Rockfeller, existente oficialmente desde 1913, teve como sua primeira grande ação destinar recursos para a criação da Universidade de Chicago, mantendo durante trinta anos o seu financiamento. Patrocinou ainda várias ações isoladas, como pesquisas médicas e grandes programas de saúde pública, área a que seu nome foi fundamentalmente associado.

Inicialmente, as ações desta fundação eram restritas aos Estados Unidos, mas, posteriormente, os seus especialistas, que combatiam endemias neste país, perceberam que não existiam fronteiras para as doenças, preconizando, então, ações conjuntas em todo o continente americano. Essas ações foram coordenadas por comissões que visitavam outros países para identificar instituições que pudessem ser apoiadas com os recursos financeiros da fundação, montando grupos de pesquisa que atuassem nas áreas que eles julgassem prioritárias. Uma dessas comissões chegou ao Brasil em 1915.

As ações da Fundação Rockfeller no Brasil, principalmente na Universidade de São Paulo, são detalhadas no livro da pesquisadora Maria Gabriela Marinho (MARINHO, 2001), onde são descritas as atividades da Fundação e sua filantropia científica (expressão da autora) junto à atual Faculdade de Medicina da USP, recém instalada.

Um dos problemas da adoção desse modelo, além dos decorrentes da forma de atuação da medicina, foi o da especialização crescente. Em nossa estrutura médica, baseada no sistema americano, que se caracteriza por um sistema privado altamente competitivo, os pacientes buscam os especialistas diretamente, o que acabou conduzindo ao abandono do interesse pela formação generalista. Isso porque, na constatação de Edler e Fonseca (2006, p.22):

[...] os especialistas recebem maior remuneração e prestígio, alcançam os lugares mais proeminentes na hierarquia profissional e possuem, geralmente, maior liderança política; [...] os especialistas controlam o acesso e limitam a oferta de profissionais.

A partir da década de 1950, os debates sobre a formação médica, com questionamentos sobre o conteúdo curricular e os métodos de ensino, passaram a contar com novos parceiros, além das entidades nacionais e das escolas médicas: os organismos internacionais, como a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), as fundações americanas Rockfeller e Kellogg, a Federação Pan-Americana de Associações de Faculdades de Medicina (FEPAFEM), que criticam a separação entre medicina curativa e preventiva, lançam as bases de uma “medicina integral”, compreendo os aspectos preventivos e sociais, e estimulam a criação de departamentos de medicina preventiva nas escolas médicas latino- americanas.

Em 1971, tendo em vista a preocupação crescente com os rumos da educação médica brasileira, foi criada, pelo Ministério de Educação e Cultura, a Comissão do Ensino Médico, com a finalidade de avaliar a situação das escolas médicas no país. Essa comissão, que visitou, até 1976, 75 das 76 dessas escolas, apontou em seus relatórios graves problemas, como a escassa experiência dos professores no campo da pesquisa, falta de infra-estrutura acadêmica, carências nas atividades práticas dos alunos, tanto na fase clínica como no internato, que tornavam os cursos eminentemente teóricos.

No entanto, embora dispusesse desses levantamentos profundos da situação das escolas médicas brasileiras, o governo João Figueredo decidiu não utilizá-los, por interesses alheios à educação médica, privilegiando um modelo de escassa participação dos professores e alunos nas universidades, com a nomeação dos dirigentes das instituições de ensino superior e a reorganização do MEC.

Essa experiência frustrante é descrita por Alice Reis Rosa, que juntamente com Clementino Fraga Filho, foi uma das responsáveis pela Comissão do Ensino Médico:

Em ‘As Horas Nuas’, Lygia Fagundes Telles nos lembra o que vamos perdendo ao longo da vida. Primeiro, a inocência, tanto fervor. Depois, a confiança e a esperança. Nesta Comissão, perdi, de uma só vez, a inocência, a confiança, a esperança no ensino médico no País. Inimaginável, para mim,