• Nenhum resultado encontrado

Património arqueológico romano

Património Arqueológico e Turismo na Região Algarvia

E A SUA VALORIZAÇÃO TURÍSTICA: EXISTÊNCIAS E POTENCIALIDADES

2.2. Património arqueológico romano

Os vestígios do último milénio antes da nossa Era, cujos contextos funerários foram largamente identificados por Estácio da Veiga, têm nos últimos anos adquirido importante expressão no panorama dos estudos arqueológicos do Algarve, embora em termos quantitativos o número de sítios identificados e estudados seja ainda escasso. Não porque os sítios destas épocas de intensos contactos com o Mediterrâneo, imediatamente antes da chegada dos romanos, não tenham sido bastante relevantes, como se comprova por um vasto número de necrópoles identificadas pelo pioneiro algarvio, mas porque os povoados correspondentes são de difícil detecção na paisagem. É o período em que o atual território nacional e a região do Algarve estabelecem uma intensa e profícua relação

com as civilizações e povos do Mediterrâneo Antigo de que são exemplos os fenícios, gregos ou cartagineses; é o tempo em que a escrita, o modo de vida urbano e muitos dos hábitos do quotidiano mediterrâneo começam a ser adotados pelas comunidades locais; é, finalmente, o início de uma nova forma de ver o mundo e de estar que passa pelo sentido de pertença a uma cultura europeia e mediterrânea, que se inicia com a incorporação no Império Romano e culmina hoje na plena integração na União Europeia. Os vestígios arqueológicos do período pré-romano e romano são, pois, determinantes para ajudar a conhecer a identidade da região, e entender as suas vivências e ambiências, enfim, a enriquecer a experiência de quem nos visita.

No castelo de Castro Marim, as escavações lideradas por Ana Margarida Arruda nos últimos anos têm trazido à luz do dia alguns dos vestígios do Bronze Final, da Idade do Ferro e da época romana. Estas ruínas, que ainda não estão musealizadas, pertenceram ao núcleo urbano de Baesuris, um povoado de origem pré-romana que é referido nas fontes clássicas como um importante nódulo viário, para além da posição estratégica que assumia na desembocadura do Guadiana. Um pequeno núcleo museológico no castelo de Castro Marim permite ter acesso a algum do espólio recolhido nas escavações que ali tiveram lugar (Arruda et al. 2007). Tal como naquele núcleo fortificado, também se encontram em Tavira abundantes testemunhos, datados de entre os séculos VIII e III a.C., de fenícios, gregos e cartagineses, demonstrando os amplos contactos que a região mantinha com as civilizações do Mediterrâneo antes da chegada dos romanos. Nesta cidade do Rio Gilão já foram identificados vários núcleos fenícios, sendo visitáveis alguns dos poços votivos no átrio do Palácio da Galeria. Tem vindo a ser admitido que a cidade de Balsa teve a sua origem neste núcleo urbano pré-romano de Tavira, que, já em época romana, foi transferida para junto de Luz de Tavira (Maia 2003).

As escavações igualmente dirigidas pela investigadora atrás referida no Monte Molião, em Lagos, revelaram muitas estruturas da última fase da Idade do Ferro (séculos IV-II a.C.) e dos primeiros séculos da presença romana, aguardando-se a valorização e preparação do sítio para receção de visitantes. Supõe- se que aqui se localizava o núcleo urbano da Lacobriga referida nas fontes clássicas, tendo as escavações

confirmado que, a partir do século II, foi paulatinamente abandonado em virtude da transferência das populações para a margem oposta da ribeira de Bensafrim, onde se situa o atual burgo. Com efeito, nos últimos anos, em pleno centro histórico de Lagos, foram identificados restos de uma significativa indústria de preparados de peixe (Arruda 2007).

Para além dos povoados enunciados, as outras ocupações conhecidas da Idade do Ferro objeto de intervenção arqueológica, mas não visitáveis, resumem- se a Faro e Silves (Cerro da Rocha Branca) (Arruda et al. 2008). A distribuição pelo litoral destes sítios do primeiro milénio a.C. — que, grosso modo, correspondem aos primórdios das principais cidades do Algarve — acaba então por estruturar a própria ocupação humana do território algarvio, definindo uma matriz urbana regional que não mais se alterou.

