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2.2. DIMENSÕES DO CONTROLE SOCIAL

2.2.2. Participação política na democracia brasileira

2.2.2.1. Democratização e desigualdades econômicas

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o termo controle social passou a ser utilizado de forma mais intensa e a fazer parte do vocabulário do povo brasileiro (CALVI, 2008).

Historicamente, a partir do início da década de 80, os movimentos sociais e outras instituições da sociedade civil organizada começaram a utilizar esse termo para expressar a possibilidade de participação coletiva dos cidadãos nos momentos críticos de decisão política. Esse foi um período marcado por grandes mobilizações em prol do processo de democratização do país.

Apesar do grande apoio da população o processo de democratização se deu de forma fraca e negociada, ou seja, “pelo alto”. Manteve os traços de conservadorismo e autoritarismo inerentes à formação histórica do país, o que confirma a trajetória de um “longo amanhecer” para a democracia e o desenvolvimento do Brasil (COUTINHO, 1999; FURTADO, 1999; NOGUEIRA, 1998).

Nogueira (1998) adverte que a conciliação política realizada “pelo alto” sempre reforçou os “núcleos duros” do conservadorismo brasileiro, estabelecendo barreiras que impedem a reforma do Estado em termos de ampliação da democracia e distribuição mais igualitária dos excedentes econômicos.

Aderindo à interpretação weberiana, argumenta-se que a forma pela qual o Estado brasileiro foi historicamente criado e consolidado se deve a chamada herança do patrimonialismo4 ibérico. Utilizando as categorias weberianas de análise da dominação legítima, Raymundo Faoro (2001) identifica a existência no Brasil, ao longo de quase seis

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O patrimonialismo é um tipo puro de dominação tradicional, exercendo-se por ordenações e poderes senhoriais, em que não são nítidas as separações entre os espaços público e privado. A permanência de fortes relações com grupos preferenciais faz a administração brasileira ainda ter suas bases atreladas ao patrimonialismo. O poder do senhor patrimonial apóia-se não apenas na tradição, mas sobretudo no oferecimento de privilégios, honrarias e favoritismos a grupos de pessoas independentes do poder senhorial - o estamento burocrático (FAORO, 2001; MOTTA, 2007).

séculos – de D. João I a Getúlio Vargas, de um poder centralizador: o Estado patrimonial que serve e é servido por estruturas estamentais5.

Nas últimas décadas, foram desenvolvidas novas práticas e expectativas de modernização do Estado brasileiro, mas muitas de suas características tradicionais como o patrimonialismo ainda permanecem como alicerces do modelo de administração pública aplicado no Brasil (MOTTA, 2007; PINHO, 1998).

A formação histórica do Estado brasileiro e, por conseqüência, do modelo de administração pública singular e multifacetado aqui empregado, aliada à fragilidade da sociedade civil organizada existente no país, torna precária a participação política nos processos de deliberação pública.

O desafio de mobilização das energias presentes na sociedade civil, fora do âmbito do Estado, com a finalidade de subsidiar a ação governamental e complementar a prestação de serviços públicos requer um nível maior de amadurecimento social evidenciado no exercício da cidadania de forma coletiva e articulada.

Esse tipo de cidadania reconhece e incorpora a pluralidade das subjetividades presentes na sociedade civil e permite a participação de grupos sociais antes excluídos da vida política. Essa inclusão tem o potencial de ampliar o espaço público, onde podem surgir novos conflitos e diferenças (DAGNINO, 2004).

No entanto, a busca em incorporar o pluralismo social em múltiplas arenas enfrenta outro entrave: a desigualdade sócioeconômica. O Brasil é um país de profundas desigualdades no âmbito socioeconômico que são evidenciadas pelos altos índices de violência, criminalidade, mortalidade infantil, analfabetismo, dentre outros.

A sociedade civil no país pode ser comparada a um mosaico multifacetado, e nela existem múltiplas arenas que podem estar próximas ou afastadas do poder de decisão. E a reunião da sociedade por meio do associativismo não garante a diminuição das desigualdades socioeconômicas, bem como a participação social no processo de deliberação pública (KERSTENETZKY, 2003).

Em termos de administração pública, as desigualdades sócioeconômicas no país se acentuam devido, sobretudo, à má distribuição dos recursos que normalmente estão concentrados no poder público central.

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O estamento burocrático não está atrelado a uma classe econômica dominante visto que a transposição do Estado Português para o Brasil precede a existência de uma sociedade civil constituída, ou seja, a sociedade civil se estabelece depois da implantação do Estado Português no país (FAORO, 2001).

O debate acerca da descentralização para a ampliação da participação suscita polêmica, uma vez que se trata de um processo complexo, com múltiplas dimensões e geralmente gradual, estando sempre presente em vários campos disciplinares. Apesar das diferentes abordagens conceituais acerca da descentralização, há certo consenso em torno das idéias centrais que sustentam esse processo, tais como transferências de recursos financeiros, acesso ao poder decisório e aumento de responsabilidades e competências locais (GUIMARÃES, 2002).

