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Plano Nacional de Educação, o primeiro passo: PL 4155/

OS DISSENSOS E CONFLITOS DURANTE O PROCESSO DE ELABORAÇÃO E APROVAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO – LEI 10.172/

4.2 Plano Nacional de Educação, o primeiro passo: PL 4155/

No Congresso Nacional, a lei 10.172/2001, que instituiu o Plano Nacional de Educação, foi originada a partir do projeto de lei 4155 de 1998 (PL 4155/1998) apresentado

por um grupo de deputados111, e tinha como primeiro signatário o deputado Ivan Valente. Este projeto de lei foi elaborado por um conjunto de entidades de educação, de caráter sindical e científico pertencentes ao Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, a partir de reuniões organizadas em todo o país sob forma de debates, seminários, encontros, com participação de diferentes setores da sociedade, e sistematizada em dois Congressos Nacionais de Educação – os I e II Coned, em julho de 1996 e novembro de 1998, respectivamente.

O Plano Nacional de Educação do PL 4155/98 estruturou-se em cinco itens. 1) uma introdução em que se apresentavam os princípios de educação, de qualidade e de gestão democrática, sob os quais se baseava a proposta de plano; 2) um diagnóstico, 3) uma proposta de organização da educação nacional, em que se partia da concepção de sistema nacional de educação, de gestão democrática da educação, seus instrumentos, mecanismos, diretrizes e metas; e de financiamento da educação. O item 4) níveis e modalidades da educação com diretrizes e metas e, por fim, um item 5) formação profissionais da educação.

Especificamente, em relação à gestão democrática, na educação básica, o PL 4155/98 continha um subitem próprio, integrante do item organização da educação nacional, com concepções, instrumentos, mecanismos, diretrizes e metas. Além desse item, também havia referências no item introdutório, no sistema nacional de educação, no financiamento, nos níveis e modalidades de educação

O pressuposto filosófico que fundamentou o PL 4155/98 entendia a educação como instrumento de formação ampla, de luta pelos direitos da cidadania e da emancipação social, de preparação para a responsabilidade de construir, coletivamente, um projeto de inclusão e de qualidade social para o país.

A educação escolar é um instrumento fundamental para o desenvolvimento econômico, social, cultural e político de um país, de seu povo, e para a garantia dos direitos básicos de cidadania e da liberdade pessoal. Nesse sentido, este Plano concebe a escolarização como um patrimônio da sociedade; sua administração, planejamento e execução devem-se dar de forma mais ampla e democrática possível, abrindo espaço para todas as concepções, culturas, etnias, princípios e orientações, respeitado o conteúdo expresso na Constituição Federal de 1988. (DCD, 1998, p. 5955).

A concepção de gestão democrática do projeto de lei 4155/98 estava intrinsecamente vinculada à de educação. Se a escolarização era concebida como um patrimônio da sociedade,

111 O Plano Nacional de Educação elaborado no II Coned, apresentado ao Congresso Nacional, foi assinado pelos

deputados Ivan Valente, José Machado, Wolney Queiroz, Neiva Moreira, Ricardo Gomyde, Aldo Arantes, Pedro Wilson, Lindberg Farias, José Pinotti e Alexandre Cardoso.

como espaço de socialização do conhecimento historicamente produzido pela humanidade112, todas as etapas constitutivas, tais como sua administração, planejamento e execução só podem se realizar de forma democrática, garantindo a participação dos sujeitos com direito à voz e à decisão sobre seu processo de escolarização.

De fato, inerente a essa concepção de educação e de gestão democrática, está a de ser humano.

