• Nenhum resultado encontrado

TRABALHAR E ESTUDAR, EIS A QUESTÃO: O QUE OS ESTUDANTES

4.2 Mobilização familiar em torno da educação e trajetória de longevidade escolar dos estudantes

4.2.2 Participação dos pais e das mães na escolarização dos filhos

Sobre a participação da família na escolarização dos filhos, verifica- se maior presença da mãe nesse processo, sendo que os estudantes An- derson e Reginaldo não foram registrados pelo pai e afirmaram que não mantiveram vínculo afetivo com eles. Segundo Anderson:

Então, é... Meu pai também, porque ele nunca me regis- trou. Tipo, minha mãe me criou sozinho, por isso tanto é que, no meu registro de identidade, só tem o nome da minha mãe. A primeira vez que eu fui conhecer ele foi quando eu tinha 14 anos, porque minha mãe me obrigou, porque eu nem fazia muita questão, assim, de conhecer ele. Então, eu nunca tive contato com meu pai também (Anderson, Museologia noturno, 5º período).

Reginaldo também falou da ausência do pai, que constituiu nova família quando o estudante ainda era menor, e teve seis filhas neste se- gundo relacionamento. Reginaldo pontuou que, após o falecimento do pai, teve um maior contato com essas irmãs:

Olha, não! Sempre sabendo assim, tivemos uma relação bem estremecida quando menor porque ele constituiu outra família, então teve um afastamento natural, né? Aí, depois de uma certa idade, com 15 anos, que eu consegui ter um envolvimento a mais com as minhas irmãs. Que lá eu só tenho irmãs, por parte dele são seis irmãs! Seis irmãs! Então que aí nós conseguimos, ter um diálogo, nos conversamos, ai que nós... Com o falecimento dele, eu acho que nós aproximamos mais ainda. Tem uma re- lação hoje boa, tranquila (Reginaldo, Estatística noturno, trancou o 5º período).

Além da ausência do pai na família, Anderson destacou um baixo envolvimento da mãe nas questões relativas à sua educação, e acredita que tal situação se deve aos problemas de saúde vivenciados por ela, desde que ele era criança:

Minha mãe nunca foi... Se não fosse por mim querer estu- dar, ela já ia, nunca ia se importar muito com isso. Por que, né? Eu entendo ela. Porque é muito... Ela sempre teve esse problema com essa doença dela, de depressão, então..., aí ela nunca teve muita preocupação com outras coisas assim. Então é por isso que eu falei que, desde quando eu pedi pra... Por isso que eu lembro do Gomes Freire. Foi quando eu decidi que eu queria voltar a estudar e não parar mais. Aí eu pedi pra ela me matricular lá, aí eu ia estudando por conta própria (Anderson, Museologia noturno, 5º período).

Fernanda teve a oportunidade de conviver com os pais na época de escolarização, mas, ao ser questionada sobre qual a participação deles na sua vida escolar, nas reuniões e nos eventos escolares, a mãe foi a pessoa mencionada por Fernanda:

Assim, minha mãe é, é eu sei que ela estudou até a 4ª série, né? Meu pai também. Só que ela sempre valorizou muito a gente estudar, sabe? É... É como eu faço hoje com os meus filhos, também, né? É que eu sempre falo com eles! Estudem agora, para não estudar igual mamãe, mais velha, né? Aquela coisa toda que a gente fala com os filhos. E eu dedico, eu me dedico muito aos estudos dos meus filhos! Então, assim, minha mãe, apesar dela não ter sido estu- dada, ela, ela sempre incentivou nossa família no estudo, sabe? (Fernanda, Pedagogia vespertino, 5º período).

Fernanda também falou do seu envolvimento na escolarização dos filhos e sempre se remeteu à mãe como pessoa que referenciou toda a atenção e o envolvimento que tem sobre os assuntos escolares de seu filho. Fernanda também destacou que a pouca escolaridade da mãe e o fato de ela trabalhar não tornavam possível o auxílio, de forma efetiva, nos deveres de casa e na resolução das dúvidas da estudante. A estudante relatou que a mãe reservava os finais de semana para olhar os cadernos dos filhos e, nas férias, os colocava para fazer cópias:

Então, assim! Na verdade, eu nunca tive ajuda, não nesse sentido, porque minha mãe trabalhava fora, né? Ela ia em tudo que tinha na escola, ela ia Dia das Mães, Dia dos Pais, nas reuniões, ela sempre foi! Eu também, a mesma coisa, mesmo eu trabalhando fora, eu deixava de fazer meu horá- rio de almoço para ir na festa das mães, dia da família, né? Reunião pra pegar nota, sempre fiz muita questão de estar presente na escola, e minha mãe era a mesma coisa! Assim, foi uma coisa que eu aprendi com ela! Ela não tinha tem- po, por exemplo, de sentar pra me ensinar a lição, mas ela sabia que eu estava, que eu tinha feito, entendeu? [...] Ela tirava final de semana pra fazer isso! Todo final de semana, ela pegava o caderno de todo mundo! Olhava se a gen- te estava com piolho, porque, naquela época, tinha muito piolho! (Fernanda, Pedagogia vespertino, 5º período).

