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CAPÍTULO 4: AMEAÇAS À IDENTIDADE DO SISTEMA

4.2 Aplicação do modelo: forças motrizes e pressões nos parques naturais

4.2.1 Perceção dos peritos

A opinião especializada de um conjunto de peritos, apesar das potenciais fragilidades, é uma técnica vastamente utilizada na área da conservação da natureza perante a escassez de dados, limitação de recursos e complexidade dos problemas (Martin et al., 2012; Meyer & Booker, 2001). Pode ser particularmente útil para gerar hipóteses e desenvolver modelos (Martin et al., 2012). Neste caso particular contribui para estabelecer uma base de informação sobre as principais pressões e forças motrizes nos parques naturais e demonstrar a utilidade de um modelo conceptual que explicita as relações de causa-efeito.

Assim, o questionário aplicado na consulta a peritos incluiu a pergunta: “Quais considera serem as 3 principais ameaças ao cumprimento dos objetivos de conservação dos parques naturais em Portugal?”. Ao contrário das restantes perguntas do questionário (MR6, capítulo 2), cujo formato fechado procurava a validação de premissas, conceitos ou hipóteses, a opção por pergunta aberta neste caso pretendia que as respostas fossem totalmente independentes do modelo conceptual. Cada respondente identificou, através de texto livre, três ameaças (por ordem de importância) e, para cada uma, os fatores na sua origem (sem limitação de número).

As respostas recolhidas foram codificadas segundo a lógica da análise de conteúdo (MT2), procurando garantir que as categorias criadas agregassem respostas sem, no entanto, desvirtuar o sentido fundamental de cada resposta. Foram assim criados 39 códigos para traduzir o conjunto de ameaças e causas identificadas. A listagem completa dos códigos e alguns exemplos de resposta podem ser consultados no Anexo VII. O diferente nível de detalhe das respostas obtidas, decorrente da natureza aberta da questão, faz com que alguns códigos sejam genéricos (ex.: ‘pressão humana’, ‘atividades humanas’) e outros mais específicos (ex.: ‘uso de recursos biológicos’, ‘atividade agrícola/florestal desadequada’). Isto significa que não se verifica a exclusividade dos códigos, ou seja, alguns códigos poderiam ser incluídos noutros (o ‘uso de recursos biológicos’ não deixa de ser parte das ‘atividades humanas’ ou de constituir uma ‘pressão humana’). De realçar também que a maioria dos códigos (21) são aplicados tanto a ameaças como a causas, existindo apenas três códigos específicos de ameaças e 15 dedicados apenas a causas.

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Após a codificação foram analisadas as frequências e a ordem de importância indicada pelos respondentes para as ameaças. Numa segunda fase as respostas codificadas foram classificadas como forças motrizes, pressões ou efeitos (Figura 15) 90, de acordo com o modelo conceptual descrito no ponto 4.1.

Figura 15. Correspondência entre os códigos gerados e os elementos do modelo DPSIR adaptado (em destaque, a

azul claro, as forças motrizes mais relacionadas com a governança da área protegida).

As respostas codificadas com ‘destruição/degradação dos valores naturais’, indicadas pelos respondentes como ameaças, correspondem, segundo a lógica do modelo, a efeitos negativos decorrentes de pressões. Por exemplo, a destruição de habitats poderá resultar de atividades humanas ou mesmo das alterações climáticas (pressões), e já é indicativo de que os objetivos de conservação não estão garantidos.

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A designação dos códigos em representações gráficas foi simplificada através da eliminação das preposições.

Foram considerados como pressões os códigos relacionados com atividades humanas ou com processos diretamente responsáveis por alterações dos valores naturais (por exemplo, ‘incêndios’ e ‘alterações climáticas’). A correspondência entre os códigos que traduzem pressões e as tipologias apresentadas no ponto 4.1.2 (Tabela 15) é relativamente fácil, embora, como já foi referido, alguns códigos sejam demasiado genéricos, sendo aplicáveis ao conjunto de ameaças (por exemplo, ‘pressão humana’).