O ser humano é concebido como ser ativo, crítico, construtor de sua própria cultura, da história e da sociedade em que vive para tanto é imprescindível o seu acesso a uma escola que, além de formação ampla, desenvolva valores e atributos inerentes à cidadania. Tal escola se opõe aquela que vincula a educação às prerrogativas mercadológicas globalizantes com o intuito de formar indivíduos pretensamente consumidores e competitivos. A educação nessa perspectiva, vai dirigir ao ser humano integral, englobando todas as dimensões de sua relação com o mundo. [...] Nessa dimensão a escola se redefine como o espaço democrático de elaboração de valores, de tolerância e respeito às diferenças, de produção e disseminação de conhecimento e de convivência humana e social, cultural e política, levando sempre em consideração a realidade das relações sociais e de trabalho. (DCD, 1998, p. 5955).

Em sua apresentação, o PL 4155/2008 expôs os princípios nos quais fundamentava suas propostas de forma a vincular suas metas educacionais a uma concepção explícita de ser humano, sociedade, educação, democracia, gestão, Estado. Entre os princípios anunciados encontravam-se a busca de igualdade, direitos e justiça social e, portanto, um projeto de desenvolvimento nacional que tenha como centro o aperfeiçoamento e a dignificação do ser humano e não do mercado.

A concepção de democracia que permeia o PL 4155/1998 vinculava-se ao princípio da inclusão. Seu objetivo é socialmente includente.

O mundo e a sociedade, que constituem o meio no qual se dá a formação para a cidadania, devem ser forjados através da solidariedade que busca incessantemente a inclusão, contemplando também diversos setores sociais historicamente excluídos: crianças pobres, jovens e adultos trabalhadores e desempregados, pessoas com necessidades educativas especiais e grupos tidos como minoritários: negros, índios, homossexuais. (DCD, 1998, p. 5955).

A visão da democracia que permeou a elaboração desse Plano Nacional de Educação fez jus à ideia de que tal iniciativa não poderia restringir-se ao poder executivo ou ao

Parlamento, mas atribuir ao homem e à mulher comum, ao cidadão, a oportunidade de participar ativamente desse processo, através de seus organismos representativos. Por ser assim, “tanto o método quanto o conteúdo [do] Plano refletem o caráter coletivo e democrático de sua elaboração, assim como deverá fazê-lo na sua implementação e avaliação.” (DCD, 1998, p. 5955)

Esses instrumentos propiciaram experiências exitosas e a construção de uma concepção de gestão democrática da educação que ocupou um lugar central no PL 4155/1998, podendo mesmo ser compreendida como um eixo integrador no qual toda a organização da educação brasileira proposta deveria se nortear. A gestão democrática da educação não foi tratada, portanto, como uma meta, embora houvesse metas explícitas para sua implementação, mas como um eixo estruturante que permeou todo o plano, integrando suas diretrizes e metas.

No PL 4155/1998, a organização da educação nacional foi concebida nos termos de um Sistema Nacional de Educação, organizado em bases democráticas com os processos de decisão e execução descentralizados, de forma a fortalecer as escolas e unidades prestadoras de serviços. Assim, sugeria a instituição de um Fórum Nacional de Educação, apresentado como instância máxima de deliberação responsável pela política nacional, definição de diretrizes, prioridades dos planos nacionais de educação e sobre a execução orçamentária, constituído com ampla representação dos setores sociais. Da mesma forma, composto por ampla representação social e organização de forma paritária, o Conselho Nacional de Educação era proposto como órgão normativo e de coordenação superior do sistema em articulação com poder legislativo e executivo, com a comunidade educacional e a sociedade civil organizada e com as políticas públicas de outras áreas.

Os Conselhos Estaduais de Educação (CEE), os Conselhos Municipais de Educação (CME), os Conselhos Escolares na educação básica e os Conselhos Universitários na educação superior, deliberativos e organizados de forma a assegurar em sua composição a representação de todos os setores envolvidos com a educação, confeririam caráter democrático ao funcionamento e à gestão do sistema.