Sobre as férias escolares, Fernanda contou:

Então! Eu assim, eu estava até comentando com minha professora de Português agora, porque ela falou: “Nossa, Fernanda, você escreve muito rápido”. Ela, eu tenho uma facilidade muito grande para escrever, né? Aí, eu falei com ela: “Eu agradeço aos castigos que minha mãe me dava nas férias!” Ela colocava a gente pra fazer cópias e, e ficava fazendo cópias mesmo. Não era aquele castigo igual é hoje que você tinha aquela liberdade: “Posso sair?” “Não!” Você não podia sair! Então, assim, eu tenho muita facilidade de escrever, por causa, eu ainda brinco, por causa dos castigos de cópias, eu sou boa para escrever agora (Fernanda, Peda- gogia vespertino, 5º período).

Fernanda também mencionou o cuidado da família em relação à compra dos materiais escolares, porém, sempre dentro das possibilida- des materiais da família:

Assim, eu acho que ela incentivava mesmo a gente es- tudar, sabe? Sempre fez questão de comprar material, mesmo com as dificuldades dela, né? Comprava as coi- sas direitinho. Eu assim, igual eu falo, eu fui uma pes- soa humilde na infância, mas nunca me faltou nada! A gente tinha coisas, é, é, em relação a alimentos, a gente sempre teve tudo. A gente era humilde porque a casa era humilde, né? Porque, na verdade, eu penso que era uma questão de padrão! Assim... Eu penso assim (Fernanda, Pedagogia vespertino, 5º período).

Essa forma peculiar das mães referenciarem os estudos mesmo no período de férias como forma de continuidade do aprendizado também foi destacada por Lahire (1997, p. 334) em sua pesquisa:

As mães ou, mais raramente, os pais cuidam da escolarida- de, controlam as tarefas, explicam quando podem, fazem repetir em voz alta as lições, compram cadernos de exercí- cios durante as férias escolares de verão para que os filhos continuem a se exercitar.

Nas considerações de Lahire, também se verifica a maior presença da mãe nas práticas de mobilização escolar dos filhos, seja na tentativa de auxiliá-los nos deveres, nas compras e no cuidado com o material escolar, seja no emprego de atividades de férias que promovessem o não rompimento do filho com a prática de estudos.

Na presente pesquisa, também foi possível verificar uma maior pre- sença das mães, em detrimento dos pais, na escolaridade dos filhos tanto nos dados dos questionários aplicados, quanto nas entrevistas realizadas.

A figura da mãe aparece, na maioria das vezes, como aquela que supervisiona e também operacionaliza a maioria das práticas de mobili- zação escolar, mediante a vigilância periódica, a transmissão de valores que afirmam a importância da escola e a organização e compra de mate- riais escolares.

Essa presença rotineira e vigilante das mães no que se refere à co- brança pelo bom comportamento na escola, pelo zelo com a higiene pessoal (como foi citado por Fernanda: “Olhar se estava com piolho”), com os uniformes e com a conservação dos cadernos, diz respeito a uma prática de atenção para com o trabalho escolar do filho, que a família, conforme aponta Portes (2000), mesmo não intencional ou racional- mente planejada, pode atuar como circunstâncias atuantes que favore- cem o prolongamento da escolarização dos filhos.

No caso da mãe de Anderson, mesmo diante da omissão no que se refere a mobilizar esforços para incentivar a permanência do filho na escola, verificam-se ações no sentido de proteção, quando deixou o filho sob os cuidados da vizinha, e não propriamente na rua, ou em casa com os irmãos mais velhos, pois o estudante mencionou em entrevista que é o filho mais novo.

Esse cuidado visando afastar o filho das más influências do bairro, e, na maioria das vezes, sob a vigilância de um responsável, também foi mencionado por Lahire (1997) que destaca o papel das mães em relação à prudência para com amizades e saídas de casa.

Ao mesmo tempo, ao estar sob os cuidados da vizinha, Anderson acabou por ser influenciado com as práticas escolares dessa família em questão, a ponto de a filha da vizinha se tornar uma referência ao longo

de grande parte da trajetória escolar de Anderson, mediante incentivos e cobranças.

A estudante Josiane, diferentemente dos outros depoentes, teve o pai presente durante sua escolarização inicial, vindo a falecer mais fu- turamente. Ela relatou que os pais sempre incentivaram sua educação e que um ou outro ia aos eventos escolares, sendo que um ficava em casa olhando os irmãos menores para o outro poder participar.

