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CAPÍTULO I – MÁSCARA NEUTRA E MÁSCARA EXPRESSIVA COMO

1.5. Pedagogia da máscara expressiva e princípios pedagógicos

Com a fama de esconder, proteger (“uma pessoa sente-se como no interior de um observatório” donde se pode ver sem ser visto) a máscara desmascara, revela. Faz mergulhar aquele que a usa no seu eu verdadeiro, obriga-o a abandonar a sua fachada habitual. Desconstrói os seus condicionamentos factícios, põe-no a nu. Trabalhar sob máscara ou analisar este trabalho, leva a explorar cada vez mais profundamente o ser humano, nas suas pulsões mais secretas. Tudo o que a sociedade inibe, a máscara fá-lo ressurgir. (ASLAN, 1999, p. 4)

O corpo que usa máscara parece estar sob uma lente de aumento, percebe cada movimento, organização corporal e tensões musculares. Com a máscara, as atitudes manifestam-se claramente no corpo do ator, que passa a tomar maior consciência de si no processo de criação do personagem. Entre os aspectos mais comuns no treinamento com máscara, numa perspectiva corporal, estão: o fortalecimento muscular

46 e flexibilidade que envolve a articulação da coluna, da pélvis e dos membros inferiores. Também o posicionamento dos pés e a segmentação do corpo principalmente da região do torso e a prática acrobática. Em diversas tradições teatrais que utilizam máscara se aprofunda a exploração da cintura pélvica, a fim de possibilitar a sustentação do personagem no quesito postural com liberdade e potência. A percepção do corpo, enquanto se organiza numa postura determinada, permite ao ator impulsionar ainda mais suas descobertas e chegar mais facilmente à organicidade.

Geralmente nos processos metodológicos e pedagógicos que envolvem a Commedia dell’Arte experimentam-se também as características dos animais de referência de cada personagem, ao mesmo tempo em que ocorre sua investigação e adaptação na configuração humana, procurando manter sua potência zoomórfica.

Entre as várias possibilidades com máscara expressiva, como dito anteriormente, esta pesquisa centra-se na Commedia dell’Arte a partir da pedagogia de Jaques Lecoq (1997) e da investigação das máscaras físicas de Claudia Contin (2003). Para Lecoq (1997) a experimentação de improvisações e jogos com a máscara expressiva é necessária para que o ator experimente atitudes físicas que lhe possibilitam encontrar nuances expressivas para a criação de personagens de forma particular. Lecoq (1997) explica que a característica burlesca da máscara expressiva encontra-se, precisamente, no exagero e no grotesco a que pode chegar o ser humano. Para Lecoq (1997) é um território dramático de amplificação que permite o jogo do ator em níveis máximos de intensidade e potência.

No teatro de Lecoq, a Commedia faz parte do fundo poético comum relacionado ao trágico, mas que também se encontra inserido no cômico. Seu processo pedagógico com máscara expressiva apresenta a contra-máscara, que se trata da possibilidade de aprofundamento do personagem por meio do desenvolvimento de aspectos opostos aos do seu caráter principal. É como se fosse a criação de outro personagem que usa a mesma máscara, mas que configura seu caráter de forma diametralmente oposta. Deste modo, a máscara expressiva “joga” de duas formas, máscara e contra-máscara, o que permite dar profundidade ao personagem e encontrar nuances expressivas para sua composição.

47 complementam, mas no seu cerne são contraditórias: Arlecchino é ingénuo e malicioso; Capitano é convencido e covarde; Pantalone é avarento, mas se apaixona com facilidade; Dottore sabe de tudo, mas não é competente em nada e assim por diante. Lecoq (1997) explica que esta dualidade no caráter leva a diversos jogos cênicos de amplo deguste para o ator, sua experimentação possibilita estabelecer o aprofundamento do personagem. A intensidade física dos personagens também é uma consequência dessa polaridade que os faz transitar drasticamente de um sentimento a outro. Na Commedia as características interiores e motivações dos personagens são refletidas externamente, há uma total integração entre a gestualidade, o comportamento e o caráter do personagem.

