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5 FIGURAÇÕES ESCOLARES DE PERNAMBUCO

5.6 Percepção de Autonomia Profissional

Compreender como os membros de uma organização percebem a sua autonomia profissional e dinamizam suas práticas em contextos de uma organização escolar faz-se importante tanto para percebermos como a organização tem desenvolvido seus processos de gestão quanto para notarmos como esse valor está presente na cultura organizacional.

A fim de analisarmos essas questões, recorremos às anotações do nosso caderno de campo e recordamos a entrevista que realizamos com a bibliotecária da Figuração Alfa, na própria biblioteca, espaço que chamava atenção pela organização, iluminação e amplitude. Nossa informante fez questão de enfatizar que a biblioteca só era daquele jeito por iniciativa dela (Notas de Campo, 10.04.2015).

Segundo a bibliotecária, quando ela assumiu a organização daquele espaço, ele era bem diferente do que é hoje. Exemplo disso foi o deslocamento das estantes de livro, tendo

em vista que estavam situadas na frente das janelas do lugar. Dessa maneira, as estantes não só impediam a iluminação e ventilação do local como também cobriam a vista externa à biblioteca.

Intrigados com a percepção daquela profissional, questionamos a respeito do que teria levado a funcionária anterior a tomar essa decisão. Para ela, seria uma forma de evitar que os meninos vissem o que estava acontecendo do lado de fora e, consequentemente, se concentrassem mais na leitura e trabalhos (Notas de Campo, 10.04.2015).

Desse modo, a profissional responsável pela biblioteca, enquanto recurso humano, teve não só a capacidade de gerir simbolicamente um importante recurso material daquele local como também a autonomia necessária para promover a mudança e, assim, conseguir melhorar um ambiente tão importante para as atividades de uma figuração escolar.

Tal experiência indica valores de uma gestão democrática presentes na cultura organizacional da Figuração Alfa que encontram respaldo nas assunções básicas de profissionais, como a bibliotecária. Naquela cultura organizacional não apenas se compartilham responsabilidades como também se assegura a autonomia necessária para que os profissionais possam desenvolver seus trabalhos e estratégias de ação educativas.

Na cultura organizacional da FA, cabe ao diretor suscitar ou reconhecer a capacidade dos representantes de cada setor para que eles possam, de maneira autônoma, gerir da melhor maneira cada parte da figuração, fazendo todos ganharem. Certamente que compartilhar responsabilidades e protagonismos traz riscos, contudo o planejamento da prática, a discussão e a constante avaliação das ações diminuem a probabilidade de erros.

Na entrevista que fizemos com a diretora da FA, conversamos sobre isso. No dia dessa conversa, chegamos à figuração por volta do fim do intervalo, horário geralmente agitado em qualquer ambiente escolar, mas que naquele dia parecia ser diferente. Mesmo sem se repetir o toque da sirene, todos os alunos e professores já estavam em suas salas. Os poucos alunos que estavam fora das salas pareciam estar ocupados com alguma atividade extraclasse. O trabalho dos funcionários de limpeza continuava como sempre e o ambiente externo, composto por espaços comuns, encontrava-se limpo e organizado.

Diante de tamanha organização, funcionalidade e autonomia observadas naquela figuração, perguntamos à diretora: “Você se vê trabalhando fora daqui? Melhor dizendo, como você acha que a escola ficaria com uma possível saída sua?”

Assim...eu não me vejo trabalhando fora daqui não, em outro lugar. Eu acho que eles são muito independentes pra trabalhar, agora eu não sei se uma nova gestão teria assim...essa abertura para o diálogo. Essa abertura de conversar, essa abertura da coisa bem democrática mesmo. A gente vê muitas visões ainda que dizem ser democráticas, mas já vão impondo a forma que quer! Então eu não sei se, vindo uma

outra gestão, se ela iria ser democrática, ouvir todos os segmentos, porque aqui eu escuto funcionário, escuto aluno, escuto professor e eu acho que eles são independentes (Entrevista, 11.06.2015).

Diante da constatação de valores democráticos presentes nas assunções básicas expressas pela diretora, decidimos contrapor a fala dela com o que os profissionais da figuração entendem sobre a influência da diretora quanto à autonomia profissional deles.

