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PERGUNTO-ME, ENTRETANTO,

No documento O universo poético de Armando Artur (páginas 48-51)

A Poesia de Armando Artur 2 Breve biografia

PERGUNTO-ME, ENTRETANTO,

se poderia falar de modo alheio, se poderia, porventura,

ignorar esta tarde de revolta, na qual obstinadamente resistimos em durar.

Para esquecer as difíceis e rudes noites maculadas de frio e nojo, falo desta tarde acesa

na qual nos reencontramos com os nossos mortos.97

É evidente a questão da memória, de revolta e de desencanto que leva o poeta moçambicano a questionar, a se autojustificar sobre o passado de miséria, flagelos e morte. O tempo torna-se um misto de sentimentos. E tomando as palavras de Octávio Paz, O poeta se

sente perdido no tempo,98 entre a recordação que conduz ao sofrimento e à revolta. Este

interpelar, embora passível de angústia, também traz a esperança na qual obstinadamente/

resistimos em durar. E para deixar para trás as noites maculadas de frio e nojo, o eu-poético

torna a falar da importância do sol (a vida) quando afirma: falo desta tarde acesa/na qual nos

reencontramos/com os nossos mortos. Tarde de luz, de sol ainda presente. O eu-lírico revela,

por meio da poesia, um tempo já não matinal, no alvorecer, mas sim um tempo de luz terminal, a tarde, através do qual é permitido evocar os que se foram.

Na poética arturiana, constata-se o poder do sonho e da imaginação. Neste sentido, Bachelard afirma: A alma sonha e pensa, e depois imagina.99 No mundo da poesia também

funciona assim, o poeta sonha, pensa e escreve através da imaginação.

Os poemas intituladosFALO DESTA TARDE ACESAcomprovam a presença da memória

que, como vimos, atravessa toda a obra de Armando Artur:

cuja aba luminosa

me lembra o olhar alucinado das gaivotas.

Falo desta tarde acesa cuja presença e ausência

me lembra o enigma dos mortos.100 97Artur, A. (1996:35).

98Paz, O. (1982:181). 99Bacherland, G. (1993:181). 100Artur, A. (1996:36).

Outro poema, de mesmo título:

igual a si própria

como o lume das fogueiras. Falo desta tarde acesa passiva na sua condição como as pedras que ao relento vão durando.

(Mas como falar desta tarde se, impassíveis, as moscas pousam na aba deste dia?)101

O tema tarde acesa é motivo de dois poemas com características pictóricas.102 O primeiro, composto por duas estrofes (tercetos), apresenta expressões características do discurso oral. O título e os versos, iniciados por formas verbais de tipo declarativo, falar (de étimo latino, fabular) falo, (contar, efabular, etc.) e a forma pronominal do verbo lembrar, me

lembro (repetidas nas duas estrofes) remetem para o formulário inicial do conto tradicional

“Era uma vez…”. No poema, as mesmas expressões concorrem para o que se pode designar como paralelismo formal, presente na primeira e segunda estrofe: FALO DESTA TARDE ACESA/ cuja aba (…)/ me lembra (…) (primeira estrofe) e Falo desta tarde acesa/ cuja presença (…)/ me lembra (segunda estrofe).

Numa análise semântica do poema, tendo em conta que o sujeito poético se propõe falar acerca de algo, a metáfora contida no título e no início da segunda estrofe, tarde acesa se refere a um cenário paisagístico ou quadro pictórico, subordinado ao tema, luminosidade do entardecer. Nesta linha interpretativa, o poema participa no que se designa de poesia ecfrástica (do gr. Ekfrasis– termo que significa descrição, neste caso, remete para uma poesia descritiva que tem como objeto de contemplação toda a obra de arte visual (…). O poeta ecfrástico raramente se contenta com uma descrição objetiva do que se observa, quando tem possibilidade de comunicar o seu próprio gosto.103

101Artur, A. (1996:37).

