Capítulo II Sentido de Vida da Pessoa com Dor Crónica: Desafio Para a Ciência
2.1 Espiritualidade e Praxis Clínica
2.1.2 Perspetiva teológica
Não se trata aqui da questão da dor e sofrimento dum povo ou personagem bíblico em particular, porém, para compreender as atuais repercussões espirituais, antropológicas e sociais, tem que ser feita a análise segundo o paradigma cristão e suas configurações teológicas.
18Partilha no verdadeiro sentido da palavra, porquanto, efetivamente, “aquele que educa e que cura não sabe mais da vida do que aquele
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Em oposição à vida de paz, amor e harmonia com o seu Criador, encontra-se em Génesis 3: 16 e 17 a origem da dor e do sofrimento humano. Dando ênfase à sua essência de ser livre, em busca desenfreada pela “autossuficiência”, o homem, confiante no infinito amor de Deus, menospreza (ir)responsavelmente outros atributos da Sua identidade, a Santidade e a Justiça, “afastando-se da razão da sua existência” (Bíblia, 1999; Rainho, 2010, p. 181).
O livro dos Salmos tem sido referenciado por vários autores como o background para o estudo da teologia do sofrimento do povo de Israel; um sofrimento não apenas vivido no quotidiano mas “…partilhado em comunhão com Yahwé” (Lourenço, 2006; Rainho, 2010, p. 65). No âmago da interpretação de textos bíblicos, ambos os autores, destacam os textos do profeta Isaías 52: 13-15 e 53, em especial o cap. 5319, como a referência à fonte da esperança, já que oferece uma nova perspetiva, na busca de um sentido capaz de orientar o homem de então (séc. VI e VII a.C.), mas também o de hoje, a integrar a dramaticidade da dor e sofrimento, ultrapassando seus próprios limites, “transcendendo-se”. Onde se anuncia o “Servo Sofredor”20 também se oferece o perdão incondicional para o problema de todo homem que, por meio da fé, aceita o sofrimento e morte do Messias em seu lugar21 e tal como Ele ressuscitou e vivo está, possa aceder à vida pela restauração da sua relação com Deus.
Desta passagem ecoa a resposta para a humanidade aporética, carente de certezas que, para Lourenço (2006), se deve à falta de sentido – sentido capaz de motivar a vida para além da sua temporalidade e perceção redutora do horizonte ao nível do domínio dos sentidos22.
Paralelamente à abordagem de Isaías, o autor analisa e compara a personagem de Jó quanto à experiência de sofrimento e dor. Conclui que, enquanto Jó, desconhecendo os desígnios de Deus quanto à sua agonia, manteve firme sua fé e absoluta confiança Nele; Isaías, lamentando a opressão do cativeiro babilónico em que se encontrava com seu povo, afirma conhecer a causa e finalidade (justiça punitiva Divina e correção associada à idolatria) dessa condição.
19Em particular no v.5: “Mas Ele foi ferido pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz
estava sobre Ele, e, pelas Suas pisaduras, fomos sarados” (Is. 53: 5).
20Neste contexto o termo pressupõe a noção de culpabilidade que justifica o sofrimento, ou seja, sofrimento merecido, contextualizando
como que uma relação de totalidade entre gerações, traduzida na relação “delito/culpa/castigo” (Lourenço, 2006).
21Pois Jesus assumiu os pecados de muitos em si mesmo, como espécie de sacrifício vivo, comparável ao sacrifício exigido pelo
Pentateuco, porém, num evento “único e irrepetível” (Lourenço, 2006, pp. 9 e 203; Rainho, 2010, p. 183).
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Esta é a nova forma “pedagógica e educativa” do homem se colocar diante de Deus e percecionar o sofrimento sempre como caminho, nunca como fim, “integrando o seu próprio drama” que no fundo o orienta “no seu itinerário”, em relação à lealdade a Deus, independentemente das acusações dos “amigos” deterministas23.
Desta forma Jó não apenas é “o rosto” de todo o homem reconciliado com o Criador mas, sobretudo, daquele que, mesmo não encontrando razão objetiva para o seu tormento como punição divina (não podendo por isso produzir arrependimento genuíno), não só o integra, mas o reconhece como oportunidade para desenvolver competências espirituais que melhorem o desempenho da sua missão na terra e reforcem seu compromisso de gratidão, fidelidade e esperança no Pai, o bom Pastor.
Verifica-se que nos textos apresentados se ressalta suporte argumentativo, suficientemente firme e consistente, para sustentar a emergente e frágil estrutura concetual da CoCIP no alívio e controlo à pessoa com dor crónica, tanto para a vertente da promoção do sentido de vida, como para a integração do sofrimento inevitável: promoção/reforço da confiança sob a forma de compromisso Promoção/reforço da esperança Competência para integrar experiências traumáticas CoCIP.
