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Portes (2000) utiliza a terminologia “trabalho escolar das famílias” para designar as ações que elas empreendem para viabilizar o acesso e a permanência dos estudantes na escola. Para o autor, essas ações efetuadas pelas famílias ocorrem de forma ocasional ou precariamente organizada.

Em pesquisa sobre um estudante de camadas populares matriculado no curso de Direito da UFMG, nos anos de 1933 e 1937, Portes e Sousa (2011, p. 320) revelam que o resgate das trajetórias sociais e escolares dos estudantes de camadas populares

Confirmam e contribuem para a compreensão e feitura de um painel, repleto de sentidos, sobre a escolarização de longo curso efetu¬ada por sujeitos das camadas populares e dizem respeito: a) à não linearidade das trajetórias esco- lares dos sujeitos provenientes dos meios populares; b) à inserção precoce da criança proveniente dos meios popula- res no mundo do trabalho como virtude e como castigo; c) à conciliação necessária de trabalho e estudos; d) à neces- sidade de um sobre-esforço para viver a experiência escolar de longo curso; e, por último, e) à ajuda e intervenção de

terceiros no processo de facilitação e consecução de uma trajetória de longo curso.

O estudo de Portes e Sousa (2011) baseou-se na identificação e compreensão de unidades significativas dos discursos dos familiares, os quais são específicos de cada família analisada, mas, se inter-relaciona- dos, possibilitam a construção de um “conjunto de circunstâncias atu- antes” que impactam na trajetória escolar dos estudantes de camadas populares (PORTES; SOUSA, 2011, p. 65).

Ao apresentar a funcionalidade do “conjunto de circunstâncias atu- antes”, Portes (2000, p. 65) assinala que:

Essas circunstâncias atuantes caracterizam-se por um pla- nejamento precário, por um horizonte temporal bastante curto, diante da frágil situação material da família que se desestabiliza freqüentemente frente às exigências escola- res. Essas circunstâncias se combinam entre si e só fazem sentido se inseridas “na rede de seus entrelaçamentos con- cretos” (LAHIRE, 1997, p. 72), sendo que não parecem possuir efeito importante de forma isolada. Elas atuam no decorrer da trajetória, diante das necessidades e questiona- mentos cotidianos a serem enfrentados pela família.

Em consonância com o exposto, Viana (2005), abordando a temá- tica das práticas socializadoras familiares como locus de constituição de

disposições facilitadoras de longevidade escolar em meios populares, aponta para a necessidade de aprofundamento nos estudos acerca da presença familiar na educação dos estudantes de camadas populares, pois, de acordo, com a autora:

[A] mobilização familiar escolar não constitui necessaria- mente um traço das famílias populares que têm seus filhos no Ensino Superior, defendo a tese de que existem formas específicas de presença familiar na escolarização dos filhos nos meios populares, a serem identificadas. Verticalizo na hipótese de que algumas dessas formas são produzidas nos processos socializadores familiares, potencialmente pro- dutores de disposições facilitadoras de sobrevida escolar (VIANA, 2005, p. 3).

Para Viana (2005), a mobilização familiar educacional assume uma perspectiva de historicidade em relação à própria trajetória social das famílias de camadas populares. Nesse percurso, são produzidas disposi- ções que favorecem a construção de trajetórias de longevidade escolar. Viana (2000, p. 51) assinala ainda que, em suas pesquisas,

O êxito escolar inicial – mas também os intermediários – constituíram-se como circunstâncias produtoras de senti- dos, disposições e práticas que tenderam a reforçá-lo, e se transformaram numa base importante, embora insuficien- te por si só, para a continuidade dos estudos.

Viana (2000, p. 51) também menciona “as oportunidades de uni- verso exteriores ao familiar”, associadas aos êxitos escolares parciais, como a possibilidade do contato com outras referências pessoais, como professores e outros familiares que incentivaram a continuidade dos es- tudos ou mesmo a chance de estudar em uma escola de maior prestígio social. Assim,

Essas chances/oportunidades, incertas no ponto de parti- da, tornaram-se auspiciosas no processo por terem sido al- tamente otimizadas, rentabilizadas. Nesse sentido, assumi- ram uma significativa centralidade nos destinos escolares em questão (VIANA, 2000, p. 51).

