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Perspetiva filosófica

No documento Sentido de vida da pessoa com dor crónica (páginas 56-59)

Capítulo II Sentido de Vida da Pessoa com Dor Crónica: Desafio Para a Ciência

2.1 Espiritualidade e Praxis Clínica

2.1.1 Perspetiva filosófica

Desde Platão, Descartes e Kant que a filosofia sempre colocou o problema da possibilidade da experiência em geral, mas coube à fenomenologia13 a tarefa de analisar de um modo original a constituição do real enquanto sentido e significação mediante atos intencionais. Invertendo o determinismo kantiano inerente à experiência (ética formal), a fenomenologia reconhece que o objeto só se torna cognoscível na medida em que o sujeito cognoscente (Der Seiende), com base na sua subjetividade imanente e enquanto “presente vivo” (Dasein), o reveste das condições de cognoscibilidade (Kühn, 2010).

Para o filósofo e psicoterapeuta Rolf Kühn, cuja obra se inscreve no âmbito da fenomenologia da vida, inaugurada por Michel Henry, a cultura, enquanto objeto do pensamento filosófico-científico, é fruto do modo como a atividade do homem corresponde a essa “doação primordial do Mundo”. Esta reciprocidade entre a genealogia da vida e a historicidade da cultura é, para Kühn (2010, p. 101), um intento geral de explicação fenomenológica, que confere à noção de cultura um certo fascínio conceptual e espiritual,

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Que até há pouco tempo se reconhecia ser o fundamento da cultura ocidental.

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decorrente da ligação estreita entre a “filosofia da cultura” e a ideia de uma ontologia total, na Europa.

Esta perspetiva do historicismo ou positivismo do momento da grande crise moral, política, económica e militar da modernidade, na viragem do século XX, mantém-se atual, uma vez que os diversos discursos filosóficos, religiosos, estéticos, científicos, ideológicos e políticos “já não conseguem demonstrar a plausibilidade de tal referência (…) quer explicativa quer axiológica, subsistente até hoje, dando expressão à crise pós-moderna”.

Este paradoxo da noção de cultura e da sua crise, apenas é possível se a “dialética do tempo e do ser”, ao nível duma síntese à priori correspondente, constituir em simultâneo a produção e o produto de todo o devir histórico; ou seja, sendo a essência do ser no mundo (Dasein) ekstática14, pensada a partir do cuidado pelo outro (Sorge). Assim, também este cuidado apenas pode ser experimentado de modo satisfatório nessa sua essência “atribuindo sentido à existência” (Kühn, 2010, p. 101).

Quanto à ideia de Europa e génese de uma crise transcendental, Kühn, que corrobora o pressuposto franqueliano de ser na transcendência que o homem realiza a sua vontade de sentido, refere que, para Husserl, o problema depende das ciências empíricas que tratam da casualidade e dos acontecimentos “mundanos” e que na génese da fenomenologia husserliana “a ideia de uma teologia sempre esteve presente ao nível do seu ego transcendente”. Contudo, esta ideia vai ser “ignorada, pervertida ou esquecida em certos momentos da história, para provocar a crise de tal verdade transcendental originária” e atribuir à obra “O Homem em busca de Sentido”, de Viktor Frankl, o marco da emergência e credibilidade do conceito de “sentido de vida” no campo científico (Kühn, 2010, p. 105) e que, no presente estudo, a CoCIP procura exprimir.

O pensamento henriano representa, dentro do esforço de radicalidade (transcendência) e procura de sentido, uma das viragens mais fecundas e ousadas. Kühn (2010, p. 9) salienta dois pontos essenciais dessa viragem: o primeiro e mais decisivo, a subalternação da noção de intencionalidade husserliana, propondo a “autoafeção como a região mais arcaica da consciência”, uma vez que é nesse plano que se revela a própria vida de cada pessoa singular; e um segundo ponto, do sujeito universal e vazio de Husserl, contrapondo com a singularidade irredutível de uma ipseidade “como logos da vida” (Kühn, 2010, p. 10).

14No sentido de abertura ao longo do tempo.

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Ao radicalizar esta perspetiva, Kühn esclarece o conceito de “indivíduo” de Henry, como “gerado pela mera vida”, implicando que a autoafeção, pathos original ou experiência de vida, enquanto essência da subjetividade no sofrimento e no gozo, se constitui, simultaneamente, a fonte de todo o agir ou “praxis subjetiva” como “arquiforça” que, graças à subjetividade15, substancializa o real no cuidado ao sofredor de dor crónica. Desta forma, a “praxis terapêutica” não pode ser outro senão o intercâmbio das modalidades de cada vida individual, imersa na vida fenomenológica absoluta e que, nesta transação, a “transformação lenta da desesperança e angústia em felicidade” implica, em plena concordância com Frankl (2006)16, o ego ativo, emergente pelo “nascimento na Vida absoluta” ou seja “nascimento em Deus” (Kühn, 2010, p. 66).

Com efeito, o olhar clínico e a linguagem da vida, numa reciprocidade comunitária, recorrendo a todos os meios tecnológicos de diagnóstico e tratamento, revaloriza a dimensão do encontro e especificidade da relação terapêutica para oferecer a cada um “a confrontação com o nascimento indizível de cada um de nós no querer-se (autoafeção) da vida” (Kühn, 2010, p. 10), que “não se esgota em nenhuma teoria de pulsão ou afeto inconsciente, antes procura constituir uma reciprocidade intropática” (Kühn, 2010, p. 12).

Neste sentido, o verdadeiro olhar clínico obedece à lei transcendental incontornável, na qual o ethos filosófico, pedagógico e terapêutico, pode unir-se, numa aliança comum à vida una, cuja “filiação divina, em nós, é expressamente reconhecida pelo cristianismo”, mostrando-se mais real do que todas as realidades visíveis (Kühn, 2010, p. 71). O autor destaca a diferença entre o olhar transcendente apreendido como olhar ou praxis terapêuticos, investidos de dados fenomenológicos fundamentais que contrastam com a fenomenalização do ser mundano. Enquanto para este último, transcendência implica uma exteriorização de princípio que inclui, por necessidade interna, a indiferença das relações e a incapacidade de criar um conteúdo concreto ou sensível, o olhar terapêutico é levado a ver o sofrimento, a doença ou qualquer outra fragilidade física, psíquica ou espiritual17, com os próprios olhos da vida fenomenológica pura.

É por isso que a linguagem da vida é capaz de inverter as três características do “aparecer mundano”, ou seja: à exteriorização, impõe imanência da relação; à indiferença aos fenómenos entre si, contrapõe com o amor à vida; à carência ontológica, responde com

15Tal como a representação central, no “plano pré-motor” referida por Wall (2002, p. 217). 16Ver conceitos de”id-idificação e des-egoficação” do inconsciente (Frankl, 2006, p. 47). 17

Os mesmos planos através dos quais a perspetiva teológica judaico-cristã reconhece o ser humano (Frankl, 2006; Kühn, 2010; Ricoeur, 1986).

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a descoberta de um novo sentido em cada contexto.

Torna-se claro que o olhar terapêutico, enquanto olhar transcendente, implica a “restauração” ou “segundo nascimento” de uma vida individual original, sempre que esta esteja a ser experienciada subjetivamente, na sua realidade imanente, enquanto autoafeção

vivificante ” (Kühn, 2010, p. 72).

Assim, e no sentido de apreender um método prático, a partir das características fenomenológicas da “linguagem da vida” na prática terapêutica exposta, o autor propõe como única realidade que conta, ao nível da referida partilha18 intro-pática, a “imediatez da autoafeção recíproca” das pessoas em causa que resulta em empatia genuína, em oposição à convenção teórica, social, ou mesmo “mentira e hipocrisia” (Kühn, 2010, p. 73). Desta forma, pode concluir-se que este método estará sempre a ser respeitado, quando todo o olhar clínico, enquanto olhar transcendente do médico, enfermeiro ou outro terapeuta, visa por trás dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, um ser singular no seu sofrimento, na sua esperança, ou seja, na sua vida transcendental.

Nesta reflexão, identifica-se uma nítida equivalência de objetivos entre o constructo de ipseidade, da fenomenologia da vida, inaugurada por Michel Henry, e procurado pelo constructo central da CoCIP, isto é, ambos orientam a pessoa na sua singular subjetividade transcendente, para a descoberta de um sentido em cada contexto da sua existência e consequente integração do sofrimento inevitável.

Por analogia, conclui-se que o contributo da perspetiva filosófica para a filosofia do cuidado ao sofredor de dor crónica e a clarificação do conceito de CIP emergente se refere à justificação do ambiente da relação terapêutica estabelecida, caracterizada pela reciprocidade intropática, o amor à vida, a presença efetiva da vida, o refúgio na qualidade da experiência afetiva de si e pela descoberta de um novo sentido em cada situação.

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