Do período romano os dados são mais abundantes, havendo vários sítios escavados e preparados para o visitante. O Montinho das Laranjeiras, na margem portuguesa do Guadiana, é um sítio com uma longa diacronia de ocupação que se estende do século I ao século XIII. Esta estação arqueológica, cujas escavações se iniciaram no século XIX com Estácio da Veiga, foram retomadas em finais do século passado com Justino Maciel e Hélder Coutinho (Maciel 1993). O sítio, que entretanto foi musealizado pelo município de Alcoutim, integrando a rede museológica concelhia, é bem conhecido por apresentar uma das primeiras igrejas cristãs em Portugal de planta cruciforme, datada do século VI e VII. Situado num sítio aprazível de onde se domina o rio, é um bom exemplo da importância da navegabilidade do Guadiana para a região ao longo da época romana, Antiguidade tardia e época islâmica e que, rio acima, culminava no porto de Mértola. O acesso às ruínas é livre, podendo o visitante encontrar informação — para além da que se encontra disponível localmente — no museu do castelo da vila de Alcoutim (Coutinho 2005).

Não longe do Montinho das Laranjeiras, há que referir a barragem do Álamo e o castelinho dos Mouros. Neste último, situado junto a Guerreiros do Rio, numa posição estratégica que controla a navegabilidade do Guadiana, as escavações dos últimos anos têm revelado uma ocupação romana do século I a.C. Já

a barragem do Álamo constitui a mais imponente e bem conservada estrutura hidráulica do Algarve romano, cujas características ficaram melhor definidas com as intervenções arqueológicas de 2006 e 2007. É constituída por um paredão retilíneo com 41 metros de comprimento e 2,8 metros de espessura, reforçada por sete contrafortes, e com uma altura superior a 8 metros (Cardoso e Gradim 2011). Não é esta a única barragem do Algarve. A de Santa Rita, situada junto ao monumento megalítico homónimo já mencionado, era uma barragem das épocas romana e islâmica que abastecia a povoação situada em Cacela a Velha. Este sítio costeiro, com uma vista privilegiada sobre a Ria Formosa, constituiu-se, entre os séculos X e XIII, como núcleo urbano de importância regional, aparecendo designado nas fontes árabes como Qast’alla. Ainda que se desconheça quase tudo relativamente ao sítio romano que aqui existiu, pode-se ver in loco, para além das ruínas de um bairro islâmico cuja musealização está por fazer, um troço da muralha islâmica em taipa.

Em Cacela, tal como na maior parte dos sítios arqueológicos costeiros da época romana, estão identificados tanques para elaboração de preparados de peixe. Este tipo de tanques, que são hoje as estruturas arqueológicas que restam das fábricas ou unidades de processamento piscícola que produziam produtos à base de sal e peixe exportados para todo o mundo romano, de que o mais famoso era o garum, podem ser vistos na sede do parque natural da Ria Formosa, localizada em Marim (Olhão), ou ainda no resort da Quinta do Lago. Escavadas nos anos 80 do século passado (Silva et al. 1992; Arruda e Fabião 1990) as ruínas ficaram visitáveis, embora nunca tenham sido criadas as condições mínimas de conservação e de valorização dos sítios que os preparassem convenientemente para as visitas e devida apreciação do grande público. Na verdade, pouco ou nada foi investido nos locais nesse sentido, para além de uma breve placa identificando a natureza de tais tanques. E foi assim desde a década de 80 — altura em que as então bem conservadas estruturas foram postas a descoberto — até aos dias de hoje. Os sítios e as suas ruínas que deveriam sair dignificadas pela opção de as apresentarem ao público, após estes 30 anos de abandono estão completamente degradadas e até pouco recomendáveis a visita, tal é o grau de desprezo a que estão votadas. Não se tendo apostado o mínimo na sua manutenção, já há muito que se deviam

ter enterrado de novo, salvaguardando-as, dessa forma, do estado de destruição a que chegaram.