Partindo-se da constatação da impossibilidade de compreender os aspectos de longevidade escolar sem contar com a devida análise da tra- jetória escolar desde os anos iniciais da escolarização, será apresentada uma breve síntese do referencial teórico de Lahire (1997) que traz uma relevante contribuição para os estudos sobre o sucesso e o fracasso es- colar nos meios populares. Outro aspecto a ser considerado é que os autores que abordam a temática da longevidade escolar em meios po- pulares, como Portes (1993, 2001), Zago (2000), Viana (1998) e Setton (2005), trazem, em seus estudos, importantes elementos da teoria de Lahire (1997).

Com base no exposto, ressalta-se que o referencial teórico de Lahire (1997) não compõe o rol de estudos sobre longevidade escolar, confor-

me delimitado na presente investigação. Contudo, os dados apresenta- dos por esse autor sobre o “sucesso escolar improvável” no âmbito do ensino primário (considerado, no Brasil, o ensino fundamental) forne- cem subsídios para uma reflexão mais consistente acerca do investimen- to familiar na educação dos estudantes universitários provenientes de camadas populares.

Dentre as maiores contribuições da obra de Lahire (1997), está a compreensão de que existem diferentes perfis familiares que compõem as camadas populares, daí a diversificada mobilização na educação. Ou- tra contribuição do autor é a constatação de que as famílias não são omissas em relação à escolarização dos filhos (ou, pelo menos, grande parcela delas).

No desenvolver de sua obra Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável, Lahire (1997) investigou casos de sucesso e fracas-

so escolar de estudantes de camadas populares, retratando o processo de investigação de estudantes de, aproximadamente, oito anos de idade, pro- venientes das camadas populares da periferia da cidade francesa de Lyon. O autor trabalha com o argumento da necessidade de contextuali- zação dos fenômenos a serem investigados, propondo a busca pela com- preensão de diferenças secundárias nas relações intrafamiliares levando a resultados diferenciados no que tange aos desempenhos escolares dos filhos, e afirma:

A nosso ver, só podemos compreender os resultados e os comportamentos escolares da criança se reconstruirmos a rede de interdependências familiares através da qual ela constituiu seus esquemas de percepção, de julgamento, de avaliação, e a maneira pela qual estes esquemas podem “re- agir” quando “funcionam” em formas escolares de relações sociais (LAHIRE, 1997, p. 19).

Acerca da rede de interdependências familiares, destaca-se a neces- sidade de compreender os elementos sociais, como o círculo de amiza- des, a comunidade, as lideranças religiosas, entre outros, pois também influenciam a criança. A convivência permanente nesse ambiente favo- rece a criança à incorporação de disposições ou práticas pessoais que favorecem o sucesso escolar.

Simultaneamente, é importante destacar as peculiaridades das for- mas de funcionamento interno das famílias, fato que leva famílias de padrão econômico semelhante a apresentarem diferenças significativas nos resultados acerca do sucesso escolar.

Assim, o investimento familiar na educação é analisado, por Lahi- re (1997), como as diferenças secundárias dentro de perfis familiares semelhantes no que se refere à escolaridade e ocupação dos pais e, se- gundo o autor, o fracasso escolar geralmente é marcado pela ausência de referências escolares na família, levando a uma descontinuidade entre valores familiares e valores escolares. Sobre tal aspecto, Lahire (1997, p. 19) traz:

De certo modo, podemos dizer que os casos de “fracassos” escolares são casos de solidão dos alunos no universo es- colar: muito pouco daquilo que interiorizaram através da estrutura de coexistência familiar lhes possibilita enfrentar as regras do jogo escolar... Realmente, eles não possuem as disposições, os procedimentos cognitivos e comporta- mentais que lhes possibilitem responder adequadamente às exigências e injunções escolares, e estão, portanto, so- zinhos e como que alheios diante das exigências escolares.