Em seu aspecto político, a descentralização pode ser vista como uma estratégia para a redistribuição do poder político do nível central para os níveis periféricos, buscando fazer com que os governos possam responder localmente às demandas sociais por meio de novas formas de participação cidadã. A descentralização política é distinta da desconcentração, na qual atores locais continuam subordinados ao poder central, cabe destacar que a descentralização política se refere à transferência de poder decisório aos agentes que prestam contas às populações locais (FRITZEN; ONG, 2008).

Os defensores desse processo de distribuição de poder político percebem a descentralização como uma estratégia de democratização, pressupondo que a sociedade local terá maior possibilidade de participar ao controlar as decisões políticas em nível local do que em nível central (AGRAWAL; RIBOT, 1999).

Mas cabe destacar que nem sempre a descentralização resulta em mais eficiência ou mais democracia. A eficiência pode ser prejudicada em duas situações: quando instituições locais não têm capacidade técnica ou administrativa de deliberar ou executar efetivamente, ou quando os interesses políticos locais são caracterizados por clientelismo, corrupção ou outros padrões que fazem com que as decisões políticas não sigam as prioridades técnicas de eficiência e racionalidade. Já a democracia pode ser prejudicada quando as elites locais conseguem monopolizar os processos decisórios ou quando a sociedade local não é organizada (AGRAWAL; RIBOT, 1999; ARRETCHE, 1996; DE VRIES, 2000).

2.2.2.2. Conselho de gestão como instrumento de participação

No Brasil o controle social passou a ser exercido por meio de instrumentos de participação criados para a inclusão da sociedade civil, dentre os quais se destaca nessa pesquisa o conselho de gestão.

Um balanço da literatura realizado na área da saúde e assistência social para avaliar os conselhos de políticas públicas vinculados à gestão da saúde demonstra que existem pelo

menos quatro problemas relativos à implantação e funcionamento desses mecanismos de participação: a) tradição autoritária do Estado brasileiro; b) fragilidade da vida associativa; c) acesso e difusão às informações; e d) interferência de interesses político-partidários (DEMO, 1991, 1993; CARNEIRO, 2006; CARVALHO, 1995; COUTINHO, 2004; FUCKS; PERISSINOTTO, 2006; GOHN, 2001; LUBAMBO; TATAGIBA, 2002, 2004, 2005; SPOSATI; LOBO, 1992; TEIXEIRA, 2000).

Os conselhos de gestão são aparatos sócio-aproximadores onde a participação é institucionalizada. São mecanismos formais que asseguram o direito a sociedade civil de participar do processo de deliberação acerca das políticas públicas e do orçamento público. No entanto, enquanto instância colegiada de representação da sociedade civil tais mecanismos podem não garantir uma participação efetiva da sociedade civil.

A legitimidade da participação é uma questão central para o funcionamento dos conselhos de gestão. Vários critérios e procedimentos podem ser propostos para que a representação da sociedade civil seja legitima (COELHO, 2004): a) identificação das pessoas, grupos ou associações (stakeholders) que representem de alguma forma os interesses afetados pelas políticas a serem implementadas; b) reproduzir o perfil sócio-demográfico da população; c) representar as principais posições em disputa; d) fazer uso de princípios de ação afirmativa; ou e) oferecer incentivos estruturais capazes de fomentar a participação de grupos vulneráveis.

Ao considerar a legitimidade da representação da sociedade civil organizada, há um estudo que considera a possibilidade de seis argumentos de presunção que podem justificar essa forma representação: a) eleitoral; b) filiação, c) serviços, d) proximidade, e) identidade, e f) intermediação (LAVALLE; CASTELLO, 2008; LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006). Os argumentos são denominados de presunção porque se presume a existência de justificações para sustentar publicamente a legitimidade dos representantes da sociedade civil organizada.

Essa tipologia de argumentos de congruência está baseada em três elementos: os representados, os representantes e o lócus da representação, que juntos formam a base das relações de representação da sociedade civil (ver quadro 4).

Argumentos Relação enfatizada Componentes dos argumentos Eleitoral Do representado ao

representante - de “baixo para cima” ou vertical

externa

Processo eleitoral

Filiação Do representante ao respresentado - de “cima

para baixo” ou vertical interna

Filiação

Serviços Do representante ao representado - de “cima

para baixo” ou vertical externa Benefícios Proximidade Do representante ao representado – reciprocidade horizontal externa

Compromisso com causa

Identidade Do representado ao representante – “de baixo

para cima” ou vertical interna

Qualidade substantiva

Intermediação Do represenante ao lócus – horizontal no local ou instância de representação

Reivindicação

Quadro 4 – Tipologia de argumentos de congruência.

Fonte: adaptado de LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006.

A análise da representação presuntiva ocorre no plano da elaboração discursiva dos representantes e podem apresentar padrões diferenciados.

2.2.2.3. Continuum da participação nos conselhos de gestão

Somente após fazer a revisão das concepções e tipologias da participação é possível estabelecer um continuum que servirá como referência para a análise da participação política em mecanismos híbridos de controle social como é o caso dos conselhos de gestão (ver quadro 5).

Enfoques teóricos do Controle Social Controle social do Estado sobre a sociedade civil

Controle social compartilhado entre o Estado e a sociedade civil Controle social da sociedade civil sobre o Estado Níveis de participação política Não

participação Colaboração Deliberação Transformação Emancipação

Comportamento do participante no processo decisório Não decide – decisão é dependente das diretrizes técnicas da gestão Não decide – é apenas consultado e fiscaliza as decisões da gestão Decide com apoio da gestão – tem competência para tomar decisão Decide e avalia com apoio da gestão – toma decisão e reflete sobre seus resultados Decide e avalia de maneira autônoma – é independente da gestão (autogestão) Relações entre representantes e representados Representante exerce o poder de maneira unilateral

Representante exerce o poder de maneira bilateral – é exercido o controle pelos representados por meio da accountability

Participação direta - não há representação política Eficácia política do controle social Menor autonomia dos participantes Maior autonomia dos participantes Quadro 5 – Continuum da participação e eficácia política do controle social

Fonte: elaborado pelo autor.

Os níveis de participação do continuum são considerados de acordo com os enfoques teóricos do controle social na perspectiva da ciência política.

No enfoque do controle social do Estado sobre a sociedade civil não há distribuição real do poder de decisão, ou seja, não há participação. A decisão é manipulada via de regra pela cooptação dos representantes. Não ocorrem debates e definição de prioridades de maneira compartilhada com a sociedade civil e a decisão depende de diretrizes técnicas estabelecidas pela gestão. A autoridade legal que representa exerce o poder de maneira unilateral com base em regras institucionalizadas e os interesses defendidos não tem conexões claras com as demandas coletivas dos representados. Há maior distância entre os representantes e os representados.

No caso do controle social da sociedade civil sobre o Estado ocorre a emancipação dos cidadãos que participam diretamente das decisões, individualmente ou reunidos em grupos. Ou seja, não há representação política. A decisão é autônoma e independente e a informação é produzida socialmente a partir de um processo contínuo de aprendizagem individual e coletiva que permite sua constante reconstrução e reinterpretação durante o processo decisório.

No enfoque do controle social compartilhado entre o Estado e a sociedade civil o continuum da participação traduz uma escala incremental que tem o potencial de ampliar a eficácia política do controle social compartilhado entre representantes do governo e da

sociedade civil organizada, na medida em que refletem no aumento dos níveis de autonomia dos cidadãos.

Os representantes exercem o poder de maneira bilateral com base em regras institucionalizadas e critérios de congruência em favor dos representados. Há conexões e articulações permanentes entre a autoridade que representa e os representados por meio de processos de accountability.

Nesse continuum a participação política no processo decisório ocorre dentro de três níveis: colaboração, deliberação e transformação.

Na colaboração a participação é periférica e se dá no nível expressivo-simbólico. Neste nível de participação ocorre a expressão de sentimentos, identidades e demandas específicas dos diversos participantes que se fazem presentes na cena política para serem vistos e ouvidos. No entanto, o participante não decide, mesmo que possa manifestar suas preferências e escolhas. Ele apenas recebe informações e é consultado sobre assuntos que serão objetos de decisão. Pode também exercer o acompanhamento e fiscalização da implementação das decisões.

A deliberação caracteriza-se por uma efetiva redistribuição do poder. Neste caso, a participação requer o debate levando em consideração os diferentes pontos de vista dos participantes com a definição de prioridades. A decisão emerge de um processo de intervenção organizada em que a informação é interpretada individual e coletivamente por meio do diálogo entre os diferentes participantes. A informação é importante para a compreensão dos problemas, reflexão e interligações com outros problemas. Há o reconhecimento de que os participantes têm conhecimentos e competências que os autorizam a tomar decisões com o apoio técnico da gestão.

Na transformação a participação se revela como um processo de aprendizagem individual e coletiva que resulta da avaliação periódica das decisões tomadas e seus resultados. Como decorrência, além de se sustentarem na racionalidade técnico-burocrática, as opiniões dos participantes tendem a ser informadas pela reflexão permanente que possibilita a geração de decisões mais inteligentes. Este nível de participação pode ser visto como uma “escola política” que envolve formação de uma cultura política composta de valores democráticos que possibilitam assimilar uma multiplicidade de interesses e motivar decisões transformadoras voltadas ao interesse público (PATEMAN, 1992).