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Relação teoria-prática na Educação Médica na UFMA

Capítulo 4 A Educação Médica na UFMA em meio à disputa

4.2 Relação teoria-prática na Educação Médica na UFMA

Nas construções curriculares inspiradas em diferentes perspectivas educacionais, a questão da relação teoria-prática sempre se constituiu em um dilema a ser enfrentado e trabalhado em diversos contextos profissionais. Na Educação Médica, especificamente, esta relação entre bases teóricas e exercício da prática sempre esteve no foco da crítica. É recorrente a discussão sobre o distanciamento entre a formação teórica e a atuação médica.

A nova proposta curricular - que surge em resposta a uma exigência estratégica da Reforma Sanitária, encarnada no SUS - funda-se na busca de aproximação entre a teoria e a prática, propugnando que os estudos teóricos e a atuação prática caminhem juntos, direcionados para a saúde da maioria da população. É a ressignificação da dimensão pública da Saúde.

No entanto, a crítica da dicotomia teoria/prática perpassa a implementação do novo currículo na experiência do curso de Medicina da UFMA. No interior dos depoimentos de um expressivo segmento de estudantes é lugar-comum a ênfase na distância entre as concepções norteadoras e a prática curricular. Senão, vejamos:

A proposta de mudança é boa, mas a implantação tem sido insatisfatória, gerando desorganização e descontentamento dos alunos. (q.42)

A idéia do novo PPP é muito boa, mas ainda não pode ser completamente aplicada na UFMA, pois a universidade não oferece suporte para esse novo projeto. (q.44)

Como estudante do novo PPP, percebo que as metas e os objetivos do projeto são bons, mas muitos ainda não saíram do papel e ainda não existe uma infra-estrutura adequada para atender às necessidades do novo currículo. (q.33)

É uma ótima teoria, que precisa ser trabalhada e cumprida, principalmente em uma faculdade com poucos recursos como a UFMA. (q.17)

O novo PPP é uma opção de currículo para formação médica, desde que bem implementado. Em nossa universidade, infelizmente, isso ainda não é uma realidade. (q.56)

O PPP do curso de Medicina da UFMA é perfeito no papel, mas quando vai para a prática é um desastre. (q.64)

As falas estudantis incidem no reconhecimento da pertinência e qualidade acadêmica da nova proposta curricular, mas criticam a prática empregada em sua implantação, que parece não materializar os princípios, diretrizes e encaminhamentos constitutivos do projeto. E, em suas críticas, atribuem essa dicotomia marcante na experiência do novo currículo a dimensões estruturais da UFMA.

4.2.1. Paradigmas em disputa

Seguindo a tendência dominante nas redefinições curriculares nacionais, os novos projetos pedagógicos dos cursos de Medicina no Brasil assumem como vetor de orientação o paradigma das competências, no sentido da aquisição de habilidades, de uma formação médica que transforme em posturas e atitudes os conhecimentos assimilados e incorporados pelos estudantes.

Assim, no contexto da Educação Médica brasileira, instaura-se uma disputa de paradigmas, formulada, de forma dicotômica, nos seguintes termos: formação cientificista e especializada versus pedagogia das competências e do aprender a fazer. Nessa perspectiva, o currículo orientado para o desenvolvimento das competências profissionais passa a ocupar o centro da educação médica, provocando acirradas polêmicas.

Na Universidade Federal do Maranhão, tardiamente, procura-se implantar, em consonância com os ditames nacionais, um currículo fundado nesta Pedagogia das Competências. No entanto, pela predominância de uma ótica pragmática e de urgência, pouco se discutiu sobre os sentidos e significados de tal pedagogia. Tenta-se instaurar esta lógica educativa sem a necessária e indispensável reflexão sobre ela.

Ao incidir o olhar na realidade estudantil, percebe-se uma debilidade de conhecimento e, mesmo, de informação básica sobre a Pedagogia das Competências. Quando indagados sobre a questão do “currículo do curso orientado para o desenvolvimento de competências profissionais, ou seja, o curso de medicina voltado para competências e habilidades pré-determinadas a serem adquiridas no final do curso pelos alunos”, a resposta revela o seguinte quadro: 53% diz concordar inteiramente com esta proposição e 31% declara

concordar parcialmente, enquanto que apenas 4% afirma discordar parcialmente e ninguém discorda inteiramente, sendo 11% o percentual dos que se abstém (figura 01).