Também para Lahire, “os conflitos educacionais dos estudantes em situação de fracasso escolar não se limitam apenas ao ambiente escolar, visto que as demandas escolares não se adéquam ao contexto familiar e, quando os alunos retornam para casa [...], trazem um problema (escolar) que a constelação de pessoas que os cerca não pode ajudá-los a resolver: carregam sozinhos, problemas insolúveis” (LAHIRE, 1997, p. 19).

A problemática da pesquisa de Lahire (1997, p. 19) leva em consi- deração o fato de que

Se a família e a escola podem ser consideradas como redes de interdependência estruturadas por formas de relações sociais específicas, então o fracasso ou o sucesso escolar podem ser apreendidos como o resultado de uma maior ou menor contradição, do grau mais ou menos elevado de dis- sonância ou de consonância das formas de relações sociais de uma rede de interdependência a outra.

Como dimensionamento de variáveis, Lahire estratificou aspectos objetivos comuns à totalidade dos perfis analisados, ou seja, baixo nível de escolaridade e renda dos familiares e, posteriormente, descreveu os demais indicadores que levaram ao sucesso escolar ou à manutenção da situação de fracasso escolar.

O autor construiu seu arcabouço teórico com base na hipótese de que existem diferenças internas na dinâmica das famílias de camadas po- pulares, as quais justificam as variações nos padrões de desenvolvimento e sucesso escolar das crianças, e questionou:

O que pode esclarecer o fato de que uma parte delas, que tem probabilidade muito grande de repetir o ano no curso primário, consegue escapar desse risco e até mesmo, em certos casos, ocupar os melhores lugares nas classificações escolares? (LAHIRE, 1997, p. 12).

Lahire (1997) pondera ainda sobre a necessidade de desapego ao racionalismo meramente estatístico, sendo imprescindível diversificar o olhar sobre o campo microssocial da análise, eximindo-se de análises puramente homogêneas ou equivalentes estatisticamente, pois:

O objeto central de nosso trabalho são os fenômenos de dissonâncias e de consonâncias entre configurações fa- miliares (relativamente homogêneas do ponto de vista de sua posição no seio do espaço social em seu conjunto) e o universo escolar que registramos através do desempenho e comportamento escolar de uma criança de cerca de oito anos de idade (LAHIRE, 1997, p. 12).

Em consonância com Lahire (1997), Portes (2000) entende que o trabalho escolar das famílias deve ser investigado com base em da- dos empíricos e considerando os significados próprios que cada família constitui em relação à escola, pois, devido à diversidade das ações em- preendidas pelas famílias de camadas populares no que tange à escolari- zação dos filhos, também se verificam múltiplos significados que podem ser ocultados dependendo do olhar que se dirige às ações de tais famílias (PORTES, 2000, p. 64-65).

Essas considerações acerca do referencial teórico de Lahire (1997) e Portes (2000, 2011) permitem refletir sobre a importância de não re- lativizar ou padronizar as análises em torno da mobilização familiar na educação dos estudantes de camadas populares.

Assim, na mesma linha de pensamento de Lahire (1997) e Portes (2000) sobre a escolarização das camadas populares, Viana (2005) des- taca a necessidade de qualificar melhor as relações das famílias de cama- das populares com a escola e problematizar a presença de certos desloca- mentos no foco de análise sobre tal tema, sendo que, em tal situação, há o entendimento da existência de um tipo particular de presença familiar na escolarização dos estudantes de camada populares.

Com base no descrito, consideramos de fundamental relevância o referencial teórico de Lahire (1997), o qual aborda o sucesso escolar nos primeiros anos de escolarização dos estudantes de camadas popu- lares, pois se verifica a impossibilidade de compreensão das trajetórias de longevidade escolar sem a devida análise do processo que antecedeu o ingresso e a permanência no ensino superior dos estudantes ouvidos nesta pesquisa.

Em se tratando de estudantes trabalhadores de camadas populares, os estudos demonstram que o percurso até a chegada à universidade é marcado pelo ingresso precoce no trabalho, por uma trajetória escolar moldada pelo imprevisto e pelo aproveitamento de oportunidades que vão surgindo ao longo da escolaridade (PORTES, 2000; ZAGO, 2000).

O ESTUDANTE TRABALHADOR