• Nenhum resultado encontrado

5.2 SOCIOLOGIA DO ACESSO À JUSTIÇA

5.2.3 A participação do Poder Judiciário

A decisão consolidada no âmbito do poder judiciário em meados de 2007, termo final da primeira fase do caso, é a sentença proferida pela 7a. Vara Federal de São Paulo e confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 3a. Região: sobre os fatos, consolida a versão de que não houve deserção, pois não havia ânimo de abandonar as forças armadas, sua saída se deu por razões de natureza política, o único caminho compatível com o exercício de suas convicções políticas e uma medida de preservação de sua vida e integridade; do ponto de vista jurídico, o reconhecimento da anistia a Carlos Lamarca, mas a restrição dos direitos decorrentes dessa condição à contagem do “tempo de afastamento do serviço ativo para efeito de cálculo de proventos da inatividade ou da pensão”(Art. 4º, da Lei 6683/79), excluído o direito às promoções “como se estivessem em serviço ativo” (Art. 4º, § 3º, da EC 26/85).

Vale ressaltar que essa decisão transitou em julgado em 2006, antes da interposição da ADPF 153 pela Ordem dos Advogados do Brasil, em 21 de outubro de 2008, e antes, também, da apresentação do Caso Gomes Lund e outros pela Comissão perante a Corte Interamericana que somente viria a ocorreu em 26 de março de 2009. E, ainda: a sentença que viria a ser mantida pelo TRF foi proferida em 1993, antes da decisão da CEMDP, momento em que oficialmente começou o desfazimento da versão oficial sobre a morte de Lamarca.

Assim, a primeira decisão judicial foi proferida em um contexto de baixo desenvolvimento da agenda política da justiça de transição no Brasil, sem amparo em nenhuma decisão administrativa anterior e com escasso marco normativo sobre a responsabilidade do Estado em relação ao legado autoritário.

Apesar do reconhecimento parcial do direito à reparação, o saldo da participação do poder judiciário na primeira etapa do caso é bastante positivo. Além do reconhecimento da anistia e de uma parcela dos direitos à reparação, a sentença do início da década de noventa (1993) mobiliza institutos que somente viriam a ser incorporados à gramática das instituições responsáveis pelas políticas justransicionais no Brasil muito tempo depois, a exemplo do: direto de resistência ante um regime repressor.

A legitimidade da resistência à ditadura somente viria a ser incorporada ao discurso institucional a partir do desenvolvimento dos trabalhos da Comissão de Anistia. Consta referência a esse instituto no Livro-relatório sobre os primeiros anos de trabalho da Comissão Especial, no

entanto, esse documento somente seria publicado no ano de 2007, ou seja, a leitura sobre o significado dos trabalhos desempenhados pela Comissão foi feita e escrita uma década depois, coincidindo, inclusive, com o ano em que o caso foi apreciado pela CA/MJ.

Assim, no início da década de noventa, a decisão judicial cumpre um papel importante no que diz respeito ao reconhecimento da trajetória de Lamarca em vida. Faz, deste modo, uma afirmação potente a partir dos institutos do direito de resistência, desobediência civil, além da articulação de liberdade e rebelião como elementos intrínsecos à dignidade humana. Isso não havia sido feito, até aquele momento, por nenhuma instituição e só viria a acontecer no âmbito da Comissão de Anistia muitos anos depois. Note-se que, na CEMDP, inclusive em razão do seu mandato legal, os conselheiros convergiam no sentido de que a sua trajetória em vida não era objeto de análise e julgamento. Ao mesmo tempo em que as narrativas oficiais do período, bem como aquela produzida pela União nesse processo, vinham em sentido contrário.

De igual modo, produz uma análise mais elaborada sobre a autonomia da vontade para tomada de decisão de deixar as Forças Armadas. Afirma expressamente que a vontade de Lamarca estava viciada e que ele agiu impulsionado pela necessidade de salvaguardar não só suas convicções políticas, mas também a sua vida e integridade. O reconhecimento do direito de resistência ante um regime opressor (inclusive, do ponto de vista legal) revela uma análise mais profunda da legalidade, retirando-a do pedestal e admitindo o uso das instituições para cometer abusos e violência.