Tabela 13: Frequência com a qual o diretor centraliza a gestão da figuração. Figuração Alfa

Percent Cumulative Percent

NENHUMA 21,9 21,9

RARAMENTE 65,6 87,5

FREQUENTEMENTE 12,5 100,0

Total 100,0

Fonte: Questionários da Pesquisa de Campo

A maioria dos profissionais (87,5%) afirma não considerar a gestão da diretora da Figuração Alfa centralizadora, o que indica a existência de autonomia de ações na Figuração Alfa incentivada pelas ações da diretora.

Tabela 14: Frequência com a qual o diretor centraliza a gestão da figuração. Figuração Beta Percent Cumulative Percent Valid NENHUMA 46,2 46,2 RARAMENTE 42,3 88,5 FREQUENTEMENTE 11,5 100,0 Total 100,0

Fonte: Questionários da Pesquisa de Campo

Fizemos a mesma pergunta aos integrantes da Figuração Beta e verificamos que a maioria dos profissionais (88,5%) não considera centralizadora a gestão da diretora. Chama- nos atenção o fato de que o percentual apresentado na Figuração Beta se sobrepõe ao da Figuração Alfa. Tal informação não condiz, entretanto, com as nossas observações.

Como já anotamos, era frequente, nas visitas à Figuração Beta, encontrarmos a sala da diretoria fechada. Ao perguntarmos ao segurança a razão disso, a resposta era sempre que a diretora não estava. Essa constante ausência se tornou tão naturalizada que, com ou sem a diretora, o cotidiano era sempre o mesmo, ou seja, fragmentado e pouco acolhedor. Diferentemente da visita que fizemos à Figuração Alfa no mesmo dia, o ambiente da Figuração Beta continuava barulhento, agitado e com muitos alunos espalhados por corredores e demais espaços não destinados à realização de atividades pedagógicas.

Ao que parece, a Figuração Beta não desenvolveu um ambiente no qual profissionais e alunos possam desempenhar suas atividades sem que lhes sejam indicados afazeres e dadas

ordens cotidianamente. Toda aquela agitação e barulho se tornaram tão naturalizadas, que não mais chama a atenção dos que nela convivem.

O toque da sirene nessa figuração lembra muito o de uma viatura policial, de tão estridente. Tanto alunos como professores não demonstravam entender o código simbólico que esse som representava e assim se dirigirem às salas de aula. A mesma sirene tocava mais estridentemente após 5 minutos, porém quase todos os alunos permaneciam nos corredores.

Mais curioso foi observar que só no terceiro toque da sirene é que a maioria dos professores começava a sair da sala dos professores, ou do seu refúgio, como já indicamos. Na Figuração Beta, a compreensão sobre o tempo como elemento intermediador das relações (ELIAS, 1998) que envolvem alunos e professores não parece bem definida e compartilhada entre os atores da figuração.

De maneira contrária, o tempo naquela figuração com atividades pedagógicas em período integral parece não ter relevância para a efetivação da política pública que deveria promover qualidade na educação – nesse caso, a política de tempo integral. Desse modo, passar mais tempo na escola termina por ser mais um engodo do que um benefício educativo.

Devido à complexidade de sua cultura organizacional fragmentada e instável, a Figuração Beta apresenta-se extremamente dependente das ações de seus gestores. Por sua vez, tais gestores, embora não desenvolvam valores condizentes com os preceitos de uma gestão democrática, especialmente naquilo que se refere à autonomia profissional, reforçam a ideia de que, se ela não funciona tão bem com a presença dos gestores, isso seria pior na ausência deles.

O absenteísmo na Figuração Beta não é praticado apenas pelos que ocupam os cargos de gestão como também pelos outros profissionais. Exemplo disso foi a visita que fizemos à biblioteca na expectativa de conseguir entrevistar a responsável pela sala. Nela, não havia alunos nem o ambiente estava refrigerado. Ao perguntar se podíamos entrevistá-la, a bibliotecária respondeu, de maneira pouco amistosa, que ela estava saindo e a sala ficaria fechada durante a tarde, porque sua colega também não estaria, ou seja, porque a figuração ficaria um dia inteiro sem a biblioteca.

Além da nossa frustração em ter que esperar mais uma semana para realizar a entrevista, percebemos que, diferentemente da autonomia apresentada pela bibliotecária da Figuração Alfa, a autonomia dessa funcionária no exercício de suas funções é limitada por conta das normas da cultura organizacional na Figuração Beta, normas que a obrigam substituir professores em caso de falta.

