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5.2 SOCIOLOGIA DO ACESSO À JUSTIÇA

5.2.2 União: os maiores avanços e os maiores obstáculos

Nos espaços institucionais criados dentro do poder executivo foram alcançados os maiores avanços no que diz respeito às reivindicações da família: na Comissão Especial foi reescrita a versão oficial sobre a morte de Lamarca e reconhecida a responsabilidade do Estado por sua execução sumária. Uma década depois, no âmbito da Comissão de Anistia, “o reconhecimento que faltava”: aproximando-se do paradigma da reparação integral, a decisão foi recebida pela família como o reconhecimento da legitimidade da resistência à ditadura e acolhimento dos argumentos apresentados pelos familiares.

No entanto, a União que, de um lado, reconheceu Lamarca com anistiado político, alvo de perseguição que o compeliu a abandonar a carreira militar em 1969 e culminou com a sua execução sumária em 1971, é a mesma União Federal que, durante vinte anos, negou à família direitos em outras instâncias administrativas (Exército e Ministério da Justiça) e se opôs às mesmas reivindicações relativas à anistia política deduzidas perante o poder judiciário. Dela, portanto, partiram os maiores avanços e também os maiores obstáculos ao reconhecimento de direitos à família.

Ao longo dos anos, a União articulou os mais diversos argumentos para negar os direitos à família. São enumerados a seguir na ordem cronológica em que foram sendo apresentados: (i) genérica afirmação do Exército de falta de amparo legal para pedido de anistia; (ii) Lamarca seria um terrorista, que respondeu a processo por assalto e sequestro, portanto, estaria excluído do direito à anistia, nos termos do art. 2o., da Lei 6683/79; (iii) sua saída do Exército não se deu por crime político e sim pelo cometimento de deserção, crime militar previsto no art. 187 do CPM, não abarcado pela anistia; (iv) a deserção ocorreu em razão de suas convicções políticas, mas sua saída do Exército foi ato de vontade e não decorreu de ato institucional ou complementar, por isso, não abarcada pela anistia; (v) sua saída do Exército foi um ato de objeção de consciência, instituto que não possui guarida no ordenamento jurídico brasileiro; (vi) aos militares é vedado o

exercício de atividade política, nos termos da Constituição de 1988. Um argumento que foi repetido em diferentes ocasiões foi: Maria Pavan já recebe pensão militar na qualidade de viúva do “ex-capitão” do Exército.

Inicialmente rejeita a motivação política dos atos de Lamarca. Somente reconhece esse aspecto com o passar do tempo, diante das informações sobre o período que se avolumavam e demonstram, de maneira irrefutável, que sua saída do Exército se deu de forma planejada, quando já compunha os quadros da VPR, tendo organizado previamente a ida da família para Cuba através da organização política. No entanto, utiliza esse fundamento para argumentar que a saída do Exército teria se tratado de um ato de vontade ou, no máximo, de objeção de consciência.

A atuação da União na esfera administrativa e judicial é antagônica. Dessa forma, produziu narrativas diametralmente opostas em relação ao passado e ao instituto da anistia e dever/direito de reparação.

Na perspectiva da União, Lamarca é anistiado político, pois foi alvo de perseguição de natureza política que resultou na sua saída do exército e na sua execução sumária. Ao mesmo tempo, foi um desertor que deixou o Exército por ato de vontade e, por isso, não poderia ser anistiado.

Sobre o instituto da anistia, na seara administrativa, faz uma interpretação ampla e garantidora de direitos. Sua condição como anistiado político é afirmada no voto condutor da decisão da CEMDP e a Comissão de Anistia, anos depois, faz uma interpretação abrangente das hipóteses de perseguição, inclusive, para incluir sua esposa e filhos.

Na via judicial, por outro lado, no mesmo ano do julgamento do processo 038/96 pela Comissão Especial, a União apresenta recurso no processo 87.0010726-3, reivindicando a aplicação da exceção do art. 2º da Lei 6683/79 a Lamarca, remetendo à certidão da 2ª Auditoria Militar com lista dos processos por crimes políticos instaurados contra ele.

O amplo reconhecimento de direitos na esfera administrativa contrasta com a interpretação restritiva da Lei 6683/79, defendida nos processos judiciais. A apelação diante da sentença no processo 87.0010726-3 centra-se na exigência de que a punição de se dê por atos institucionais ou complementares.

Assim, durante muito tempo, desconsiderou, em suas alegações perante a Justiça, o fato de que normas constitucionais posteriores à primeira lei de anistia previam hipóteses mais amplas de concessão da anistia política. Com efeito, no início dos anos noventa, quando é provocada a se

manifestar sobre o impacto da promulgação da nova Constituição no caso (“especialmente, sobre o advento do art. 8o., do ADCT), a União nada acrescenta às razões da contestação inicialmente apresentada. O silêncio sobre o regime da anistia política previsto nas normas constitucionais é digno de nota.

Suas manifestações no processo judicial originário estão centradas na interpretação da Lei 6.683/79. Apesar disso, em nenhuma de suas defesas, a União aludiu à interpretação da saída de Lamarca do Exército como crime conexo aos demais crimes políticos, alvo dos processos instaurados perante a justiça militar. Esse apontamento é relevante, posto que seria um fundamento importante utilizado pela União no julgamento da ADPF 153, em que prevaleceu o entendimento de que por esse caminho os agentes do Estado estariam abarcados pela anistia.

A postura da União corrobora a tradição brasileira de seletividade em relação ao instituto da anistia no Brasil. Usa argumentos de ordem formal para negar-lhe o direito: como a “causa formal” da saída era o Termo de Deserção lavrado pelo Exército em 13 de fevereiro de 1969 não estaria enquadrado nos termos da lei ou da emenda constitucional que exigia que a pessoa tivesse sido alvo de “ato institucional, complementar ou de exceção”.

Ataca a possibilidade do reconhecimento do direito autônomo de ser reconhecido como anistiado político, fundamento dos demais direitos, deixando em segundo plano a discussão sobre a extensão da reparação decorrentes da anistia (como contagem do tempo de afastamento e promoções).

É o grau de seletividade mais acentuado: interpretação restritiva não quanto aos direitos à reparação, mas quanto àqueles que poderiam ser destinatários da anistia em si, com argumentos severamente excludentes em relação aos militares que se opuseram ao regime ditatorial.

Nesse sentido, a apelação da União interposta em 1994 invoca as vedações ao exercício de atividade política pelos militares, associada à inexistência do instituto da “objeção de consciência” no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, corrobora linha argumentativa de que aos militares é vedado ter opinião política e agir baseado nela. Se não pode exercer atividade política, não poderia opor-se ao regime.

A atuação da União na esfera administrativa e judicial somente se torna convergente a partir da contestação oferecida na ação rescisória, ajuizada por Maria Pavan para assegurar o direito às promoções. Nessa manifestação de agosto de 2007, a AGU a extinção da ação por perda de objeto, vez o direito postulado havia sido reconhecido pela Comissão de Anistia.