Ao iniciar as considerações referentes ao instituto da anistia, faz duas afirmações relevantes. A magistrada assevera que a “tão esperada anistia ‘ampla, geral e irrestrita’” somente veio com a Emenda Constitucional 26/85 e indica como destinatários da anistia estabelecida pelo legislador de 1979 e o constituinte de 1985 “todos quantos estiveram em atividade política contrária ao regime militar” e como razão a impossibilidade de que essas pessoas continuassem a

ter “dificuldades de adaptação ao novo regime que já se auto denominava “democrático”.290

Para interpretar a anistia no contexto brasileiro e o caso concreto, adota o elemento político como aspecto determinante: “se torna imperioso indagar se a deserção se deu ou não por motivos políticos”. O determinante não seria, portanto, a deserção, mas indagar porque ela teria

290

“(…) já não fazia sentido que todos aqueles que, engajados na luta política, armada ou não, de combate ao regime militar, continuassem a sofrer as dificuldades de adaptação ao novo regime que já se auto denominava ‘democrático’” (p. 156, Processo 87.0010726-3).

ocorrido. Reconhece que a punição imposta a Lamarca, a partir dos regramentos militares, teve natureza política.

Assim, faz uma interpretação alinhada com aquele que seria historicamente reconhecido e reafirmado como critério determinantes na intepretação do direito de reparação pelas violações ocorridas durante a ditadura: para além da origem ou do mecanismo formal utilizado para promover a perseguição política (se ato institucional ou complementar, etc.), a sentença identifica como elemento central para solucionar o caso a existência ou não de motivação política do anistiando. Esse, portanto, foi o critério identificado como determinante para aferir se ele poderia ser beneficiário da anistia política - Lei 79 e EC 26/85. Chama atenção a centralidade da Lei 6683/79 na análise da magistrada, que, em relação ao instituto da anistia, faz uma leitura ampla e garantidora de direitos, mas pouco ou nada se utiliza da CF-88. Sobre a EC 26/85, há breves referências.

Afirma expressamente a impossibilidade de medidas que desigualem os beneficiários da anistia, afastando-se da referida tradição de seletividade quanto à aplicação do instituto. A decisão de 1993 faz uma interpretação ampliativa do instituto, registrando não identificar na coisa julgada, de qualquer espécie (civil ou penal - militar ou comum) óbice à aplicação dos efeitos das leis de anistia, afastando, assim, o principal fundamento de defesa da União: ocorrência de crime militar.

No entanto, faz interpretação restritiva no que diz respeito aos efeitos pecuniários decorrentes do reconhecimento da condição de anistiado, amparado em jurisprudência do antigo Tribunal Federal de Recursos e do Superior Tribunal de Justiça.

Segundo se extrai da sentença, esses tribunais indicavam, como obstáculo às promoções, a existência de empecilhos de ordem probatória, cuja prova era impossível. Isso revela a dificuldade do poder judiciário de dar concretude à ficção jurídica “como se na ativa estivesse” proposta pela anistia.

Se, como leva a crer a sentença, essa jurisprudência era mesmo a predominante no STJ, o judiciário, funcionou, nos primeiros anos após a edição de EC 85 e a CF-88, como limitador do direito à anistia e à reparação dela decorrentes, pois o indeferimento do direito às promoções, sob o fundamento de falta de prova, implica em verdadeira negação da ficção jurídica proposta pelas normas.

Em resumo, a sentença garantiu o direito autônomo de reconhecimento da anistia política, mas com reparação parcial. Nessa perspectiva, perpetuou a seletividade do instituto, mas em perspectiva diversa daquela defendida pela União: não quanto aos destinatários, mas sim em relação à extensão dos direitos dela decorrentes.

A biografia de José e Miranda é usada para solucionar aspecto central do processo: “Por que Lamarca abandonou o exército e passou a viver na clandestinidade?”. Segundo a juíza, o livro ajuda a desvendar a motivação de seus atos. Chama atenção que a sentença tenha se baseado na contra narrativa produzidas socialmente sobre a trajetória de Lamarca (e não na narrativa oficial) para elucidar os fatos do caso.

A narrativa oficial, por sua vez, é usada pela juíza dentro da seguinte construção: a produção de informações sobre a “caçada” a Lamarca na Bahia deu ares de notoriedade aos fatos e serviu de fundamento para reforçar o caráter político da punição imposta pelo Exército, ao mesmo tempo em que justifica a qualificação dos fatos como públicos e notórios.