A esperança, enquanto resultado essencial da vida com sentido, permite estruturar a integração do sofrimento inútil. A definição teológica de esperança, resultando do enquadramento hermenêutico da epístola do apóstolo Paulo aos Romanos 5: 3 - 11, foca as experiências de limite e finitude do ser humano. Esta oração de sapiência descreve o “efeito dominó” subjacente ao processo de estruturação da esperança, firmada sobre uma sólida base axiológica e confirmada pela experiência. Apresenta a confiança em Deus24 como uma atitude promotora de “paciência” e esta como a única virtude que capacita para a “integração de experiências traumáticas”, após a qual se produz a “esperança”.
Conhecedor da carência e fragilidade humanas, no intuito de prevenir equívocos quanto ao efeito e à essência da esperança alicerçada em Cristo, o mesmo autor elucida que esta esperança “não traz confusão” antes “satisfação, (…) pela reconciliação com Deus” (Romanos 5: 5 e 11) e que Deus capacita o homem para aperfeiçoar esta relação, concedendo-lhe o “Fruto do Espírito”25 e habilitando-o a amar, a ser assertivo e manter o autocontrolo, expoentes referenciais do CIP.
23Vêem o sofrimento apenas como consequência do castigo de Deus, devido ao pecado. 24
Confere um sentido de vida firme e inabalável (Frankl, 2006; Lourenço, 2006; Rainho, 2010; Seligman, 2002).
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Este périplo não apenas esclarece e justifica o aparente paradoxo da 1ª parte do v. 3 do mesmo capítulo, “… gloriamo-nos nas tribulações”, mas institui a competência espiritual como o recurso de referência26, face às competências psicossociais, para a descoberta de um sentido na vida, ser íntegro e capaz de integrar experiências difíceis/traumáticas (Chickering, 1969; Erikson, 1977; Sebastião, 1995; Wall, 2002).
Partindo da construção ou “metamorfose antropológica” operada no homem que procura a reconciliação/novo nascimento em e aceita a orientação de Deus, focando o âmago da temática quanto à necessidade de reconhecer a dor e o sofrimento como um desafio para a prática clínica, constata-se que qualquer atitude terapêutica orientada para a integração do sofrimento inevitável beneficiará na aproximação à realidade fenomenológica, com abordagem espiritual para, em contexto, avaliar a resposta à questão do “sentido, das causas e dos resultados do sofrimento também no plano moral e religioso” Lourenço (2006, p. 67).
À luz deste paradigma, conclui-se que os resultados das pesquisas de Lourenço (2006) e Rainho (2010) são consensuais quanto à interpretação ontológica, dualista da experiência de dor e sofrimento: deuteronomista, como castigo face ao pecado e isaíaco- jobiana, como caminho (e não como fim, enquanto tempo de graça) para conferir à forma de ser e existir a identidade capaz de promover a esperança27 e outras virtudes28 que fazem da vida uma causa e uma entrega.
Esta perspetiva não só contextualiza, define e esclarece conceitos “obsoletos” como pecado, culpa, castigo, sofrimento, morte, arrependimento, perdão, gratidão, verdade, caminho, confiança, entrega, certeza, fé, confiança, paciência, esperança, amor e vida, como estabelece o paralelismo entre estes e a atual terminologia em uso: ansiedade, depressão, desesperança, autoconfiança, autoeficácia, autocontrolo, autotranscendência, autosatisfação, imanência, etc. Propõe ainda que, o homem de costas voltadas para Cristo desenvolve um carácter autossuficiente, focar-se sobre si próprio, sendo incapaz de produzir um genuíno sentimento de gratidão.
Conclui-se que, também a perspetiva teológica judaico-cristã defende que qualquer atitude terapêutica orientada para o controlo da dor e sofrimento beneficiará do alargamento dos limites do sofredor, por meio da abordagem espiritual, que oriente o ser
26Confirmado no quotidiano por e em cada cristão (Henry, 1990; Kühn, 2010; Lourenço, 2006; Rainho, 2010).
27Quanto à presença e soberania de Deus e que Ele fará o melhor. Pela certeza da vida eterna com O Pai de Amor, experienciada já aqui
e agora.
28
O Fruto do Espírito é, segundo a carta de S. Paulo aos Gálatas 5: 22, o amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão e autocontrolo.
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humano a procurar conhecer a sua condição e a aceitar o sentido fundamental da sua existência.
Depois de refletir sobre as perspetivas, que ao longo da história têm procurado dar resposta à questão do sentido da vida do homem e para facilitar a conexão à abordagem do desafio que a promoção do sentido de vida (logoterapia) representa para a clínica da gestão da dor, segue-se uma breve inclusão da evolução do conceito de Logos.