102 Bachelard, G. (1993:181). A propósito da relação da poesia de A. Artur com a pintura, note-se o projeto intitulado «Sonho, Amor, Erotismo e Incerteza em poemas de Armando Artur e a arte pictórica de Naguib Elias Abdula» (Jasbinschek, Gabriella S., e Secco, Carmen L.T.R., 2006), através do qual se tenta definir o sentimento de incerteza comum à geração literária moçambicana do pós independência que se refugia nos sonhos, procurando, por intermédio do amor e do erotismo, restabelecer a harmonia de outrora. (<http:/www.sigma.ufrj.br>. Consultado em: 07/08/12) Também o livro do autor, No Coração da Noite inclui sete ilustrações, figurações zoomórficas e antropomórficas, da autoria de Ídasse, um dos fundadores da revista Charrua.

103Ceia, Carlos, S. V. “Ekfrasis”, E-Dicionário de Termos Literários, coord. De Carlos Ceia, ISBN: 989-20- 0088-9. Disponível em: < http://www.edtl.com.pt>. Consultado em 17/07/2012.

Assim o Sol, símbolo de energia vital, embora não referido explicitamente, está presente através de sensações visuais, como por exemplo, tarde acesa e aba luminosa (primeira estrofe). Nesta perspetiva, as duas expressões parecem sugerir a paisagem céu/mar, alusão, aliás, explícita através dos substantivos aba, que significa ora ou margem, e gaivotas - componentes de um espaço marítimo. O elemento plural remete para o coletivo, bando ou grupo. A personificação olhar alucinado das gaivotas refere uma circunstância de irracionalidade e contrasta com a simbologia do termo gaivota, ave de liberdade. Na segunda estrofe, quer o oximoro presença e ausência, quer a metáfora o enigma dos mortos, expressam o ciclo natural do dia que dá lugar à noite, tal como a vida sucede à morte.

No segundo poema, a tarde transforma-se. É o pôr-do-sol e a noite que se aproxima. As comparações como lume das fogueiras, como as pedras que ao relento/ vão durando, mostram a entrada da noite, da morte e da memória expressas nas metáforas da pedra e da fogueira.

A interpretação final da última estrofe, Mas como falar desta tarde/ se, impassíveis, as

moscas/ pousam na aba deste dia?, expressa a impossibilidade de o poeta falar da tarde acesa,

porque surge em cena um elemento desconcertante: moscas104 que pousam. A simbologia

ocidental relaciona o elemento moscas com a morte, pois se multiplicam através da decomposição orgânica.

Os Dias em Riste, livro publicado em 2001, apresenta valores morais e críticos à

conduta humana, ora num tom discursivo, ora num tom proverbial. Segundo Ana Mafalda Leite, a poesia de Armando Artur parece também viver deste compromisso conciliatório sobre a conduta humana, de que a temporalidade se investe.105

O poema NEGAÇÃO é apresentado em tom discursivo, interrogante, apelativo. Essa

estratégia poética evolui de livro para livro, e não poderia ser diferente neste poema de Os

Dias em Riste:

Mas se os dias nunca foram os mesmos porque razões me querem sempre repetido? (Querem-me igual

aqui e agora, ontem e amanhã?) No compasso do tempo

104 Com significados diferentes do poeta Armando Artur, as moscas servem de temas, como por exemplo, o poema “A Mosca”, do escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1908). Ver Machado, A. (1964:69-71). Ver também o poema “Las Moscas”, do espanhol António Machado (875-1939) que serve de evocação à infância feliz do poeta. (In: Soledades. Galerias. Otros poemas. Edción de Geaffrey Ribbans. – Madrid. 1989:158. 105Leite, A. (2003:150).

não há lugar para o reacender do lume.106

Nessa interpelação, diz-se ser impossível ser o mesmo, pois nem os dias são similares. E o sujeito continua o discurso contestando a imutabilidade pela impossibilidade de ser igual ao que era no passado: No compasso do tempo/ não há lugar para o reacender do lume. O ciclo atual dos dias (“compasso do tempo”) não permite ao poeta estagnar, ou voltar a ser o mesmo no momento presente, quer no passado, quer no futuro, pois a vida é efémera e irrepetível. No entanto, observamos que as imagens de esperança se definham: não há lugar

para o reacender do lume.

A vontade de resistir e permanecer como a pedra é notada no seguinte poema:

No documento O universo poético de Armando Artur (páginas 48-51)