A narrativa produzida pela sentença sobre o passado é inédita, enquanto pronunciamento oriundo de instituição estatal. Sobre a atitude de Carlos Lamarca, consolida a seguinte versão: “O capitão Carlos Lamarca não foi um desertor. Deixou as fileiras do Exército Nacional porque temia pela sua própria vida, já que lá não podia livremente lutar por seus ideais”. E sobre o funcionamento do Estado à época dos fatos, afirma expressamente que se tratava de um estado autoritário, usa os termos “tortura”, “repressão”, “combate à ditadura”.

Por fim, a decisão situa o juiz como um sujeito dentro da sociedade, ao qual não seria permitido ignorar a história e a situação do país. Segundo ela, o juiz não poderia ignorar o passado recente do Brasil, o período autoritário e as violações a direitos cometidas no período.

A decisão do TRF não adentra em análises tão profundas quanto faz a juíza federal,291

mas alguns aspectos da decisão merecem destaque.

Publicado em meados de 1996, já sob vigência da Constituição Federal de 1988, o acórdão, tal qual a sentença, mantém uma interpretação ampla da anistia, sem, contudo, amparar- se no texto constitucional ou fazer qualquer alusão à expansão do direito à reparação por ela promovida (especialmente no que se refere ao direito às promoções). Delimita a controvérsia “à interpretação, em face da situação fática dos autos, do sentido e alcance do disposto no art. 1, caput, da Lei 6683, de 28 de agosto de 1979”.

Sugere que a “causa formal” dos fatos, atribuída pelas autoridades públicas à época poderia não corresponder à causa real. Daí a importância de indagar a real motivação da saída de Lamarca do Exército.

Ratifica a valoração feita pela juíza federal quanto à prova dos fatos: toma como verdadeiras as versões sobre a atuação de Lamarca como opositor político produzidas por narrativas não oficiais e atribui a elas o caráter de fatos públicos e notórios, dispensada prova a respeito. Ao mesmo tempo, mantém a linha da sentença ao reconhecer que o poder judiciário cumpre um papel no sentido de “aplacar qualquer foco de ressentimentos formado em torno da figura de uma pessoa considerada vítima do regime militar instaurado em 1964”, e que incorreria em “denegação de justiça”, se podendo atuar, deixasse de fazê-lo.

A tramitação do caso na esfera administrativa traz algumas informações sobre a atuação do poder judiciário na ditadura, dignas de nota.

As comunicações sobre Lamarca pelos órgãos da repressão eram “difundidas”, nos termos usados por eles, para os próprios órgãos de segurança, mas também para o poder judiciário, tanto que foram esses órgãos que comunicaram sua morte à justiça militar.

Elementos constantes no processo da CEMDP reforçam a percepção de que havia um entrosamento e comunicação entre os órgãos da repressão e o poder judiciário. Na vasta documentação que compõe os autos consta ofício enviado pelo Juiz de Direito da Comarca de Brotas de Macaúbas-Bahia para o Coronel Titular da Delegacia Regional da Política Federal em Salvador, a respeito dos objetos que se encontravam em gruta onde haviam estado Lamarca e

Zequinha.292 Trata-se de comunicação espontânea de juiz de direito (portanto, da justiça comum,

e não militar) endereçada à Polícia Federal.

Essa comunicação reafirma a narrativa da repressão em relação a Lamarca e Zequinha, como “terroristas”, “marginais”. Os termos do ofício sugerem submissão da justiça em relação aos órgãos de segurança, na comunicação, o juiz pede “instruções” ao coronel da polícia federal sobre como proceder.

Outros termos do ofício refirmam o entrosamento entre justiça e órgãos de segurança. Nas palavras do magistrado: “resolvi então enviar dois elementos da nossa confiança, que muito cooperaram com as Tropas na procure dos terroristas. Genésio Nunes de Araújo, Carcereiro da

Cadeia Pública desta cidade, e Antônio Ferreira de Souza, cabo aposentado da Polícia Militar do Estado, cumpriram a missão”.

5.3 ANISTIA POLÍTICA E REPARAÇÃO NO CASO LAMARCA: