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A permanência dos hospitais psiquiátricos sob as antigas e novas formas

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 138-148)

CAPÍTULO 2 – Conquistas e desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira

2.3. Para fazer avançar a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial: denunciando algumas fragilidades da política de saúde mental no Brasil

2.3.4. A permanência dos hospitais psiquiátricos sob as antigas e novas formas

Carregamos durante todos esses anos a contradição entre as histórias dos usuários libertos do hospício graças à rede substitutiva e uma Reforma que não se completa. A porta de saída do hospital psiquiátrico brasileiro foi aberta, mas sua porta de entrada nunca foi definitivamente fechada. No estado de São Paulo a realidade dos hospitais psiquiátricos ainda é grave. O último Censo Psicossocial que, em 2014 mapeou a população abandonada nos Hospitais Psiquiátricos do Estado (CAYRES et al, 2015), revela apenas um pouco do muito que ainda há por ser feito. O Estado possui ao todo 53 hospitais psiquiátricos10, estando 11 deles no

Departamento Regional de Saúde da Grande São Paulo. Nestes hospitais vivem, na

condição de moradores, 4.439 pessoas. O dado mais alarmante, contudo, vem a seguir. Esse número em 2008 era de 6.349 moradores. Ocorre que nesse período 739 moradores saíram do hospital para viver em Residências Terapêuticas e 1.170 morreram, restando ainda uma pessoa em relação à qual não há informação sobre saída ou óbito. O que significa que o número de pessoas que foram a óbito sem que pudéssemos lhes dar o tão sonhado direito à liberdade da utopia antimanicomial foi maior do que o número de pessoas desinternadas.

Nestes seis anos, a estratégia de desinstitucionalização fez diminuir em 11,6% o número de moradores de hospitais psiquiátricos e o óbito fez diminuir outros 18,4%, restando do total de moradores existentes de hospital psiquiátrico no Estado em 2008 ainda 69,9% na mesma condição. Quantos anos mais precisaremos? E quantos precisarão morrer?

10 Segundo dados do Ministério da Saúde, São Paulo é o terceiro maior estado em número de leitos

por habitantes (0,218 leitos por 1000 habitantes), atrás somente dos estados de Alagoas e Rio de Janeiro (BRASIL, 2015).

Não bastasse esse dado, o senso indica ainda que dos 4.439 moradores de hospital psiquiátrico existentes hoje no estado de São Paulo, 702 foram internados a partir de 2008. Vinte anos passados do início do processo de Reforma Psiquiátrica no país e nós continuamos a produzir uma nova geração de moradores de hospitais psiquiátricos. Do total de moradores que vivem hoje nos hospitais psiquiátricos do Estado, 74,5% possuem entre 11 e 55 anos de internação em hospital psiquiátrico.

As regiões do Estado com maior número de moradores são Sorocaba (1600)11, São João da Boa Vista (749), Marília (548) e Grande São Paulo (264). Além disso, algumas regiões registraram neste mesmo período o aumento no número total de moradores: São José do Rio Preto (73,7%), Taubaté (34,5%) e Araraquara (14,3%) (CAYRES et al, 2015).

A militância da Reforma Psiquiátrica, que tomou fôlego para lutar pela radicalidade antimanicomial na Marcha de 30 de setembro de 2009, não recuou diante dessa realidade, mas pouco tem se debruçado sobre ela e essa pauta nos parece bastante ausente dos Congressos e Encontros que muito debatem a RAPS.

Ocorre que, em defesa da radicalidade antimanicomial, vimos nos anos da década atual o campo da militância absolutamente tomado pela resistência a uma política sobre drogas no Brasil que, ganhando centralidade no cenário nacional no início dessa década, faz cotidianamente – não bastasse os velhos manicômios que restam por fechar –, abrir outros tantos sob um novo/velho formato.

Em 2010, em pleno processo de disputa e debate eleitoral para o governo estadual e federal, um decreto presidencial anunciou um Plano Integrado de

Enfrentamento ao Crack e outras Drogas que, ao lado da implementação de CAPS

AD 24 horas, leitos em hospitais gerais e Casas de Acolhimento Transitório, previa o financiamento público de comunidades terapêuticas. Não foram poucas as manifestações, as cartas, os posicionamentos, as ações, as audiências, as deliberações no legítimo campo do controle social que publicamente se colocaram contrários a algumas medidas e diretrizes anunciadas no Plano, desde 2010. Tais diretrizes já eram então, mais que anunciadas, concretizadas: a implementação de velhos, vencidos e há muito combatidos recursos e estratégias de assistência.

11 Apesar da assinatura em dezembro de 2013 do Termo de Ajustamento de Conduta que, diante das

denúncias de morte e maus-tratos, corresponsabilizou governo federal, estadual e municipal para o fechamento dos hospitais psiquiátricos da região e a implantação da RAPS, as estratégias de desinstitucionalização não avançaram o suficiente e têm sofrido importantes ameaças à sua continuidade, decorrentes, dentre outros aspectos, de modelos de gestão adotados, diante do que assistimos o absoluto silêncio das instâncias de governos submetidas ao ajustamento.

No mesmo período, vêm a público cenas brutais e violentas protagonizadas pelo Estado em grandes municípios brasileiros, legitimando a internação compulsória sob a justificativa de possibilitar a vitória da sociedade na luta contra uma substância perigosamente nociva. Ações dirigidas a uma determinada parcela da população: aquela concentrada nas cenas de uso de drogas que melhor representam a situação de miséria em que vive uma parcela significativa da população brasileira e de violação de direitos a que estão submetidas pela omissão do Estado diante do resultado da profunda desigualdade social no Brasil.

Para destacar alguns posicionamentos apresentados desde 2010, podemos citar publicações que circularam na IV Conferência Nacional de Saúde Mental

Intersetorial, a qual enfrentou esse debate e deliberou pela não remuneração de

comunidades terapêuticas pelo Ministério da Saúde. No ano de 2011, já com algumas ações mais consolidadas e os debates mais avançados, a 14ª Conferência

Nacional de Saúde decidiu pela utilização da estratégia de Redução de Danos na Política Nacional sobre o uso de álcool e outras drogas, reafirmando os dispositivos

da RAPS, reconhecidos pelo SUS. Essa Conferência repudiou, por meio de uma moção, a proposta do Governo Federal para o Plano Plurianual 2012-2015 de financiamento das chamadas Comunidades Terapêuticas (BRASIL, 2012).

Ainda no ano de 2011, o Conselho Federal de Psicologia publicou o relatório de sua 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos, realizada em locais de internação para usuários de drogas. Importante instrumento que caracteriza e torna pública a denúncia dos princípios que orientam o trabalho na maioria das instituições dessa natureza e suas práticas decorrentes, não foi suficiente para barrar, ao lado de inúmeras outras denúncias públicas, a incorporação dessas Unidades à Política Pública Nacional brasileira. Alerta o relatório final sobre a inspeção:

A pergunta que nos orientou − sobre a ocorrência de violação de direitos humanos − infelizmente se confirmou como uma regra. Há claros indícios de violação de direitos humanos em todos os relatos. De forma acintosa ou sutil, esta prática social tem como pilar a banalização dos direitos dos internos. Exemplificando a afirmativa, registramos: interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o teste de HIV − exigência esta inconstitucional −, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências registradas em todos os lugares. Percebe-se que a adoção dessas estratégias, no conjunto ou

em parte, compõe o leque das opções terapêuticas adotadas por tais práticas sociais. O modo de tratar ou a proposta de cuidado visa forjar − como efeito ou cura da dependência − a construção de uma identidade culpada e inferior. Isto é, substitui-se a dependência química pela submissão a um ideal, mantendo submissos e inferiorizados os sujeitos tratados. Esta é a cura almejada (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011, p. 190).

Impossível conciliar em uma política de redução de danos as práticas orientadas pela busca de uma humanidade livre das drogas. Impossível sustentar as intervenções que são violadoras de direitos humanos, mas que se legitimam e se camuflam dessa condição na medida em que respondem à tentativa de proteger o homem do perigo da droga. Reedição de uma história já conhecida pela sociedade brasileira. Diante dos usuários de drogas, loucos do século XXI, se reedita a mesma relação estabelecida com a loucura. E repetindo a história, não houve resistência que impedisse o financiamento público de um polo privado de clínicas que se espalham por todo o país, violando direitos e sustentando-se agora como o poderoso campo da indústria da dependência química.

As críticas à inclusão dessas instituições nas políticas públicas podem ser sintetizadas em três pontos: a incompatibilidade dada pelo caráter religioso que as orienta e o princípio de laicidade do Estado; a privatização dos serviços públicos; e a adoção de métodos terapêuticos que violam direitos humanos. Cabe registrar que, no contexto de discussão acerca do consumo de crack no país, essas instituições – em sua maioria, privadas e de caráter religioso – foram incluídas pelo governo federal na rede de atenção psicossocial, assim como nas políticas sustentadas pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Organizadas em federações, essas entidades mobilizam e recebem expressivo apoio legislativo em todos os níveis de governo, contam na Câmara Federal com uma Frente Parlamentar Mista de Defesa de seus interesses e recebem verbas públicas de diferentes órgãos e níveis de governo, mesmo em face de recorrentes denúncias de práticas de violação de direitos humanos (SILVA, 2015, p. 130).

O movimento antimanicomial ingressou na Frente Nacional de Drogas e

Direitos Humanos, se encontrando com outros movimentos, associações e usuários

implicados com a questão. Ainda hoje investe incansáveis esforços para fazer frente a uma política nacional sobre drogas que tem sido uma grande produtora de encarceramento: cresce absurdamente o encarceramento no sistema prisional, cresce o número de usuários internados em comunidades terapêuticas e cresce nos manicômios judiciários a população cuja patologia que justifica sua inimputabilidade é a dependência química.

Em meio aos hospitais psiquiátricos por fechar e em meio às novas modalidades de hospício que se instauraram nos últimos anos para atender a população usuária de álcool e outras drogas, resta ainda uma parcela de hospitais, aqueles que resistiram à Reforma Psiquiátrica, que sequer foram tocados por ela e que puderam inclusive, em alguns casos, ser inaugurados após a Lei N. 10.216/01: os hospitais para loucos infratores. O primeiro Censo de Hospitais de Custódia, realizado no País no ano de 2011 (DINIZ, 2013) procura, de forma inédita, conhecer quem são esses indivíduos anônimos e abandonados, cuja singularidade aguarda algum tipo de reconhecimento.

O primeiro hospital de custódia e tratamento psiquiátrico foi fundado em 1921 no Rio de Janeiro. Em noventa anos de história dos manicômios judiciários no Brasil, jamais se realizou a contagem nacional desses indivíduos. Não se exploraram, sistematicamente, as razões para a internação, o tempo de permanência nos hospitais ou as consequências da engrenagem médica e jurídica que os mantém em restrição permanente de direitos. Há estudos locais ou em unidades específicas, mas nenhum retrato da população nacional como o apresentado nesta obra. O censo rompe com essa inércia, dando o primeiro passo para o enfrentamento político e humanitário da questão (DINIZ, 2013, p. 14).

O resultado desse Censo indica que o Brasil possuía em 2011 um conjunto 23

Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) e 03 Alas de Tratamento Psiquiátrico (ATPs), localizadas em complexos penitenciários. Sua população total

era de 3.989 indivíduos, dentre os quais 2.839 estavam em medida de segurança, 117 em medida de segurança por conversão de pena e 1.033 encontravam-se em situação de internação temporária. Das 2.956 medidas de segurança do país, 70% dos casos possuíam determinação de inimputabilidade.

Patrimônio brasileiro intocado pela Reforma Psiquiátrica, esse dispositivo segue operando sob a dimensão subjetiva da sociedade brasileira a serviço da falsa relação entre loucura e periculosidade. Ao lado dos outros dispositivos psiquiátricos que nosso Estado não extinguiu, segue compondo o quadro de uma Reforma Psiquiátrica incompleta, na qual convive com a rede substitutiva o hospital psiquiátrico, atravessando-a e operando na contramão da finalidade da transformação mais radical da relação entre sociedade e loucura.

O fechamento do hospital psiquiátrico não interrompe na origem a cadeia da “psiquiatrização” do sofrimento, produzida alhures; mas, cortando-lhe um anel central, determina significativas adaptações em todos os aparatos médicos-psiquiátricos, estruturados em referência à sua função, assim como na cultura que ele mesmo alimenta (BASAGLIA, 1977/2010, p. 247).

Assim, sua presença em nossos territórios contribui para manter vivos os velhos paradigmas que permitiram objetivar pessoas e singularidades como doentes mentais. Um antigo e permanente inimigo entre nós, diante do qual não podemos recuar, sob a pena de, como nos alertou Basaglia (1979), permitirmos a aberração de estabelecer uma relação de compromisso com a morte.

CAPÍTULO 3

– Os percursos da pesquisa: contribuições

metodológicas da Psicologia Sócio-Histórica

“Eu acho que o problema está nos limites do interior, que o problema do louco está no interior do problema da organização de trabalho” (Franco Basaglia). Apresentada a trajetória da Reforma Psiquiátrica brasileira, sua contextualização histórica e pontos centrais relativos a impasses e desafios enfrentados para que se efetive a sua radicalidade antimanicomial, podemos retomar a questão que orienta essa investigação para, apresentarmos então, os percursos da pesquisa que dela se desdobram. Como ponto de partida, localizamos aquilo que definimos como radicalidade antimanicomial da Reforma Psiquiátrica a partir de dois pontos fundamentais.

Primeiramente, a possibilidade de deslocar a referência à doença na abordagem ao objeto, reposicionando o olhar e a relação com a loucura a partir da existência-sofrimento das pessoas e sua relação com o corpo social (ROTELLI, 1988).

Apresentada a partir do referencial sócio-histórico, essa perspectiva implica apreender não mais a doença, mas as configurações subjetivas que se singularizam na produção de subjetividade, a partir da unidade entre o histórico e os processos de vida atual do sujeito (GONZÁLEZ REY, 2011). Na medida em que reconhecemos a produção da subjetividade como processo social e histórico, assumimos a necessidade de tomar como foco a relação da sociedade com a loucura, a partir da qual a mesma pode ser definida como doença mental, de modo a legitimar a perda do poder contratual do doente (BASAGLIA, 1968/1985, 1979a/2010).

Assim recolocada a abordagem do objeto, o segundo ponto de ancoragem de uma perspectiva antimanicomial de Reforma Psiquiátrica deve localizar-se na possibilidade de redefinição também da abordagem terapêutica, que passa a estar orientada pela transformação da vida concreta cotidiana dessas pessoas, enfrentando os problemas de ordem social que impossibilitam a restituição de sua cidadania, de modo a movimentar trocas sociais bloqueadas (ROTELLI, 1988; BASAGLIA, 1974/2010).

Tomamos o conceito de itinerários terapêuticos para expressar esse processo, revelando que os PTS construídos em uma rede comunitária de cuidados em saúde mental, como a rede produzida pela Reforma Psiquiátrica brasileira, devem estar orientados pela possibilidade de ampliação das práticas individuais e socioculturais possíveis aos sujeitos nos caminhos que percorrem em seu território para responder às suas necessidades de saúde (GERHARDT, 2006). Isso quer dizer que afirmamos como referência do sentido antimanicomial da Reforma Psiquiátrica a possibilidade de sua rede de serviços ampliar e transformar os itinerários do sujeito em seu território, ampliando e transformando assim suas relações com a comunidade, buscando efeitos sobre processos sociais e culturais, a partir de uma abordagem sobre a loucura que não a encapsule no campo da doença.

Localizadas essas duas ancoragens fundamentais da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, a presente pesquisa define um território do município de São Paulo (a partir do recorte que orientou o processo do PET-Saúde, conforme apresentaremos adiante), para analisar os projetos terapêuticos de cuidado em saúde mental, tecidos e sustentados por sua rede substitutiva. A finalidade dessa análise é caracterizar tais projetos terapêuticos, tendo como foco a seguinte questão: os PTS construídos a partir da rede substitutiva de saúde mental transpõem a referência à doença mental na relação com a loucura e empreendem uma transformação dos itinerários das pessoas em seus territórios? E, como complementação: que elementos obstacularizam essa transformação dos itinerários dos sujeitos a partir do território e qual a relação dessas dificuldades com a atuação da Atenção Básica em saúde, dado seu papel estratégico de coordenação do cuidado a partir do território e de articulação das redes intersetoriais nele possíveis?

Dito de outra forma, questionamos sobre o modo como esses projetos terapêuticos se orientam e sustentam numa perspectiva antimanicomial e, ao realizar esse questionamento, buscamos reconhecer os determinantes que dificultam essa potência na rede substitutiva. Na medida em que o sentido antimanicomial da Reforma Psiquiátrica está na transformação da relação entre sociedade e loucura e, portanto, encontra-se referido à criação de novas possibilidades de pertencimento, circulação e relação com o território, destacamos o papel estratégico da Atenção Básica e da articulação de redes intersetoriais para que os PTS produzam novas possibilidades de experiência de cidadania.

É importante salientar que a análise em torno dessa questão vem se tecendo ao longo de um processo que procuramos sistematizar por meio dessa tese. Nele, os campos da formação, da assistência e da pesquisa estiveram absolutamente articulados e foi essa articulação que sustentou a busca de respostas para essas perguntas. Isto é, tais respostas derivam dos dados oriundos da investigação do PET-Saúde, das experiências de inserção nessa rede e das reflexões produzidas no processo de formação alimentado por essas experiências de assistência e pesquisa. Por isso, os caminhos traçados nos capítulos anteriores representam a busca de aportes às análises que produziremos a partir dos dados selecionados da pesquisa do PET-Saúde para responder à questão acima formulada.

A partir desses aportes, podemos apontar que do ponto de vista da trajetória histórica da Reforma Psiquiátrica brasileira um conjunto de fatores se apresentam como dificultadores para que a rede substitutiva de saúde mental supere a abordagem da questão da loucura sob o escopo da doença e crie novos espaços de vida social como resultado de suas ações de cuidado. Resgatando as questões trazidas no capítulo anterior, podemos citar alguns desses fatores.

O primeiro deles refere-se ao caráter pioneiro das políticas de saúde como políticas sociais de acesso a direitos e a fragilidade na implantação de políticas públicas em outras áreas, como trabalho, cultura, esporte, habitação, lazer e assistência dentre outras que representam campos essenciais para a ampliação da cidadania requerida pelo empreendimento da Reforma Psiquiátrica.

Ao lado disso, o contexto neoliberal no qual se deu a implementação das políticas de acesso aos direitos preconizados na Constituição de 1988 resultou em importantes desdobramentos para a fragilidade da Reforma Psiquiátrica em nosso país. O financiamento das políticas públicas, os modelos de gestão adotados e as relações entre os campos público e privado produziram um favorecimento estatal aos interesses do capital, através de investimento em iniciativas alheias ao campo público. Disso decorre uma importante precarização da rede e das condições de trabalho necessárias para a articulação dos serviços, assim como para a continuidade e a integralidade do cuidado em saúde e saúde mental. Resulta também na manutenção do quadro estrutural de desigualdade e pobreza, em relação a qual a transformação das condições de vida resultante das políticas sociais empreendidas há pouco mais de uma década não representou a superação

das condições precárias enfrentadas pela população atendida nos serviços de saúde mental da rede pública.

Essa população, em muitos territórios, segue em condições de extrema pobreza e vulnerabilidade, com ausência de serviços públicos de garantia de direitos, impossibilitando a ampliação de itinerários para a restituição da cidadania por meio dos projetos de cuidado sustentados pela rede de saúde mental. Do ponto de vista dessa rede, ao lado da precarização já mencionada, destacam-se como dificultadores para a sustentação de uma Reforma Psiquiátrica Antimanicomial: a permanência do hospital psiquiátrico e suas novas configurações que, em convivência com a rede substitutiva, perpetua a referência ao modelo de supressão da doença mental e de seus sintomas; a institucionalização estatal e burocrática dos dispositivos de implementação da Reforma Psiquiátrica, que significou ao mesmo tempo a ampliação da rede e a dificuldade de sustentar posturas e concepções afinadas com a perspectiva de uma Reforma Psiquiátrica Antimanicomial; o recuo do protagonismo dos movimentos sociais vivido recentemente no Brasil e a institucionalização de suas formas de participação social pelos mecanismos do Estado, que, ao lado da ampliação e organização de perspectivas conservadoras fortalecidas pelos processos de mobilidade social vividos no país, enfraqueceram as

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