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O pesquisador ético-político: Análise de implicação com as instituições SUS, PNH, UNICAMP e

“Não podemos ser escravos de nada, nem mesmo de nossas próprias ideias”.

(David Capistrano) Este tópico tem início com um sanitarista inspirador, o médico e importante ator do Movimento Sanitário Brasileiro de vanguarda David Capistrano, cujo discurso destaca a urgência para que se evite a separação entre a consciência de uma prática política e a prática científica, e se construa mais fazejamento e menos planejamento (13). Segundo o autor, a prática política, a prática científica e a cultural precisam estar em relação para que realmente se possa mudar a realidade. Diante desse caminho difícil, valemo-nos do referencial da análise institucional para ressaltar a importância do aspecto implicação, elemento importante para que não interferíssemos negativamente na construção deste estudo.

Gilles Monceau (14)diz que “a implicação é a relação que indivíduos desenvolvem com a instituição”, e que as angustias e perturbações pessoais do pesquisador nessa relação devem ser analisadas para trazer um conhecimento novo. L’Abbate (15)diz que, como parte do método de intervenção socioanalítica, a análise das implicações consiste na etapa em que se pensam “os tipos de envolvimento de ordem afetiva, existencial e profissional dos participantes e do socioanalista”.

Compreendendo que a implicação existe por mais que não a desejamos, e que ela está presente na nossa relação com a instituição gerando alguns efeitos ainda que não saibamos (14), destacamos que a minha vinda a Campinas-SP para a realização do Mestrado Profissional em Saúde Coletiva, concomitantemente à especialização de Gestão em Saúde na UNICAMP, foi fundamental para o estabelecimento de novas relações com o Sistema Único de Saúde.

A experiência em Campinas trouxe o primeiro desafio: Como realizar um estudo de mestrado profissional que propõe o questionamento da humanização enquanto política pública nos serviços do SUS Campinas, se a pesquisadora não é trabalhadora do SUS municipal e tampouco é formada em ciências biológicas ou sociais? A minha disparidade no debate de algumas questões, principalmente devido ao afastamento da prática, evidenciou-se logo nos primeiros meses de mestrado. Assim, romper os muros da sala de aula tornou-se crucial e inevitável. Parecia que meu encantamento pelo que a PNH e seus agentes formuladores

propuseram necessitava enxergar de forma mais dialógica e refletir a teoria a partir dos serviços de saúde.

Ainda que eu seguisse a utopia de um mundo mais justo e igualitário, pela garantia do SUS enquanto direito inerente de cidadania, isso não bastava. Mas o apoio e companheirismo dos meus colegas de mestrado profissional, assim como o surgimento do nosso Coletivo Mandacaru: Resistir e Fulôrescer em defesa do SUS9, fizeram com que eu não desistisse de continuar a pesquisa.

Eram outros tempos. Atravessávamos uma ruptura democrática com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e parecia que a pesquisa não fazia mais sentido, já que a PNH buscava agir nas lacunas do SUS, e os cenários nacional e local estavam propícios para desmontes e retrocessos rápidos nas políticas sociais, entre elas o SUS.

Entretanto, percebi que a categoria trabalho não é apenas a relação empregatícia, e sim uma prática social. E como aluna do curso de Especialização de Gestão em Saúde passei a me considerar também como trabalhadora do SUS Campinas, envolvida nas atividades de dispersão no CS Rosália. Compreendi que a pesquisa também é trabalho. Pesquisadora ressignificada, construí laços e vínculos durante o ano de 2016 com os profissionais e a comunidade do CS Rosália, mais especificamente com os usuários membros do Conselho Local de Saúde10.

Passei também a ser militante do Movimento Popular de Saúde de Campinas e facilitadora da Comissão de Educação Permanente e Formação de Conselheiros do Conselho Municipal de Saúde, onde percebi o quanto os conceitos da Saúde Coletiva ainda estavam longes da população, assim como a própria concepção de humanização trazida pela PNH.

Porém, os espaços de reflexão eram necessários. Aos poucos ocupei o ensino, a pesquisa e a extensão através da participação no Coletivo de Estudos e Apoio Paideia, no Grupo de Estudos em Educação Popular da Coordenadoria de Assuntos Comunitários da UNICAMP

9 Intervenção do Coletivo Mandacaru do Mestrado Profissional em Saúde Coletiva da UNICAMP no

Departamento de Saúde Coletiva da FCM, em maio de 2016 - Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=2vKIU7ivu7k&t=101s. Acesso em janeiro de 2018

10 Trabalho de TCC da Especialização de Gestão em Saúde “Colorindo o SUS”. Disponível em

(CAC), no estágio docente nas disciplinas de Saúde e Sociedade I da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP e Saúde Coletiva II da Faculdade de Enfermagem da UNICAMP, e nas Oficinas do Conselho Municipal da Saúde e da Pastoral de Saúde de Campinas, como facilitadora. Essas experiências me direcionaram à reflexão sobre cidadania, protagonismo, emancipação e autonomia dos sujeitos, e ao entendimento dos desafios da formação em saúde e da implementação do SUS e dos conceitos intrínsecos à PNH.