Figura 1 – Currículo orientado para desenvolvimento de competências profissionais

Fonte: Dados coletados pelo pesquisador

Legendas: CI: concordo inteiramente; CP: concordo parcialmente; NC, ND: não concordo, nem discordo; DPAR: discordo parcialmente; DIN: discordo inteiramente

Quando se articula os que concordam inteira e parcialmente com esta diretriz, tem-se o expressivo contingente de 84%. E, considerando os que dela discordam parcialmente tem-se o irrisório percentual de 4% e a constatação de nenhuma discordância total. Estes resultados tão expressivos numericamente ficam em questão quando se observa que apenas 31% dos alunos ousaram fazer comentários nesta questão referente à Pedagogia das Competências, o que permite uma reflexão: em princípio, a grande maioria concorda em que se formem profissionais competentes, o que não significa, em absoluto, compreender o significado específico do “ser competente” na pedagogia em pauta.

Dos comentários apresentados, menos de 5% revela um nível relativo de conhecimento deste paradigma, conforme as falas apresentadas:

As habilidades devem ser pré-determinadas, mas também devem ser construídas ao longo do curso pelos alunos. (q.60)

Direcionar tempo e conteúdo para aquilo que realmente é mais importante para a prática médica. (q.56)

É preciso dar atenção especial a certas habilidades para que os alunos realmente possam desenvolvê-las. (q.42)

CI CP NC, ND DPAR DIN 53% 31% 11% 4% 0% CI CP NC, ND DPAR DIN

Como um curso universitário e científico, seu objetivo principal deveria ser ampliar nossos conhecimentos científicos e não meramente nos preparar para trabalhar. (q.04)

Uma parte significativa dos comentários apresentados explicita não saber exatamente em que consiste a Pedagogia das Competências. Os depoimentos são claros:

Não entendi o que são essas competências. (q.63) Não entendi; não é assim que era para ser? (q.79)

Não tenho conhecimento dessas competências e habilidades. (q.21)

Outro conjunto de comentários perde-se em afirmativas genéricas, confusas, que não avançam no entendimento das competências, conforme fica demonstrado nas seguintes respostas:

É a lógica do curso. (q.65)

O curso tornou-se menos rígido. (q.23)

[...] permite um controle maior da formação médica e possibilita suprir carências da atenção à saúde quando finalizada a formação do profissional. (q.57)

4.2.2 Formas de encaminhamento da formação médica: integração curricular versus currículo por disciplinas

A Interdisciplinaridade é um dos fundamentos da formação médica propugnada pelo novo currículo. Constitui uma das suas questões fundantes, mas carece de melhor explicitação conceitual e metodológica nas visões de professores e alunos. De fato, a interdisciplinaridade contrapõe-se a uma das marcas, por excelência, do ensino acadêmico: a divisão do currículo em disciplinas, assumidas por especialistas que se reconhecem como os legítimos detentores do saber em cada área disciplinar.

Os estudantes, quando indagados sobre a sua concepção acerca do PPP centrado na interdisciplinaridade, revelaram um nível muito elevado de concordância com esta perspectiva curricular, conforme demonstra a figura 02:

Figura 2 – PPP centrado na interdisciplinaridade

Fonte: Dados coletados pelo pesquisador

Legendas: CI: concordo inteiramente; CP: concordo parcialmente; NC, ND: não concordo, nem discordo; DPAR: discordo parcialmente; DIN: discordo inteiramente

Com efeito, 96% dos estudantes que responderam esta questão declararam concordar inteiramente ou parcialmente com a abordagem interdisciplinar. A questão a discutir é o entendimento de interdisciplinaridade no alunado, pois muitas das respostas às questões referentes a esse conceito parecem demonstrar equívocos de compreensão:

É a lógica do médico generalista. (q.65)

Algumas disciplinas são importantes de serem estudas em conjunto, mas outras é melhor que sejam estudas à parte. (q.27)