As forças motrizes incluem os códigos que traduzem fatores demográficos, económicos, sociopolíticos e culturais (potencialmente geradores, direta ou indiretamente, de pressões com efeitos negativos). Dentro das forças motrizes são destacadas aquelas que podem estar mais estreitamente relacionadas com a governança da área protegida. Curiosamente, estes são os códigos que mais expressam conotação negativa ou ação desadequada (falta, incapacidade, ineficácia, etc.).

Feita esta correspondência, procedeu-se à representação esquemática das relações causais indicadas pelos respondentes (recorde-se que na questão era solicitada a identificação dos fatores na origem de cada ameaça). Para maior facilidade de análise, as relações foram representadas em três blocos distintos: relações apenas entre forças motrizes; relações entre forças motrizes e pressões; relações diretas com os efeitos.

No seu conjunto, os 20 participantes do painel nacional indicaram um total de 58 respostas relativas às ameaças ao cumprimento dos objetivos de conservação dos parques naturais, codificadas com recurso a 21 códigos diferentes (Figura 16). As categorias utilizadas com maior frequência foram ‘incapacidade de gestão’ e ‘destruição/degradação dos valores naturais’. Estas foram também as categorias utilizadas com maior frequência para codificar ameaças indicadas em primeiro lugar na ordem de importância (‘incapacidade de gestão’ e ‘destruição/degradação dos valores naturais’) (Figura 16). As restantes categorias aplicadas a ameaças de primeira ordem incluem: ‘falta de investimento’, ‘infraestruturas’, ‘alteração do uso do solo’, ‘pressão humana’, ‘negligência’ e ‘atividade agrícola/florestal desadequada’.

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Verifica-se que alguns tipos de problemas são referidos com mais frequência (absoluta) mas nunca apontados como a ameaça mais importante, por exemplo:

‘espécies exóticas’, ‘desconhecimento’, ‘expansão urbana’, ‘modelo de

gestão/governança desadequado’, ‘despovoamento’ e ‘legislação

desadequada/incumprimento’.

Quanto aos fatores na origem das ameaças foi recolhido um total de 88 respostas, categorizadas através de 25 códigos (Figura 17). As categorias mais aplicadas foram: ‘fraca valorização societal’, ‘opção política’, ‘falta de investimento’, ‘interesses económicos/privados’, ‘falta de ordenamento’, ‘contexto económico’ e ‘incapacidade de gestão’. Estas categorias reúnem mais de metade (48) das respostas relativas às causas.

Figura 16. Frequência de respostas relativas às ameaças, identificadas pelo painel

nacional, por código e ordem de importância atribuída (n.º total de respostas=58).

Figura 17. Frequência de respostas relativas às causas, identificadas pelo painel nacional,

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Quando as 34 categorias utilizadas para codificar as respostas deste painel (ameaças e causas) são organizadas de acordo com o modelo conceptual DPSIR, verifica-se que foram identificadas 22 forças motrizes (Figura 18) e 11 pressões (Figura 19). Percebe-se também que a grande maioria das respostas recolhidas (110) é referente a forças motrizes, onde se destacam as categorias ‘incapacidade de gestão’, ‘falta de investimento’, ‘fraca valorização societal’ e ‘opção política’ (Figura 18).

Figura 18. Frequência de respostas do painel nacional para cada código classificado como força motriz (n.º total de

respostas=110) (a azul claro as forças motrizes mais relacionadas com a governança da área protegida).

No que respeita às pressões (Figura 19), as ‘espécies exóticas’ e a ‘expansão urbana’ são as categorias com mais frequência de respostas, seguidas de ‘alteração do uso do solo’ e ‘infraestruturas’.