A ideia de gestão democrática defendida no PL 4155/1998 compreendia que a “escola pública pertence ao público, que decide sobre o projeto pedagógico com o qual todos se comprometem, desempenhando seu papel com competência e responsabilidade” (DCD, 1998, p. 5956). Esta concepção de gestão democrática fundamenta-se na ideia de que a escola pública constitui-se em um espaço público de direito, promotora de igualdade e, portanto, onde se deve garantir estrutura material para um serviço de qualidade, ambiente de trabalho coletivo que vise à superação de um sistema educacional seletivo e excludente.

A gestão deve estar ingerida no processo de relação da instituição educacional com a sociedade, de tal forma a possibilitar aos seus agentes a utilização de mecanismos de construção e de conquista da qualidade social na educação. Nessa perspectiva, a instituição educacional deve ter como princípios fundamentais: o caráter público da educação; a inserção social e a gestão democrática onde as práticas participativas, a descentralização do poder, a socialização das decisões desencadeiam um permanente exercício de conquista da cidadania. Esta última é concebida como materialização dos direitos fundamentais legalmente constituídos entre elas o direito à educação. (DCD, 1998, p. 5965).

A instituição educativa, nesses termos, foi percebida como lócus privilegiado para a formação da cidadania e a gestão democrática da educação, elemento qualificador do direito à educação e teve sua justificativa relacionada a um processo mais amplo que é o movimento de democratização da sociedade brasileira e do fortalecimento da cidadania. Para tanto, teria o sentido de possibilitar a plena participação dos sujeitos na sociedade em condições necessárias para decidir sobre os destinos das instituições, da nação e dos cidadãos.

As práticas, experiências, projetos desenvolvidos na escola, o modo como ocorre o processo educativo, as relações entre professor e aluno em sala de aula, as formas de gestão e as relações que se estabelecem na escola, para além dos processos de ensino e aprendizagem, também têm conteúdo formativo, o que abrange múltiplas dimensões da vida em sociedade, tal como o exercício da cidadania.

Desse modo, ao projeto pedagógico da escola atribuiu-se centralidade como um dos mecanismos de democratização da gestão. Compreendido como a própria expressão da organização educativa da escola, seus princípios democráticos e participativos, o projeto político-pedagógico possibilitaria o aprofundamento da cidadania.

Tanto as escolas públicas como as particulares terão como órgão superior os Conselhos de Escola, constituídos a partir de eleições diretas por representantes dos alunos, de seus pais ou responsáveis, dos trabalhadores em educação e da sociedade civil organizada. Compete aos Conselhos de Escola a colaboração, aprovação e acompanhamento do projeto político- pedagógico da escola, dos planos escolares e da proposta orçamentária, com base em diretrizes emanadas dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação. O projeto político-pedagógico das escolas contemplará princípios e procedimentos que promovam o aperfeiçoamento dos processos de gestão democrática de trabalho didático-pedagógico e de avaliação nas unidades escolares. (DCD, 1998, p. 5964).

Assim, os conselhos nacional, estadual, municipal, escolares e universitários foram compreendidos como mecanismos importantes para a materialização de uma gestão

educacional democrática, participativa e representativa dos segmentos sociais, ter caráter normativo, deliberativo e constitutivos com maior participação da sociedade civil. “Outros mecanismos são o Fórum Nacional de Educação, o projeto político-pedagógico das instituições educacionais e eleição para dirigentes das mesmas”. (DCD, 1998, p. 5966).

No que se refere à eleição de dirigentes de instituições educativas

[...] deve ser direta e integrar o projeto político-pedagógico da instituição. Este projeto político-pedagógico deve garantir o trabalho coletivo de todos os segmentos da comunidade acadêmica. A gestão democrática da educação, praticada através de mecanismos descritos, tem por objetivo o desenvolvimento e o estabelecimento de canais e formas de atingir um maior qualidade social no caminho da transformação da escola, da universidade e da sociedade. (DCD, 1998, p. 5966).