Em comentários apresentados nas questões que tratam desta temática percebe- se, entre os estudantes, uma tendência a entender interdisciplinaridade como “trabalho em equipe multiprofissional”. Senão vejamos:

Interdisciplinaridade é a formação do médico com conhecimentos primeiramente gerais e preparação para liderar a equipe de saúde. (q.55) Importante para formar um profissional que respeite os outros profissionais e que saiba seus limites de conhecimento. (q.78)

Quanto maior a variedade de profissionais envolvidos na melhoria da qualidade de vida do paciente, melhor o resultado. (q.60)

Cabe ressalvar que um grupo dos estudantes pesquisados aponta idéias interessantes na perspectiva da compreensão da interdisciplinaridade:

CI CP NC, ND DPAR DIN 85% 9% 2% 2% 2% CI CP NC, ND DPAR DIN

Uma das grandes dificuldades do curso de Medicina é concatenar todos os conhecimentos adquiridos, para que estes possam lhes ser úteis na prática médica; o estudo interdisciplinar veio facilitar esse processo. (q.20)

O corpo humano não é separado, pelo contrário, é integrado. Fica difícil entendê-lo estudando áreas sem interligação. (q.21)

Nas respostas a diferentes perguntas do questionário que, de diferentes ângulos e nuances, abordam a temática em pauta, o foco da crítica estudantil não incide na proposta da interdisciplinaridade, mas na sua viabilização, que se faz comprometida no âmbito do PPP. Neste sentido, alguns depoimentos são reveladores:

Interdisciplinaridade sim, porém o PPP adotado na UFMA peca e muito nessa área. (q.63)

Por mais que se fale em interdisciplinaridade, não presencio isto na área médica; acho que é uma filosofia ainda em construção. (q.66)

Ainda é preciso mudar a mentalidade de professores e alunos para que isso comece a acontecer. (q.80)

O projeto é centrado na interdisciplinaridade, porém, na prática muitas coisas precisam ser feitas para que isso funcione de fato. (q.07)

Para que haja interdisciplinaridade, é preciso aumentar e muito a integração entre professores e departamentos. (q.42)

Nos projetos pedagógicos dos cursos médicos, a interdisciplinaridade tem sua materialização pedagógica na integração curricular que, assim, constitui um dos elementos fundantes dos novos arcabouços curriculares. Ao ser questionada acerca da opção mais indicada para uma formação profissional de qualidade, a maioria dos estudantes – mais precisamente 77% - concorda inteira ou parcialmente com a proposta da organização curricular do curso de Medicina através da articulação dos conteúdos no interior de cada período e ao longo dos diferentes períodos do curso. É o que demonstra a figura 03, a seguir:

Figura 3 – Integração Curricular na formação médica

Fonte: Dados coletados pelo pesquisador

Legendas: CI: concordo inteiramente; CP: concordo parcialmente; NC, ND: não concordo, nem discordo; DPAR: discordo parcialmente; DIN: discordo inteiramente

Em verdade, observa-se a concordância dos discentes com o princípio da integração curricular, reconhecendo a sua pertinência no encaminhamento da formação médica. No entanto, ao avaliarem especificamente a implantação do PPP, uma maioria relativamente superior – 81% - reconhece que a pretendida articulação de conteúdos dentro de cada período e entre os diferentes períodos não vem se desenvolvendo de forma satisfatória e adequada, como demonstra a figura 04:

CI CP NC, ND DPAR DIN 35% 42% 6% 8% 9% CI CP NC, ND DPAR DIN

Figura 4 – Integração Curricular na implantação do PPP

Fonte: Dados coletados pelo pesquisador

Legendas: CI: concordo inteiramente; CP: concordo parcialmente; NC, ND: não concordo, nem discordo; DPAR: discordo parcialmente; DIN: discordo inteiramente

Apreciando os resultados consubstanciados nesta figura, cabe destacar que nenhum dos alunos participantes da pesquisa analisa a integração curricular como completa e que apenas uma minoria de 15% afirma que essa integração ocorre parcialmente.