Tratou-se de um movimento dialético entre o ser pesquisador e o ser militante, e a entrega profunda a essas instituições logo mostrou uma consequência: a sobreimplicação. Segundo Moceau (14) a sobreimplicação é identificada como a “impossibilidade de analisar a implicação”, quando agimos por dentro das instituições e começamos a perder a criticidade. Portanto, a imersão nas instituições e em seu movimento dialético, reduziam o espaço da minha capacidade reflexiva sobre as novas relações que haviam sido formadas.

Esse trajeto foi marcado por vários questionamentos limitados a um sentido único interpretativo e pouco embasado, como: Por que os gestores/alunos do curso de especialização associavam falas dos professores sobre a lógica e funcionamento do Estado a cunho político- partidário? Por que no Congresso da ABRASCO de Políticas, em maio de 2017, os congressistas lotaram a mesa que contava com ex-ministros da saúde, mas mantiveram esvaziada a mesa “Crise da política e da democracia representativa no Brasil: o papel dos movimentos sociais, dos partidos políticos e das instituições estatais na garantia dos direitos sociais e do direito à Saúde” que acontecia simultaneamente11, e contava com a presença de movimentos sociais e academia? Por que mesmo com toda a potência que a comunidade e a equipe de saúde do CS Rosália possuíam enquanto agentes transformadores de realidade, ainda não era possível ver união entre gestor, trabalhadores e usuários, em busca de mudanças?

Aos poucos, elaborava conclusões como se fosse inteiramente de minha responsabilidade a busca de saídas para esses impasses, principalmente no CS Rosália. Devido à crise da saúde instalada no município de Campinas, muitas vezes acreditei que a minha

11 Disponível em http://devel5.sedis.ufrn.br/abrasconatal/index.php/2016-10-25-20-17-51 Acesso

pesquisa poderia ser solucionadora desses conflitos e que eu pudesse procurar na UNICAMP outras possibilidades.

Contudo, o processo de escrita para a qualificação da dissertação foi gradativamente mostrando a minha ingenuidade como pesquisador sobreimplicado. Passei então a cursar a disciplina de Políticas Públicas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e o curso de curta duração Formação Política em Saúde I, realizado pela Associação Paulista de Saúde Pública (APSP), e decidi distanciar-me das atividades que ainda realizava, mesmo após o término da especialização e coleta das minhas entrevistas, no CS Rosália.

Não consegui transmitir esse distanciamento no trabalho de qualificação apresentado, mas com a ajuda da banca e orientação do professor Gastão Campos, decidi mudar o rumo da pesquisa. Para mim, era desafiador entender a PNH e sua proposta como obra aberta que se propõe a agir dentro e fora do Estado, relacionando sua forma ousada de se pensar política pública com os conflitos existentes dentro do SUS Campinas e do nosso campo de estudo.

Mesmo desejando contemplar os sujeitos da pesquisa para além de objetos de análise, abdicamos da etapa de validação das narrativas com cada entrevistado, e das oficinas de consenso (16), que havíamos planejado para construir participativamente ferramentas para o aprimoramento de implementação da PNH na atenção básica. Compreendi que essa atitude seria respeitosa tanto para mim, que estava em processo de saída da sobreimplicação, como para os sujeitos entrevistados. As oficinas e as devolutivas poderiam gerar novos conflitos, aos quais a pesquisa não podia e nem objetivava responder de forma rápida.

Assim, o novo caminho da pesquisa me ajudou a não interferir de forma negativa no resultado da pesquisa. Terminei o ano de 2017 com a construção coletiva e autogerida do I Fórum Permanente do Mestrado Profissional em Saúde Coletiva UNICAMP, o Fórum de Saúde Coletiva Aplicada à Vida: Cidadania como Produção de Saúde12. Deixo o Fórum como marca da minha incessante busca de ser um pesquisador ético-político e de entender que a Saúde Coletiva e a humanização em saúde também se fazem no dia a dia, e na interpretação de mundo antes mesmo da palavra e seus significados, como dizia Paulo Freire.

12 Disponível em http://redehumanizasus.net/i-forum-saude-coletiva-aplicada-a-vida-cidadania-

Talvez eu venha a inaugurar um novo termo, o de “arte-educadora sanitarista”. E, através do meu núcleo da arte enquanto existência, pois só a vida não basta13, que desejo vida longa ao mergulho no campo da Saúde Coletiva. Destes dois anos de me encharcar de realidade e de conhecimento empírico e científico, trago enquanto linha epistemológica do conceito de saúde, a definição de saúde enquanto “a capacidade de lutar contra tudo que nos oprime” (17).

Parafraseando Chico Buarque de Holanda14, diga ao primeiro que passa que eu sou do agir militante mais do que da prática acadêmica. Porém, a ocupação recíproca do agir militante nos espaços da pesquisa, ensino e extensão se faz necessária para que com a prática política, inerente à científica, abram-se possibilidades de mudança do status quo das instituições.