A representação gráfica das relações causais entre forças motrizes (Figura 20) mostra uma complexa rede de interações. Em particular, a ‘incapacidade de gestão’ parece resultar de múltiplos fatores, desde o ‘contexto económico’, ‘interesses económicos/privados’ e ‘propriedade privada’, à ‘opção política’ e ‘desconhecimento’, passando ainda pela ‘ineficácia da justiça’, ‘falta de investimento’ e ‘modelo de gestão/governança desadequado’.

Figura 19. Frequência de respostas do painel nacional para cada código classificado como pressão (n.º total de

respostas=29).

Existem dois fatores que assumem relevo pelo número de outras forças motrizes que geram. De acordo com as respostas recolhidas, a ‘falta de investimento’ resulta em ‘conflitos com as populações’, ‘incapacidade de gestão’, ‘negligência’ e ‘desconhecimento’, podendo ser explicada pela ‘política de incentivos’ e por ‘opção política’. Quanto à ‘fraca valorização societal’, esta conduz ao ‘despovoamento’, à ‘perda de identidade’, aos ‘conflitos com as populações’ e a ‘legislação desadequada/incumprimento’, sendo por sua vez originada pelo ‘modo de vida da população’.

Para além da ‘fraca valorização societal’, os fatores que contribuem para o ‘despovoamento’ são a ‘legislação desadequada/incumprimento’, as ‘dinâmicas populacionais’ e o ‘contexto económico’.

Olhando para as relações entre forças motrizes e pressões (Figura 21), destaca- se o número de fatores (nove) que geram ‘alteração do uso do solo’, maioritariamente forças motrizes relacionadas com questões de governança (‘incapacidade de gestão’,

‘modelo de gestão/governança desadequado’, ‘legislação

desadequada/incumprimento’, ‘falta de fiscalização’ e ‘falta de ordenamento’). A ‘opção política’, para além de também explicar esta pressão, é referida como estando na base da ‘atividade agrícola/florestal desadequada’ e da construção de ‘infraestruturas’. A ‘falta de ordenamento’ é a outra força motriz responsável por maior número de pressões, nomeadamente ‘expansão urbana’ e ‘pressão humana’ (para além da já mencionada ‘alteração do uso do solo’).

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Figura 20. Representação esquemática das relações causais entre forças motrizes, identificadas com base nas respostas do painel nacional (apenas se encontram representadas as forças

motrizes com ligações entre elas. A azul claro as forças motrizes mais relacionadas com a governança da área protegida. A posição das caixas procurou a melhor leitura possível, colocando a(s) caixa(s) com maior número de ligações no topo e a(s) com menor número na base. A espessura das ligações reflete a frequência com que a mesma foi referida).

Figura 21. Representação esquemática das relações causais entre forças motrizes e pressões e entre pressões,

identificadas com base nas respostas do painel nacional (forças motrizes a azul e pressões a laranja. A azul claro as forças motrizes mais relacionadas com a governança da área protegida. A posição das caixas procurou a melhor

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Refiram-se ainda as ligações identificadas entre pressões: o ‘abandono de atividades tradicionais’ conduz à ‘alteração do uso do solo’ e a ‘expansão urbana’ gera ‘pressão humana’.

Apesar de a direção de quase todas as relações representadas ser de uma força motriz para uma pressão, foi indicada uma relação no sentido inverso: de acordo com respondente, o ‘excesso de visitação’ leva à ‘perda de identidade’.

Quanto às relações conducentes diretamente à ‘destruição/degradação dos valores naturais’ (Figura 22), estas foram identificadas para três pressões e sete forças motrizes, cinco das quais relacionadas com questões de governança. A relação direta entre uma força motriz e um efeito omite a existência de uma pressão. Por exemplo, a ‘falta de sensibilização’ dificilmente resulta na ‘destruição/degradação dos valores naturais’ de forma imediata, mas pode conduzir à introdução de ‘espécies exóticas’, tal como identificado na Figura 21, e assim provocar esse efeito. A indicação destas relações de causa-efeito, apesar de teoricamente incorreta, pode sugerir uma importância acrescida destas forças motrizes (pelo menos do ponto de vista de perceção).