Para a nossa surpresa, assim que saímos da biblioteca naquele dia, vimos a diretora e literalmente corremos para tentar entrevistá-la, tendo ela concordado. Observamos que a sua sala fica em uma parte posterior à das coordenações à qual tínhamos acesso frequente durante a pesquisa cotidiana. Não parecia ser uma sala tão importante, já que nunca havíamos verificado algum tipo de atividade no local onde ela ficava. O espaço possui muitos móveis e é muito bem refrigerado, o que percebemos como um refúgio ao cotidiano agitado e fragmentado da Figuração Beta.

A entrevista foi várias vezes interrompida pelas demandas que surgiam, contudo, dentre os importantes dados coletados, destacamos a justificativa que ela deu para a presença de tantas grades de ferro naquela figuração, já comentada neste capítulo. Além disso, nos chamou atenção a resposta dada pela gestora sobre o que ela conhecia a respeito das características e potencial de cada recurso humano atuante de sua figuração: “Olha, eu não posso me ater aos detalhes de cada professor, porque tem demandas maiores pra resolver, sabe?” (Entrevista, 12.05.2015).

Ao terminarmos nossa entrevista e deixarmos aquela espécie de bunker que era a sala da diretora, percebemos que a figuração se encontrava tranquila e silenciosa. Naquele dia, haviam sido aplicadas provas de recuperação de aprendizado. Como havíamos passado mais de uma hora na sala da diretora, não percebemos a mudança do clima agitado da escola, o que nos leva a notar que, quando se está naquele lugar, não se vê o que está acontecendo na figuração.

A entrevista e a conversa com aquela diretora nos levaram a deparar-nos com algumas das assunções básicas expressas por aquela representante do complexo campo educacional brasileiro, eivado de desafios e dificuldades. Ficou claro, então, que o know-how acumulado em mais de quase duas décadas de trabalho com gestão terminou levando aquela figuração à construção de uma imagem de competência na gestão que é confundida com centralização e autoritarismo.

O fato de ela ter resolvido à sua maneira os principais problemas que envolviam a segurança da escola deu-lhe uma boa imagem junto à comunidade escolar, a qual não percebe que a atuação da diretora se restringe a atos administrativos. Uma indicação disso foi o teor da despedida da diretora e do segurança ao final da pesquisa que durou seis meses. No cotidiano agitado e fragmentado daquela figuração, aliado ao grande número de alunos e demandas, a presença de um pesquisador externo quase passou despercebida.

Com efeito, não recebemos qualquer suporte da equipe que compõe a Figuração Beta para a realização de nossa pesquisa, como também não sofremos qualquer limitação ou

questionamentos sobre o nosso trabalho, o que constitui indicador de que os valores ligados à autonomia na Figuração Beta são confundidos com fazer as coisas de qualquer jeito.

Exemplo disso foi a aplicação do questionário junto à secretária. Constrangida por não tê-lo respondido a tempo, dispôs-se a fazê-lo enquanto preenchia uma planilha no computador, queixava-se do equipamento e atendia às demandas de outra funcionária. Nesse momento, ela explicou que trabalhar naquela figuração era o mesmo que trabalhar em um hospital público sem esparadrapo, remédio e maca. Que tudo era para ontem e ela sempre precisava apagar incêndio.

Quase todas as perguntas do questionário foram respondidas de maneira irônica, com o intuito de reforçar a baixa qualidade da figuração. Em meio a esse misto de entrevista, preenchimento do questionário e observação, descobrimos que o problema no computador era um simples comando de salvamento do arquivo, uma lista de alunos transferidos de outras escolas e que, se não fosse nossa ajuda, ele teria se perdido ou precisaria ser refeito.

Por coincidência, um senhor, que já esperava para ser atendido, pediu o documento de transferência do filho que tinha vindo de uma escola de outro município, reclamando tratar-se da terceira vez que ele voltava à escola para conseguir esse documento. Saímos, fechamos a porta e ficamos a imaginar quantas dessas situações continuarão a acontecer na Figuração Beta, dificultando a vida de muitos alunos, familiares, professores e funcionários no transcorrer do ano, percepção que somente a pesquisa de campo é capaz de nos propiciar.