Josiane falou da atenção do pai ao viajar a trabalho e trazer matérias escolares diferenciados para os filhos:

Aí, quando meu pai saía muito, ele sempre comprava um material bonito! Eram uns cadernos bonitos tudo desenha- do! Uma mochila diferente. Era tudo bonitinho. Aí, o que acontecia? Acabava, assim, que eu ficava chateada quando eu via os materiais muito simplesinhos, sabe? do outro. Às vezes, eu pegava e dava. Quando chegava em casa, a mãe falava assim: “Ah, cadê seu lápis de cor?” Eu dei pra Fula- no, que não tinha! Mas não pode (Josiane, Serviço Social vespertino, 5º período).

Sobre seus anos iniciais de escolarização, Reginaldo mencionou que havia um intenso incentivo à sua educação por parte dos tios, o que atri- buiu ao fato de não ter o pai presente, “de não ter família”:

Porque na época também, apesar, eu acho que não tendo a família, eles exigiam muito da gente estudar! Eu acho que passou uma época, os pais da gente, os tios, incentivava muito. É, não tinha energia, a gente estudava à lamparina, de madrugada. Decorar aqueles textos de Estudos Sociais, Ciências, retomava, fazia a tabuada. Então eu tive um in- centivo grande. De 1ª a 4ª, eu tive uma evolução muito boa! Com esses esforços dos que não tinham estudado e iam cobrando (Reginaldo, Estatística noturno, trancou o 5º período).

Reginaldo mencionou as orientações que sua mãe dava no sentido de ver a escola como opção de uma situação pessoal melhor, sem, con- tudo, desprestigiar a função que a família exercia:

É, ela falava assim: “Olha, se vocês não forem pra frente, vocês vão ficar igual nós aqui!” Ela assim... ela usava, as- sim: “Nós não temos vergonha do que nós fazemos, mas se vocês quiserem almejar alguma coisa melhor, vocês vão ter que encarar os estudos! Incentivava, às vezes, e uns quando [pausa] eles aquele sentimento parece que é de familiar esse não vai, não tem jeito, esse não vai querer fazer mesmo, aí acabava deixando pra lá! Mas, às vezes, também quando ele sentia que a gente tinha interesse, eles incentivavam, tiravam aqueles horários que a gente tinha da lida, pra ajudar na lida. Você falava que tinha prova, e, então: “Não, hoje você vai estudar. Não precisa ir lá ajudar na roça não. Hoje você vai estudar” (Reginaldo, Estatística noturno, trancou o 5º período).

A postura da mãe de Reginaldo remete à prática de inculcar nos filhos uma “ordem moral doméstica”, conforme apontado por Portes (2000, p. 68) que, em sua pesquisa, constatou:

Os sujeitos investigados são estudantes que aprenderam, desde muito cedo, o valor e a importância da escola, pos- suem um comportamento escolar elogiável e uma grande disposição não apenas para as tarefas escolares cotidianas, como ainda para as tarefas domésticas e as ajudas no lar.

A trajetória escolar de Reginaldo sempre foi marcada pela presença dessa “ordem moral doméstica” que atuava no sentido de cobrar do es- tudante um bom desempenho escolar, justificado pelo fato de não ter o pai presente. Anderson se sobressaiu nos anos iniciais de escolarização de tal forma que uma professora, percebendo esse desempenho diferen- ciado, conseguiu uma vaga para ele cursar a 5ª série no colégio interno profissionalizante, em Cachoeira do Campo.

A “ordem moral doméstica” também influenciou a relação do estu- dante com o trabalho que, desde os anos iniciais, ajudava a família no trabalho rural, sendo que, nesse período, a família priorizava a escola e abstinha o estudante de ir para o trabalho na roça nos dias de provas, porém, durante o ensino fundamental e nas escolarizações posteriores, a família não mais empreendeu essa prática de liberar o estudante de horas de trabalho para estudar.

Os dados da entrevista sugerem que a relação das mães com a esco- la, com exceção da mãe de Anderson, foi marcada por um sentimento de que a escola é importante para a família e, principalmente, para o futuro dos filhos, como destacam as mães de Fernanda e Reginaldo. No caso do pai, a relação de reconhecimento da importância da escola é expressa no comportamento do pai de Josiane ao comprar materiais escolares para os filhos quando viajava a trabalho.

Também Lahire (1997, p. 334), em sua pesquisa junto às famílias, ob- servou que “Quase todos os que investigam, qualquer que seja a situação escolar da criança, têm o sentimento de que a escola é algo importante e manifestam a esperança de ver o filho ‘sair-se’ melhor do que eles”.

Esse desejo pelo prolongamento da escolarização dos filhos é cons- truído principalmente pelas poucas possibilidades escolares que esses pais tiveram ao longo de sua vida e pela presença de uma percepção da educação como meio de ascensão profissional.

4.2.3 Outras pessoas que marcaram a trajetória