Uma análise integrada destes resultados coloca em evidência a centralidade de algumas forças motrizes, considerando o número de pressões e de outras forças motrizes que geram e a frequência de respostas que abrangem. Os exemplos mais significativos são: ‘interesses económicos/privados’, ‘contexto económico’, ‘falta de ordenamento’, ‘incapacidade de gestão’, ‘legislação desadequada/incumprimento’, ‘fraca valorização societal’ e ‘opção política’. Os últimos quatro fatores elencados são também indicados como diretamente responsáveis pela ‘destruição/degradação dos valores naturais’.

No sentido oposto, existem forças motrizes que parecem ser bastante periféricas, sendo apenas fator de origem de outra força motriz e referidas por um número reduzido de respondentes. São exemplos as ‘dinâmicas populacionais’, a ‘ineficácia da justiça’ e a ‘propriedade privada’. Importa referir que este último código é exclusivamente aplicado no painel nacional.

Figura 22. Representação esquemática das relações conducentes diretamente aos efeitos, identificadas com base

nas respostas do painel nacional (forças motrizes a azul, pressões a laranja e efeitos a rosa. A azul claro as forças motrizes mais relacionadas com a governança da área protegida. A posição das caixas procurou a melhor leitura

possível. A espessura das ligações reflete a frequência com que a mesma foi referida).

Em termos gerais, vale a pena destacar a diversidade de respostas recolhidas, que se reflete no elevado número de códigos utilizado. Apesar de poder ser indicativo da multiplicidade de ameaças que existem sobre os parques naturais (e causas), também pode resultar da dificuldade de abstração e generalização para uma categoria de área protegida (é possível que as respostas espelhem os problemas de áreas protegidas específicas com que os respondentes estejam mais familiarizados). Acresce a isto, a já referida não exclusividade dos códigos.

Cumulativamente, a formulação da pergunta no questionário admite diversas interpretações, sendo expressas diferentes perspetivas sobre o que constitui uma

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ameaça ao cumprimento dos objetivos de conservação dos parques naturais. Se para alguns respondentes consiste na própria destruição/degradação dos valores naturais a proteger, para outros são atividades humanas causadoras desses impactos. Outros ainda situam as ameaças mais a ‘montante’, nos fatores económicos, sociopolíticos e culturais que motivam as atividades (Figura 16).

O facto de a questão ser colocada para a categoria ‘parques naturais’ pode também explicar respostas genéricas como ‘pressão humana’, ‘atividades humanas’ e ‘alteração do uso do solo’ que, embora forneçam pouca informação, enfatizam a origem antrópica das ameaças. Mesmo as pressões expressas de forma mais detalhada traduzem-se maioritariamente em processos de alteração do uso e ocupação do solo (como referido no ponto 4.1.2) e/ou resultam de atividades humanas.

Por outro lado, o elevado número de respostas equivalentes a forças motrizes sugere a necessidade de uma gestão menos passiva e mais atuante ao nível dos fatores que desencadeiam as pressões. Uma parte significativa das forças motrizes identificadas está diretamente relacionada com a governança dos parques naturais, em muitos casos assinalando falhas na gestão. Estes fatores, e em particular o modelo de gestão em vigor, são analisados com maior profundidade no capítulo 6. No entanto, existem outras forças que se encontram fora da esfera de atuação da entidade gestora, nomeadamente nos domínios económico, político e cultural.

Apesar de os resultados apresentados não formarem o quadro completo de pressões e forças motrizes em ação nos parques naturais, fornecem um ponto de partida, que poderá ser complementado em trabalhos posteriores. Obviamente, será necessário verificar também quais as forças motrizes e pressões que estiveram/estão/estarão efetivamente a atuar sobre o território (e que podem ameaçar a sua função de conservação da natureza).