Servem estes dois casos, de Marim e Quinta do Lago, para bem ilustrar que a relação entre Património e Turismo tem que resultar de uma parceria de entendimento e de ação em que se os bens patrimoniais arqueológicos servem ou podem servir o turismo — nomeadamente através da diversificação da oferta, da apresentação de outros conteúdos fortemente comprometidos com a história do território, o ambiente envolvente e as características da terra — o turismo não pode apenas servir-se dos bens arqueológicos. Tem, também, em articulação com as entidades que o tutelam, que olhar para a sua preservação e valorização uma vez que se serve dele e precisa de o utilizar nas suas atividades de uma forma sustentável. Infelizmente, em Portugal os setores do Turismo e do Património como que têm caminhado e progredido de costas voltadas, divorciados um do outro, quando a atividade de um assenta na “venda” e exploração das características de um território, ao passo que o outro constitui boa parte da identidade e alma desse mesmo território. Ainda que a atitude, pelo menos ao nível do discurso teórico, tenha vindo paulatinamente a mudar, há que passar à prática, aprendendo inclusive com os nossos parceiros europeus onde a aliança Turismo/Património se tem mostrado muito frutuosa para ambos os setores constituindo hoje mais um binómio do que uma mera aliança de interesses. Turismo sustentável é hoje impensável sem se imiscuir no território, sem considerar o ambiente, sem olhar para o Património ou até envolver-se socialmente. Pois é a conjugação de tudo isto que cria os ambientes genuínos e autênticos, as ambiências que levam a novas experiências e vivências, que constituem os terrenos férteis à atração turística e à valorização das comunidades.

Os sítios romanos do Algarve mais visitados e melhor preparados para os visitantes são a villa de Milreu (Estoi) e o Cerro da Vila (Vilamoura). Ambos integram os itinerários arqueológicos do Algarve tendo beneficiado de algum investimento sobretudo dirigido para a construção de centros de acolhimento e de interpretação. Recebem hoje milhares de visitantes por ano, sobretudo estrangeiros, realizando-se nos seus espaços eventos de natureza vária, como exposições ou espetáculos musicais. Ambos os sítios, com uma longa

Figura 4 Em cima: ruínas romanas da praia da Luz correspondentes a um balneário de um sítio de transformação de preparados de peixe. Em baixo: Estrutura hexagonal do Cerro da Vila (Vilamoura), eventualmente dos séculos V ou VI d.C

Figura 5 Mosaico de Milreu retratando a fauna

marinha regional, um dos recursos mais explorados na época romana e exportado em larga escala.

diacronia de ocupação, têm como principal motivo de interesse as ruínas de compartimentos do século IV pavimentados a mosaico, para além de estruturas e artefactos de outros períodos. Outro sítio que já esteve aberto ao público pela peculiaridade da arquitetura das suas ruínas e pavimentos de mosaico foi a villa da Abicada (Mexilhoeira Grande) que se encontra em fase de requalificação para integrar o itinerário arqueológico do Algarve. Note-se que a gestão dos sítios disponíveis neste tipo de itinerários pode ser partilhada. Se Milreu é um dos bens arqueológicos tutelados pela Direção Regional de Cultura, já o Cerro da Vila está sob gestão privada através de uma parceria de concessão entre a tutela e a empresa turística local (Lusort). Este tipo de gestão, passível de se articular com interesses económicos, partilha entre o público e o privado a responsabilidade social sobre a preservação e valorização patrimonial de um sítio arqueológico, através de um modelo cuja aplicação pode ser interessante para outros sítios.

Figura 6 A Ria Formosa vista a partir da fortaleza de Cacela, uma das muitas fortificações do litoral algarvio que asseguravam o controlo da costa e a segurança das populações.

Finalmente, da época romana podem ver-se mais núcleos de ruínas do Algarve, alguns por escavar e/ ou que a erosão marítima tem posto à luz do dia, como o sítio pesqueiro da Boca do Rio ou os fornos do Martinhal, outros que desde a época romana têm permanecido visíveis como a barragem da Fonte dos Mouros, em Lagos. Estas ruínas arqueológicas bem como muitas outras que marcam a paisagem servem, antes de mais, para ilustrar a frequência de sítios romanos no Algarve e a potencialidade arqueológica e patrimonial da região. Alguns destes sítios, como o núcleo balnear das ruínas romanas da praia da Luz, escavado em 1987 (Parreira 1997), e que integrava mais uma unidade de transformação de preparados de peixe, estão devidamente preparados para receber públicos, ainda que frequentemente lhes falte a devida divulgação e informação associada.