Por meio de um aprofundado estudo histórico e iconográfico, Claudia Contin se debruçou sobre os principais arquétipos da Commedia dell’Arte complementando este conhecimento com os aprendizados que recebeu de vários mestres sobre esta tradição ao longo da sua vida. Contin (2003) apresenta as máscaras físicas de cada personagem ao mesmo tempo em que explica seu contexto histórico e diversos aspectos que constituem o caráter de cada um.

As máscaras físicas tomam forma no corpo, o organizam, modelam seu movimento, definem sua postura e trazem impulsos e estilizações segundo o arquétipo do personagem. Contin (2003) apresenta dez máscaras físicas de personagens, estes são: Zanni, Pantalone, Balanzone, Arlecchino, Brighella, Nobres, Capitano, Servetta, Cortigiana e Pulcinella. A partir destes podem derivar outros personagens por meio da junção de dois ou três deles, ou apenas da adaptação de características de cada um, ou ainda da adaptação propriamente dita do arquétipo que leve a outros personagens que derivem de quaisquer das suas principais divisões tipológicas.

Para Contin (2003), quando se tem consciência da postura e das bases físicas do personagem, o ator assimila e começa uma apropriação daquelas estruturas no seu corpo, por via da experimentação, e assim, começa a entender e a se conectar verdadeiramente com o personagem. A configuração externa de cada personagem e suas características físicas tem um motivo fundamentado de composição, como enfatizado, é um teatro que faz transparecer as paixões humanas. Segundo Contin (2003), para se aprofundar num personagem específico da Commedia é preciso conhecer e se exercitar em todas as máscaras físicas que envolvem princípios em

48 comum das bases corporais dos personagens arquetípicos, deste modo o ator adentra na compreensão do universo de referência que interage com sua máscara principal. Para Contin (2008), a Commedia dell’Arte relacionada à formação do ator trata-se da apropriação de uma compreensão prática do universo que envolve esta tradição.

No processo de investigação das máscaras físicas primeiramente o ator experimenta cada uma delas por separado; quando já tem certa prática nesse repertório, passa a um segundo nível que consiste em se deparar com o Caráter do personagem que traz um acúmulo de diferentes possibilidades expressivas em sintonia com o aspecto zoomórfico e os arquétipos desta tradição. O caráter determina a relação com todo um imaginário no qual o ator se sintoniza para a composição e, do mesmo modo, para interagir com o público a partir dessa chave. Posteriormente, vem a construção do Personagem que acontece por meio da organização do repertório, da composição e preenchimento das lacunas do personagem no corpo, voz, ritmo e energia do ator.

No alongamento/aquecimento de preparação corporal da oficina de Commedia dell’Arte18

que vivenciei em 2011, as alunas/monitoras de Claudia Contin apresentaram exercícios inspirados na dança indiana, no teatro de Bali e em práticas acrobáticas. É também importante a segmentação corporal que acontece por meio de um aquecimento intenso, iniciando com os “golpes da máscara” (“colpi di maschera”) que consiste numa sequência de movimentos súbitos da cabeça em diferentes direções para potencializar a mobilidade da máscara e, em consequência, seu destaque em cena. Estes movimentos lhe darão vida a partir do momento em que permitem que a tridimensionalidade da máscara tome diferentes configurações na visão do público. Consequentemente, ao longo desse alongamento/aquecimento, diferentes segmentos são mobilizados, articular e muscularmente, com o intuito de preparar o corpo para o processo de apropriação das máscaras físicas.