Para o projeto de lei PL 4155/1998, isoladamente, as eleições não têm força transformadora por não modificar a estrutura, as relações e a organização da instituição, mas as experiências democráticas com a participação de todos os segmentos constitutivos da comunidade escolar, com a construção de projetos político-pedagógicos participativos e coletivos, de colegiados e as representações dos grupos sociais presentes no interior das instituições indicam para o favorecimento e melhora das condições de aprendizagem, da organização escolar, do respeito a identidades sociais diferenciadas, formação de lideranças e democratização das instituições.

Assim, o PL 4155/1998 apresentou um item específico para a gestão democrática da educação com as seguintes diretrizes:

- Descentralizar o Estado possibilitando, cada vez mais, autonomia didático- pedagógica, administrativa e financeira das instituições educacionais.

- Revogar as legislações que impedem a gestão democrática dos sistemas de ensino e unidades escolares, buscando mecanismos para impedir o retrocesso da democracia.

- Articular democraticamente as diferentes esferas de poder (federal, estadual e municipal), visando a necessária integração seus planos de educação.

- Articular democraticamente cada sistema de educação considerando as especificidades das unidades e as demandas educacionais da população. - Estimular a discussão sobre o direito à tomada de decisão pelos usuários e profissionais da educação, enquanto exercício de cidadania, realizando campanhas, com materiais adequados, que incentivem a participação e o envolvimento das comunidades na gestão das unidades educacionais e garantindo condições adequadas (informações, locais, horários, materiais, etc.) para o exercício da gestão democrática da educação em nível local e mais amplo.

- Utilizar amplamente os veículos de comunicação de massa objetivando a participação da sociedade na definição das prioridades educacionais, em âmbito local, regional e nacional, divulgando amplamente as experiências emancipadoras de participação e decisão nos rumos da educação, de modo que possam ser reproduzidas.

- Garantir autonomia político-pedagógica às Instituições educacionais de educação básica e superior assegurando-lhes condições materiais e financeiras adequadas e suficientes.

- Avaliar interna e externamente as instituições educacionais, levando em conta seus recursos, organização, condições de trabalho, entre outros indicadores, em processo coordenado pelos Conselhos Superiores e Conselhos Sociais (nas instituições de educação superior) e pelos Conselhos Escolares (nas unidades escolares de educação básica).

- Criar estratégias para o acompanhamento da implementação do Plano Nacional de Educação pela sociedade civil pressionando as diferentes esferas de poder (federal, estadual e municipal) para que ocorra a necessária integração entre seus Planos de Educação. (DCD, 1998, p. 5966).

Depreende-se das diretrizes do PL 4155/1998 a centralidade da gestão democrática em sua proposta de Plano Nacional de Educação como eixo articulador do sistema nacional de educação. A gestão democrática perpassa todo o sistema educacional de forma a estimular a participação dos agentes com vistas ao aprofundamento da participação cidadã e, portanto, das condições de decidir sobre os destinos das instituições, da nação e dos cidadãos. Nesse sentido, afirma-se o direito à tomada de decisão pelos usuários e profissionais da educação. A escola é percebida como lócus privilegiado para a formação da cidadania e a gestão democrática da educação como elemento qualificador do direito à educação que eleva a instituição e os sujeitos a um novo direito, o direito à tomada de decisão. Esse é o avanço, o direito de tomar decisões! Portanto, recolocam-se dois princípios advindos dos eixos de lutas: (i) a autonomia dos sujeitos e das instituições escolares e (ii) a democracia por princípio e valor.

Desse modo, o PL 4155/1998 aglutinou as propostas do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e uma concepção de gestão democrática da educação foi construída com os sujeitos. Suas propostas de gestão democrática se confrontaram com outra percepção de gestão, representada pelo PL 4173/1998 e procedentes do Ministério da Educação, que se examina a seguir.

O PL 4155/98 apresentava um Plano Nacional de Educação com concepções que se contrapunham àquelas apontadas no PL 4173/1998 e no Substitutivo do Deputado Nelson Marchezan, e por isso foi rejeitado, embora fosse apresentado primeiro e regimentalmente ser o condutor do trâmite legislativo.

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