Em suas avaliações, os estudantes conseguem discernir como vantagens da integração curricular: a própria integração dos conteúdos; uma nova visão dos problemas médicos; o desenvolvimento do raciocínio; a utilização de novas metodologias; a criação dos grupos de discussão; a inserção precoce nas unidades de saúde; o aumento da prática; maior fixação dos conteúdos; maior autonomia dos alunos em seus estudos. Vejamos alguns depoimentos que qualificam esta configuração de vantagens:

A integração dos conteúdos nos dá a oportunidade de estudar o mesmo assunto em disciplinas diferentes, sob pontos de vista diferentes, e isso nos faz ter um olhar mais crítico acerca dos assuntos. (q.60)

A maior vantagem é o aprendizado completo de determinado assunto, ou seja, o assunto observado sobre diversos ângulos. (q.22)

Estudar os conteúdos da medicina de uma forma integrada, com certeza, constitui-se um método importante, pois existem diferentes assuntos que tem algo em comum e precisam estar relacionados, visando um método de aprendizado mais satisfatório. (q.01)

[...] permite ao estudante ter uma visão mais global da medicina. (q.81)

CI CP NC, ND DPAR DIN 0% 15% 4% 46% 35% CI CP NC, ND DPAR DIN

[...] visão geral do conteúdo a ser estudado, integra seus conhecimentos com a realidade. (q.04)

Melhor solidificação do conteúdo: aprendizado de forma mais rápida e concisa. (q.14)

Uma minoria restrita de alunos radicaliza a crítica à implantação do processo de integração curricular, declarando não ver nenhuma vantagem nesta sistemática. Nessa direção, dois depoimentos são emblemáticos:

Até agora, não houve vantagens, apenas desvantagens. (q.50)

Não vejo vantagens, pois este sistema de integração dos conteúdos não ocorreu, apesar de uma das propostas do novo currículo ser esta. (q.64)

Ao dirigir o foco avaliativo para as dificuldades a serem superadas na implantação deste sistema de integração dos conteúdos, o alunado demarca problemas de distintas ordens relacionados com professores, com a estrutura da UFMA e do próprio curso, com os cenários de prática e com a própria implantação do PPP. Vejamos depoimentos significativos, que bem qualificam este delineamento das dificuldades:

[...] muitos professores resistentes ao método e que não manifestam nenhuma vontade em conhecer e, muito menos, fazer parte dele. (q.70) Rejeição da proposta de mudança curricular por docentes que insistem nas bases do currículo passado. (q.02)

A adequação dos professores ao novo sistema é fundamental, para que os alunos não se tornem, literalmente falando, autodidatas. (q.22)

[...] resistência / desqualificação / desinteresse dos professores. (q.52)

É imprescindível que os professores saibam como funciona o PPP, muitos não sabem e não fazem questão de saber; organização e autoridade por parte da coordenação. (q.07)

A estrutura de uma universidade pública em que velhas idéias se sobressaem sobre as novas. (q. 68)

Contratação de professores comprometidos com o sistema de integração; os departamentos precisam de uma reforma institucional; o próprio curso de medicina necessita disso. (q.05)

Deficiências de estrutura física, especialmente no que tange ao laboratório morfofuncional. (q.71)

Construção de um laboratório morfofuncional e a contratação de professores generalistas que entendam o método de ensino. (q.69)

Mau planejamento das unidades modulares; processos de avaliação que não integram realmente os conteúdos vistos em um módulo. (q.56)

Em um esforço de sistematização da avaliação estudantil no tocante a esta questão básica da integração curricular, cabe sublinhar como aspectos onde as críticas são recorrentes, constituindo verdadeiros pontos de defasagem: o desempenho e o envolvimento dos professores, o processo de coordenação e organização da integração curricular, as deficiências de estrutura física, de equipamentos e de recursos tecnológicos que garantam suporte a esta pretendida integração de conteúdos.

Em verdade, a integração curricular representa um elemento novo no sistema de ensino universitário, deflagrando um processo de insegurança e incerteza nos acadêmicos de medicina que chegam à UFMA com uma representação de formação médica nos moldes tradicionais. É emblemático o depoimento de um aluno:

A integração dos conteúdos causa dúvida; dificuldade e estranheza nos alunos sobre como estudar e o nível de prioridade que deve ser dado a cada conteúdo. (q.18)