As máscaras físicas apresentam a organização corporal do personagem a partir do seu desenho postural, com enfoque no torso, na pélvis (localização do baricentro e

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Oficina de Commedia dell’Arte ministrada pela Dra. Joice Aglae e Veronica Risatti, ambas monitoras de Commedia dell’Arte que passaram por um processo de formação com Claudia Contin e Ferruccio Merisi na Scuola Sperimentale dell’Attore. Esta oficina teve uma carga horária de 20h e foi realizada na Escola de Teatro da UFBA em 2011. Na ocasião da oficina, a Dra. Joice Aglae também apresentou parte da sua pesquisa de Pós-graduação sobre a associação e relação entre máscaras físicas e danças populares brasileiras.

49 ângulo de rotação ou encaixe da pélvis) e nas pernas. Em seguida vem o posicionamento dos braços, mãos, pés e outras partes do corpo. Depois de assumir relativamente essa postura base, experimenta-se o andar de acordo com essa configuração corporal, buscando que o ator se aproprie deste desenho e encontre nele os impulsos que lhe dão “vida”. Isto faz parte de um processo para começar a assimilar os fundamentos corporais do personagem. Logo, surgem gestos e outras posições corporais, movimentos, formas de locomoção etc. a partir de determinadas situações que geralmente ocorrem ou são realizadas por cada personagem.

A apropriação do personagem não acontece de forma meramente técnica, os estímulos para configurar as máscaras físicas são dados intercalando a explicação do desenho corporal, ao mesmo tempo em que aparecem motivações imagéticas sobre o universo do personagem, incluindo as sonoridades e/ou determinadas falas características. Após a experimentação das máscaras físicas o ator passa por processo de exploração individual no qual procura assimilar e adaptar, no seu corpo, este vocabulário, mas também contemplando o universo que envolve o personagem.

Deste modo, a máscara expressiva não é apenas um instrumento pedagógico; serve para a construção de corporeidades e personagens que podem, posteriormente, utilizar máscara ou não. Nesta pesquisa organizei alguns princípios que a máscara expressiva apresenta a partir de Lecoq (1997) e Contin (2003):

1) Estado(s): prontidão, jogo.

2) Organização corporal: a partir do centro do corpo, segundo bases físicas dos personagens e através de corporeidades zoomórficas.

3) Exigências físicas: fortalecimento muscular da região central do corpo, principalmente músculos associados à pélvis e ao membro inferior. 4) Atitudes: diversas, de acordo com o caráter de cada personagem.

A seguir aponto aspectos que a máscara expressiva apresenta para a formação do ator:

50 2) Discernimento daquilo que é essencial a gestos e ações;

3) Compreensão de personagens arquetípicos;

4) Entendimento de forma simplificada de diretrizes para construção de personagens;

5) Constatação da necessidade do jogo teatral (improvisação).

De forma semelhante aos princípios levantados com máscara neutra, os princípios acima enumerados foram organizados, nesta pesquisa, a partir do embasamento teórico e da minha experiência com máscara expressiva em oficinas e ao longo da minha graduação em teatro. Levantei estes princípios com o intuito de relacioná-los na experimentação prática deste trabalho às referências da educação somática para abordagem corporal.

Nesta pesquisa, a investigação das possibilidades dessa abordagem corporal aconteceu ao longo dos encontros práticos. Nessas ocasiões surgiram inquietações sobre como abranger e me relacionar com os princípios, primeiramente, no que diz respeito à organização corporal de cada uma das máscaras. O fato da experimentação prática ter ocorrido através do embasamento na Abordagem Somático-Performativa me permitiu agregar diferentes referências e reajustá-las segundo as necessidades do desenvolvimento da prática e de acordo com a experiência de cada encontro.

Assim sendo, aprofundei no entendimento corporal a partir da fundamentação e campo de estudo da educação somática. No capítulo seguinte (segundo capítulo), explanarei sobre a educação somática e as duas referências centrais nesta pesquisa para, posteriormente, apresentar e explanar (no terceiro capítulo) sobre como utilizei alguns dos seus fundamentos, assim como exercícios, para experimentar uma abordagem corporal para a pedagogia com máscara neutra e máscara expressiva.

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